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Memórias Matrimoniais

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Laura deixou uma carta dobrada em cima da mesa, debaixo das suas chaves de casa.

“Aos meus cuidados” e a quem mais poderia ser? Já que éramos apenas eu e ela a tanto tempo.

Seu cheiro ainda estava no ar, o pôr do sol se estendia e sobrevivia por entre as cortinas da sala e iluminava com luz fraca, quase morta, o ambiente limpo e sem vida que me cercava.

O vazio se fez presente dentro e fora de mim.

De alguma forma eu já sabia que ela se fora para nunca mais voltar, eu sabia que Laura havia se cansado do meu amor mal medido, dos longos dias de solidão acompanhada.

Eu sabia que Laura havia me abandonado. E que essa cena, já vinha se rascunhando há anos em nossos descasos cotidianos, em nossos lapsos corriqueiros.

O triste é que bem antes deste fim que prevíamos, me perdi num mar de orgulho ilusório, e pouco a pouco nessas navegações introspectivas, eu havia a abandonado em meu coração.

 

“Roberto,

Hoje vejo as fotos daquela nossa antiga união e que um dia talvez tenha sido lúcida (mesmo embriagados pelo nosso fascínio juvenil). E não me servem de nada, a não ser para relembrar e doer no peito a nossa velha e saudosa paixão.

É triste admitir que já não passamos de costumes matrimoniais, e nesses dias, todos tão iguais, eu não sinta nada além do cheiro doce do seu perfume.

Acredito que todo amor é verdade, desde que haja liberdade e infelizmente o nosso sufocado está. Saiba que o nosso amor se tornou uma linda e forte mentira, quando se perdeu na rotina, nos beijos sem amor, nas risadas forçadas, nos olhares desviados e nos segredos sem valor não mais compartilhados.

Ainda agora sinto nossas brigas antigas, pois sempre que as revivo lágrimas molham as cicatrizes, que por anos estiveram abertas, doeram, sofreram e perduraram.

As tantas noites que passamos juntos e felizes, meu amor. Hoje são só noites mal dormidas que não se acabam.

Sufocamos pouco a pouco um amor tão lindo por medo de perde-lo e agora não sabemos mais onde se escondeu, não quero acreditar, mas como você bem disse pode ser que já morreu.

Eu me reprimi por tantos carnavais de poucas fantasias, você não acreditava e minha esperança morria, todo dia, sangrando nos sonhos de um passado feliz que jamais voltaria. Me contentei com tão pouco, fiz de seus doces elogios, valsa de falsas alegrias. E pedi aos santos que aquecessem o seu coração.

O nosso amor foi de verdade, enquanto acreditávamos em nós, ironicamente, enquanto ainda tínhamos a liberdade, a tão esquecida sinceridade, o olho no olho, a saudade…

E aquela sensação de que o tempo passava tão rápido que parecia não querer a nossa felicidade.

O nosso amor, meu (grande) amor!

Se maquiou de intrigas, se vestiu de ciúme e partiu ao encontro das ilusões e da mentira e pouco a pouco foi engolido pela rotina.

Adeus

Laurinha

19/09/89”

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Lucas Alberti Amaral – Belo urbanonascido em 08/11/87, vem há 28 anos distribuindo muito mau humor e tentando matar a fome. Formado em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela METROCAMP, trabalha na área há 6 anos, tem uma página onde espalha pensamentos materializados em textos curtos e tentativas de poesias www.facebook.com/quaseinedito (curte lá!). Concilia a dura missão de morar em Campinas – SP (cidade onde nasceu) e trabalhar em Barueri-SP, não acredita em horóscopo, mas é de Escorpião, lua em Gêmeos com ascendente em Peixes e Netuno na casa 10. Por fim odeia falar de si mesmo na terceira pessoa.

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Foi embora

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Ela fugiu e eu fiquei aqui

Esperando sem esperanças

Uma rosa no jardim

O vestido vermelho

Que ela vestia para mim

Morena, eu não vou entender

Por que você sumiu

Fugiu..

Mentiu..

 

Eu não me lembro

O tempo, aquele, foi embora com você.

12308453_10205306926782378_7964104893761853478_n foto Dri para perfil

Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde escreve contos, poesias e crônicas nesse blog. Publicitária e empresária. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing  www.modo.com.br e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa 🙂

 

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Fragmentos de um diário – 16

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Hoje é dia 06 de abril, deve ser quase 07, é tarde, estou muito, muito cansada, em casa, sozinha, só eu em casa e o cachorro. E você? Na sua mãe? Não sei, talvez.

O que é o amor? Quando ele acaba? Um dia percebi que você mal falava meu nome, depois percebi que nunca mais me chamou pelo apelido carinhoso. Quando parou de me chamar? Que dia? Que mês? Que ano? Não lembro.

E as fotos? Não temos fotos novas juntos. Um dia esquecemos de tirá-las, como esquecemos de escrever bilhetes, de dar presentes, lembranças, de fazer surpresas.

Me sinto me carne viva, magoada, sofrida, sem ser vista.

Uma pena, uma grande pena, estou só, com dores no corpo e na alma.

Vou ver um filme sozinha que tá passando na TV, não é nada disso que eu queria.

Minha forças se esgotaram, foram embora.

Amanhã eu penso nisso.

06 de abril – Gisa Luiza – 44 anos

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Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde escreve contos, poesias e crônicas nesse blog. Publicitária e empresária. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing  www.modo.com.br e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa 🙂 . A personagem Gisa Luiza do “Fragmentos de um diário” é uma homenagem a suas duas avós – Giselda e Ana Luiza.

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EU

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me libertar de mim

viver uma história sem fim

não precisar rimar tudo no final

talvez não registrar no papel

 

o corpo se adapta ao mundo

a depressão deforma o corpo

o mundo pouco se importa

quando minha alma sufoca

 

o que escrevo é desconexo

minhas palavras são o reflexo

dessa confusão que  eu sou

rascunho do que você sonhou

 

me iludo todo dia, e é tão fácil

faço cena, interpreto o palhaço

quero (te) chamar, a sua atenção

mesmo sempre dizendo que não

 

me despeço e regresso a solidão

faz silêncio aqui, e isso é tão bom

há tempos eu não me encontrava

procurava em você o que estava em

meu coração

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Ela ontem, ela hoje

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Aos 16 ela se sentia uma velha…

Amadurecida demais, responsável demais, abandonada demais, frágil demais… Fragilidade dessas que a besta espreita, dá o bote, sem chance de defesa.

A fragilidade havia crescido junto com a sensação de desamparo, enquanto a responsabilidade crescia pela necessidade de olhar por outros, na tentativa de prevenir que se levassem pela fragilidade também.

Mas havia um ponto em que parecia não valer mais a pena…

O que ela mais buscava era a simplicidade do amor, mas para uma velha como ela, parecia inacessível… Como chegara a esse ponto? Onde fora parar a alegria de uma infância tão pouco distante? A menina que brincava de amarelinha e cantiga de roda, que corria com seu vestido azul ao sabor do vento… Um pontinho azul que se mesclava ao azul da névoa que existia em sua memória. A névoa que também mostrava despedidas, idas e partidas.

O amor tem caminhos estranhos, estava à espreita em algum ponto daquele caminho… Era uma chegada e vinha de surpresa.

Aos 26 ela se sentia uma adolescente, dessas que acordam e tem direito a tirar um dia de folga, botar um vestido azul, embora ela preferisse uma boa calça jeans mesmo, e sair rodopiando.

Aos 46 ela se sentia uma jovem, corajosa, lutadora e… Feliz! Às vezes, ela abraçava sua criança interior e a protegia quando esta sentia angústia de tempos passados. Aprendeu a proteger sua criança e a rugir contra as bestas que a espreitassem quando estivesse frágil. Cantava para a criança dormir, enquanto a aconchegava em seu colo.

Hoje ela se sente bela e se acha!

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Synnöve Dahlström Hilkner É artista visual, cartunista e ilustradora. Nasceu na Finlândia e mora no Brasil desde pequena. Formada em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela PUCC. Desde 1992, atua nas áreas de marketing e comunicação, tendo trabalhado também como tradutora e professora de inglês. Participa de exposições individuais e coletivas, como artista e curadora, além de salões de humor, especialmente o Salão de Humor de Piracicaba, também faz ilustrações para livros. É do signo de Touro, no horóscopo chinês é do signo do Coelho e não acredita em horóscopo.

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Fragmentos de um diário – 15

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Me sinto a margem, não me enquadro, é um sentimento que me sufoca porque não sei o que é, e sempre foi assim.

Faço parte, mas não me sinto inteira ai, faço parte, tenho tudo o que os outros querem ter, mas não me sinto assim, me sinto a margem, me sinto desenquadrada.

Me sinto fora das convenções e por fazer parte delas, sofro, calada, nervosa, morrendo… se não viver.

A liberal nos caretas, a careta nos liberais, essa sou eu.

A margem dos padrões e muito dentro deles.

Incomodada, angustiada, aprisionada, amedrontada.

Uma alienígena tentando achar o seu lugar.

Uma alienígena muito crítica e debochada.

Se conseguisse ser uma metamorfose ambulante acho que encontraria a plenitude do caminho.

07 de junho – Gisa Luiza – 46 anos

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Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde escreve contos, poesias e crônicas nesse blog. Publicitária e empresária. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing  www.modo.com.br e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa 🙂 . A personagem Gisa Luiza do “Fragmentos de um diário” é uma homenagem a suas duas avós – Giselda e Ana Luiza.

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Hoje é sexta

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O que tem a sexta-feira tem de tão especial?

A esperança de um ótimo final de semana. E o que é um ótimo final de semana? Não fazer nada, dormir até tarde, ver filmes, ir a um churrasco, encontrar amigos, namorar, paquerar, se embelezar e mais um monte de coisas que o fato de não ter hora marcada para nada nos permite.

Sexta-feira é o quase lá de tudo isso. Tem sextas que o dia passa corrido e quando nos damos conta já são 6h e, ufa, é hora de ir para o happy! Mas tem sexta que o dia passa arrastado, pura preguiça; a nossa gasolina, essa energia, acabou um pouco antes do fim do expediente e a vontade é que acabe logo o dia, porque não rende mais nada e o dia vira só procrastinação. Por que sexta encanta tanto? Porque a maioria trabalha por trabalhar. Trabalha para ganhar dinheiro e pagar as contas, só que muitas vezes a conta não fecha. E corpo cansa, assim como a cabeça, e não sabemos nem dizer qual cansa mais e onde começa essa canseira toda.

Mas aí, eis que existe a sexta para nos libertar dessa dor, do que não se faz com amor. Porque quando se faz com amor; segunda, terça, quarta, quinta e a própria sexta são mais leves e divertidas e isso torna todos os dias da semana especiais e não só a sexta. Mesmo quando o dinheiro é curto, porque o amor traz esperança; com amor o trabalho é bem-feito e a chance de reconhecimento é muito maior.

Sim, reconhecimento, é isso que todos queremos, em qualquer dia, mês ou ano. Todo mundo quer ser mesmo reconhecido como alguém especial, com características próprias que façam a diferença em qualquer ambiente, na vida profissional ou pessoal.

Ser reconhecido colore o dia, mas e nós? O quanto nós reconhecemos e valorizamos quem está à nossa volta? Somos o peso na vida de quem está do nosso lado ou colocamos as pessoas para cima? Somos a chata segunda ou a doce sexta? Na opinião da maioria é assim, segunda é chato, sexta muito bom.

Mas a questão é, final de semana bem-vivido e divertido é uma delícia, porque saímos da rotina e a rotina, meu caro, é dura, mesmo quando se ama o seu trabalho. Ela tem todas as obrigações da semana e isso gera ansiedade, por tantas e tantas obrigações a fazer.

Com essa ansiedade à flor da pele, esse esgotamento físico e mental à tona, entram os salvadores da pátria que nos prometem o paraíso: “trabalhe menos, ganhe mais, acompanhe seus filhos, veja seus pais, saia com aos amigos, namore, tenha dinheiro, não tenha stress etc”. São ilusionistas, alguns até têm boas intenções, mas muitos não. Você está lá como a próxima vítima, vampiros da sua conta bancária que te prometem o reino dos céus aqui na Terra, estão em várias profissões que teoricamente estão aí para te ajudar, mas a que preço?

Então, desculpe a dureza das palavras, aproveite seu final de semana o máximo que puder, mas aproveite também a limitação da segunda, a corrida da terça, a entrega da quarta, o imprevisto da quinta e o happy, porque não, da sexta.

A felicidade não está do lado, simplesmente porque não existe salvador da pátria, pessoa perfeita, duendes, coelhinho da páscoa, fadas, príncipes e princesas encantadas. A felicidade está dentro de você, todos os dias, e não só na sexta.

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Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde escreve contos, poesias e crônicas nesse blog. Publicitária e empresária. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing  www.modo.com.br e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa 🙂

 

 

 

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Nas cores da noite

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Desde o boteco até o galpão…

Adorei o encontro

e as rosas que já havia me esquecido do cheiro

O cheiro de pele e não de perfume…

A pele que transpira alegria

como se fosse de uma adolescente em sua primeira vez…

No meio de uma fantasia real

como um circo que a fez feliz quando criança.

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Daniella De Sá Andreoli – Virginiana, mãe, proprietária da D&E Corretora de Seguros, adorar viver a vida intensamente, adora gastronomia, teatro, estudou exatas, mas se pudesse viveria de SOM, MAR e LUZ.

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A perda de Bowie e a militância moderna

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Sentir a perda de David Bowie é permitido!

“Estou procurando textos problematizando o Bowie! Cansei de procurar e lanço o desafio…” Foi essa frase que li logo cedo ao abrir o facebook. Alguns comentários no post davam conta de que só havia boatos, nada definitivo. Uso de drogas não era um problema, a busca era por assédio sexual mesmo ou outra podridão qualquer que pudesse denegrir o caráter por abuso de poder. Não continuei a seguir o post pois tudo levaria a “algo” que hipoteticamente poderia ter acontecido no contexto do começo da década de 70…

Estamos “problematizando” muito a época atual? A militância está se tornando tamanha que não podemos sentir a perda de uma pessoa a quem admirávamos sem buscar algo negativo contra ela? Imagino que a maior bronca de alguns é que David Bowie levava uma vida privada discreta e sem escândalos enquanto na vida artística não aceitava rótulos, mudava de estilo tantas vezes quanto achasse por bem fazê-lo e morreu de maneira serena, bailando a música final com o destino. Surpreendeu-nos mais uma vez ao oferecer uma poesia musical como despedida. O artista se foi, o empréstimo acabou, ele foi levado de volta a uma esfera que desconhecemos, mas antes nos deixou seu legado.

E se aqui falo sobre a perda de Bowie, isso não significa que sinto menos ou mais dor pela perda de outras pessoas, não quantifico minha capacidade de sentir…

Aos militantes de plantão deixo um recado: Vamos sim lutar por um mundo melhor, vamos lutar contra preconceito, assédio, machismo, racismo, xenofobia, homofobia e uma lista enorme… Só que podemos usar uma perspectiva positiva e construtiva, dar exemplo, educar a geração pela qual somos responsáveis, discutir, debater e até brigar quando necessário, pois somos bons de briga, claro. Mas, às vezes, é bom sentir tristeza, amor, afeto, sem questionamentos. Apenas porque sim.

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Synnöve Dahlström Hilkner É artista visual, cartunista e ilustradora. Nasceu na Finlândia e mora no Brasil desde pequena. Formada em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela PUCC. Desde 1992, atua nas áreas de marketing e comunicação, tendo trabalhado também como tradutora e professora de inglês. Participa de exposições individuais e coletivas, como artista e curadora, além de salões de humor, especialmente o Salão de Humor de Piracicaba, também faz ilustrações para livros. É do signo de Touro, no horóscopo chinês é do signo do Coelho e não acredita em horóscopo.

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Ônibus errado. Estação certa.

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Algumas pessoas têm um olhar atento aos acontecimentos e ao jeito de viver dos cidadãos da sua cidade. Homens e mulheres que têm hábito de perceber o que está além do senso comum, o que ninguém vê ou o que não se ouve em se ouvindo. João é uma dessas pessoas capazes de descobrir e revelar coisas incríveis e que vão pra debaixo do tapete em grandes cidades.

– Se bobear São Paulo te engole e você deixa passar um monte de coisas legais. Foi com essa frase que ele começou a contar a epopéia da sua terça sem lei. Terça-feira é o dia da sua folga, é o dia de sair pelas ruas meio sem rumo, meio sem lei e viver a cidade. É o dia em que tudo pode acontecer, inclusive tomar o ônibus errado, coisa que ele fazia com certa freqüência. Sua intenção era ir até a Paulista, conhecer a nova Livraria Cultura no Conjunto Nacional. Errou e foi parar no centro da cidade. Antes de chegar à Praça do Correio, ponto final do ônibus, resolveu descer na Praça Marechal Deodoro e pegar o metrô. Com poucas estações e uma baldeação no meio do caminho estaria na estação Consolação, ao lado da livraria. Pelos seus cálculos o trajeto todo levaria uns 23 minutos. Foi pensando nisso que desceu as escadas da estação e teve a primeira surpresa do dia. Na verdade não era surpresa coisa nenhuma. Ele saía de casa procurando coisas novas e diferentes. Não precisou de muito esforço. Bastou olhar pra frente. Na parede que engolia a escada rolante lotada de gente apressada, um quadro pendurado sorria para os olhares perdidos. Aquele quadro era como um anfitrião que recebe alguém em casa dizendo olá, bom dia, seja bem-vindo e esse alguém nem olha pra ele ou pede licença pra entrar. Ou seja, o quadro estava lá na escada de acesso à estação e ninguém dava a mínima importância para ele. Aquilo chamou a atenção de João de um modo diferente do habitual. Ao chegar ao piso inferior pegou a escada no sentido contrário voltando para a rua. Queria descer de novo e olhar com mais atenção aquele quadro. Fez esse caminho três vezes. Ao chegar na bilheteria não se conteve. Perguntou ao bilheteiro se ele sabia de quem era o quadro. O funcionário do metrô disse que não se lembrava não.

– Tá cheio de quadro dele espalhado pela estação. Lá embaixo tem uma plaquinha com o nome dele.

João saiu da bilheteria disposto a ver os outros quadros e a tal da plaquinha com o nome do pintor. Antes mesmo de passar pela catraca, atraído pela luz da tarde que invadia um grande jardim interno no meio da estação, percebeu a existência de um outro quadro, gigantesco, reinando absoluto na solidão do jardim espremido no subsolo da cidade. Ficou parado alguns instantes. Chegou a duvidar se era aquele buraco no teto da estação e que dava pra rua, que iluminava as plantas do jardim e os homens retratados no quadro, ou se eram ambos que, por absoluta necessidade de sobrevivência, subiam aos céus da cidade espalhando o verde e a humanidade perdida no concreto. Aproximou-se da mureta e, olhando para baixo, logo viu que poderia descobrir novos ângulos. Passou correndo pela catraca e começou a descer mais um lance de escadas. Agora, na sua frente, um outro quadro o impressionou ainda mais. Declaração do Homem e do Cidadão, esse era o seu nome estampado bem no centro, ladeado pela imagem de inúmeros homens e mulheres do povo. Gente igual a milhares de cidadãos que descem todos os dias as escadas e que talvez nunca tenham se dado ao trabalho de olhar para o seu próprio espelho. Porque era isso que aquele quadro era: um grande espelho pra todo mundo que descia as escadas. Foi invadido por um misto de encantamento e felicidade. Sentia-se sozinho e feliz. Era como se estivesse funcionando numa velocidade muito abaixo do normal e como se o som do ambiente tivesse sido simplesmente cortado, igual a aquelas cenas de filme americano quando se aproxima o momento do clímax final. Aquela fração de segundo antes do tiro fatal no bandido ou do beijo que arrebata uma grande paixão. Tudo fica em silêncio e em câmera lenta até que o som do tiro ou o lábio da amada trazem tudo de volta ao normal.

No caso do nosso João, que não é astro do cinema americano, esse estado de entorpecimento pela descoberta de uma estação repleta de obras de arte, só foi rompido pelo barulho do trem chegando à plataforma. Ficou parado um pouco mais, até se desembaraçar daquele monte de gente que se atropelava pra entrar e sair do trem. Andou uns dois metros e chegou ao quadro que tinha a tal da plaquinha. Lá estava o nome dele: Gontran Guanaes Netto. Esforçou-se em suas lembranças, mas de fato não lembrava daquele pintor, se quer o conhecia. E olha que ele era um cara ligado em tudo. Não se preocupou com isso, sabia que iria atrás de mais informações sobre ele. Resolveu absorver um pouco mais daqueles quadros. Subiu novamente as escadas, mas desta vez não optou pela rolante, preferiu a boa e velha escada de pedra. Parou no meio e ficou repetindo pra si mesmo, várias vezes: declaração do homem e do cidadão. Olhou no relógio, estava quase uma hora dentro da estação. Desceu os degraus e foi saborear novamente aquele quadro no meio do jardim. Ali embaixo, bem ao lado da plataforma e olhando pra cima, percebeu o quanto era pequeno diante do mundo e da arte. Soube também o quanto era bom ser sensível ao novo, ao surpreendente.

– Não via a hora de contar isso a vocês.

Leandro, Rogério e Zé, amigos inseparáveis daquela mesa de bar, compartilhavam daquela emoção. Era como se tivessem – entre um copo ou outro de cerveja ou entre uma garfada no macarrão com molho de miúdos de frango que um dos amigos tanto adorava , vivendo com ele cada minuto daquela tarde de terça-feira. Para criar um suspense pediu um minuto para ir ao banheiro, mas antes de ir disse: – E a maior de todas vocês ainda não sabem. Já volto.

Rogério foi logo dizendo:

– Quando o cara quer, faz arte faz em qualquer lugar. É só querer.

– É meu amigo, o cara do metrô que autorizou isso deve ser uma pessoa muito sensível à causa artística. Completou Leandro.

Zé, que aparentemente era o mais racional de todos, pediu mais uma cerveja pro Luxemburgo – era assim que eles chamavam o garçom que os conhecia de longa data. E Ficou pensando:

– Amanhã mesmo vou lá ver essa exposição permanente. Tem coisas que a gente não vê em nenhum lugar do mundo.

Encheu o copo dos quatro enquanto João se ajeitava na cadeira. O gran finale daquele dia, disse ele, foi um funcionário do metrô que aproximou-se, dizendo:

– O senhor gostou dos quadros?

João estranhou a abordagem súbita, mas respondeu afirmativamente.

– É que tô prestando atenção e vi que o senhor tá aqui há um tempão….olha, eu conheci esse pintor pessoalmente. Eu trabalho nessa estação há muito tempo e lembro quando ele tava pintando os quadros aqui. Ele pintou também lá na estação Itaquera, mas o que eu quero contar é outra coisa. Lembro como se fosse hoje. Era um domingo. O Corinthians jogou no Pacaembu e o Palmeiras no Palestra Itália. Depois do jogo se encontraram aqui, os torcedores. Foi pancada pra todo lado e eu me escondi dentro da bilheteria. Quebraram quase tudo, mas ninguém tocou nos quadros e nas coisas do pintor. Tava tudo aí: pincel, tinta, um monte de coisas. Não sei como chegaram a esse acordo no meio daquela confusão, mas achei aquilo uma coisa bonita. A briga foi e é abominável, mas pouparam o trabalho do seu Gontran. Era como se a obra de arte sobrevivesse a fúria dos homens. Olha, se um dia eu encontrar de novo com ele, vou perguntar se ele é corinthiano ou palmeirense. Talvez nem goste de futebol, não é mesmo? Bom, o senhor me dê licença que vou indo.

Deu um gole na cerveja antes de descrever seus minutos finais na estação. Nem precisava, estavam todos satisfeitos com a história. Antes, contudo, optou novamente pelo suspense, só que em vez de ir ao banheiro, resolveu contar tudo que já tinha descoberto sobre o tal pintor. Disse que naquele dia mesmo, abortou a idéia de ir à livraria e voltou pra casa, vasculhou na Internet e achou tudo sobre ele, inclusive o seu site.

– Gontran Guanaes Netto nasceu em 1933, em Vera Cruz, no interior de São Paulo. É filho de uma família de trabalhadores rurais e teve pouca escolarização formal. Suas pinturas são de homens simples, de gente do povo, do campo. De gente daqui e de todos os lugares. É um pintor que revela a existência de milhões de cidadãos que existem sem existir.

João se encheu de orgulho ao encerrar a breve biografia desse artista.

– Hoje Gontran mora em Itapecerica da Serra, cercado pela natureza, corre 10 quilômetros todas as manhãs e se dedica à pintura 12 horas por dia.

O motivo do orgulho? A relação entre a arte e a corrida. João é apaixonado por arte e adora corrida. Esporte que pratica com freqüência e que apresentou a Zé, hoje seu parceiro de pistas.

– Ô João, um dia desses a gente podia fazer uma visita pra esse pintor. A gente vai correndo lá do limão até Itapecerica.

Os quatro caíram na gargalhada. Beberam mais um pouco, falaram de política, discutiram futebol, pediram outra torrada de alho. No fim da noite, na porta do bar, onde sempre gastavam mais alguns minutos, João disse que a coisa mais louca que aconteceu com ele naquele dia deu-se um pouco antes de ir embora.

Um novo trem chegou à plataforma e novamente se viu envolvido naquela confusão de gente, só que dessa vez não ficou sozinho após a dispersão. Um casal de cegos estava ao seu lado, vagando como ele pelo espaço vazio com a saída do trem, à procura de um caminho. Era como se o casal procurasse sentir o lugar de um jeito diferente. Em vez da pressa, a sensação. Pra ele, aquele homem e aquela mulher também podiam sentir aqueles quadros como ele sentia.

– Eles podiam ver sem enxergar o que muitos enxergam sem ver.

– Bonito isso. Disparou Leandro, enquanto Rogério deu o toque final

– Ihhhhh….tá ficando piegas João. Vamos embora.

Mais uma vez caíram no riso. No caminho pra casa, sentia-se feliz por ter compartilhado com os amigos a sua experiência com os quadros e a história daquele pintor. Gontran Guanaes Netto foi mais um artista que descobriu graças a uma coisa especial chamada arte no metrô. Um projeto que ele conhece desde 1978, quando tudo começou na Sé, e que já o fez percorrer diversas estações em busca de painéis, quadros e as esculturas.

Na manhã seguinte, desejou contar pra todo mundo:

– Olha, tem uma exposição permanente muito boa lá na estação Marechal…vai lá ver.

No fundo, sabia que não iria fazer isso. Cada qual deve descobrir o jeito de olhar e perceber a sua cidade. Arte tem dessas coisas. Viver de olhos abertos também.

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Gil Guzzo – é autor, ator e diretor. Em teatro, participou de diversos festivais, entre eles, o Theater der Welt na Alemanha. Como diretor, foi premiado com o espetáculo Viandeiros, no 7º Fetacam. Vencedor do prêmio para produção de curta metragem do edital da Cinemateca Catarinense, por dois anos consecutivos (2011 e 2012), com os filmes Água Mornas e Taí…ó. Uma aventura na Lagoa, respectivamente. Em 15 anos como profissional, atuou em 16 peças, 3 longas-metragens, 6 novelas e mais de 70 filmes publicitários. Em 2014 finalizou seu quinto texto teatral e o primeiro livro de contos. É fundador e diretor artístico do Teatro do Desequilíbrio – Núcleo de Pesquisa e Produção Teatral Contemporânea e é Coordenador de Produção Cultural e Design do Senac Santa Catarina. E o melhor de tudo: é o pai da Bia e do Antônio.