Que herança você vai deixar para os seus netos? Essa pergunta sempre vinha à cabeça de Guilherme quando lembrava-se do seu avô. Ele não deixou dinheiro, propriedades ou qualquer coisa que possa ser transformada em valor absoluto, em moeda corrente, em conforto financeiro para a vida cotidiana. Ele deixou o desejo de conhecer o mundo em volta. A vontade de sair pelas ruas e encontrar o outro, o estranho que, sem motivo algum, faz você abrir um sorriso e dizer bom dia. A alegria de sair quase todas as tardes pra ver gente nova e simplesmente sentir a cidade pulsar em seu ritmo frenético. Não sei se ele tinha isso em mente quando vestia, mesmo aposentado, o seu terno impecável após o almoço, penteava o bigode e dizia:
– Tá pronto?
Guilherme respondia que sim com a cabeça enquanto tentava entender porque motivo ele penteava o bigode. Será que ele deveria fazer aquilo quando ficasse adulto? Ele abria um sorriso e continuava:
– Então vamos, vamos.
Aquelas saídas estimularam não só esse desejo de conhecer o jeito e a gente da cidade de São Paulo, elas o faziam ir além. Faziam-no tentar descobrir e imaginar a história de cada um e o lançaram definitivamente, sem que ele desse conta, no mundo da ficção. Naquele tempo não percebia isso claramente, apenas absorvia e desenvolvia a construção de um olhar crítico e apaixonado pelo outro, que como ele, era anônimo e tinha uma história perdida na imensidão do concreto. Histórias que fazia questão de imaginar e tornar verdade como brincadeira de criança.
Foi assim, durante boa parte da sua infância, que Guilherme aprendeu a ver o mundo pelo lado de dentro. Algumas coisas passaram despercebidas, outras incomodaram um pouco e poucas mexeram tanto com ele como o dia que o avô o levou pra conhecer o metrô, quase trinta anos atrás.
Chovia bastante aquela tarde, a mãe e a avó não queriam que os dois saíssem de casa. Ele, alheio à discussão, esticava-se na ponta dos pés para olhar pela janela a água da chuva que corria apressada ladeira abaixo. E, enquanto a sua respiração embaçava o vidro, de tão grudado que estava à janela, só queria tentar entender pra onde ia aquela água toda.
Abandonou logo aquele questionamento, tão importante pra ele naquele momento, assim que ouviu seu avô dizer.
– Hoje é um dia importante. Ele vai conhecer o metrô. Além do mais tenho que passar no Mappin e pagar a prestação do fogão.
Não ouviu nem quis ouvir mais nada. Correu até o banheiro, penteou o cabelo, colocou a sandália de couro, passou pela mãe e pela avó feito um furacão e foi direto pra porta. Finalmente tinha chegado o grande dia, o dia de conhecer o metrô.
Entraram no ônibus e sentaram-se no segundo banco do lado oposto ao do motorista. Era o lugar preferido de Guilherme. Dali podia ver em detalhes e admirar a habilidade do motorista. Estava tão ansioso pelo que o esperava no centro da cidade, que naquele dia nem deu tanta importância pelo que realmente o fascinava na viagem de ônibus: o fato de alguém conseguir dirigir um veículo daquele tamanho. Demorou a perceber também que tinha escolhido o calçado errado para aquela tarde. A sandália tinha se molhado completamente com a chuva e os dedos dos seus pés estavam gelados. Sentiu um pouco de frio mas não disse nada. Tinha medo que seu avô desistisse de levar adiante seus planos para aquela tarde.
Chegando à Praça do Patriarca. Era sempre lá que desciam nos seus passeios vespertinos. Sempre no ponto final. Com o coração quase saindo pela boca de emoção começou a andar no sentido do Viaduto do Chá. O avô o segurou pelo braço.
– Espera aí rapaz, nós vamos pro outro lado. Vamos começar a viagem pela Praça da Sé, a estação mais importante de todas.
No caminho foi contando para o neto um pouco sobre como era esse trem que andava debaixo da terra e que era um dos mais limpos do mundo – até hoje, diga-se de passagem.
Desceram as escadas da Sé. Como num filme ou num sonho, foram tragados por uma multidão de gente apressada andando de um lado pro outro. Segurava firme na mão do seu avô enquanto seguiam em direção à bilheteria, desviando ora de um ora de outro pelo caminho. O avô entregou-lhe o bilhete.
– Coloque ali na catraca.
Com as mãos trêmulas de emoção e sentindo as batidas do seu coração misturar-se ao barulho ensurdecedor daquele mundo que acabara de se revelar pra ele embaixo da terra, colocou o bilhete na catraca.
As portas de uma nova cidade, submersa, descortinaram-se diante dos seus olhos. Tudo era real e ele estava ali. Entraram no penúltimo vagão. A primeira viagem foi no sentido Jabaquara. Cada estação era um novo começo. A composição emergia da escuridão e estacionava na plataforma. Alguns saiam, outros entravam e ele continuava com os olhos brilhando e divertindo-se toda vez que o condutor anunciava a próxima estação. Ele já tinha andado de trem antes, mas nunca embaixo da terra e nunca tinha ouvido aquela voz que saía de não sei onde pra dizer que estavam chegando à estação x ou a estação y. No Jabaquara desceram do trem, subiram e desceram escadas e por fim chegaram ao outro lado da plataforma. Pegaram o trem no sentido Santana. Naquela época só havia duas linhas de Metrô. Uma chamada Norte-Sul e a outra Leste-Oeste. Não era como é agora que as linhas têm números e cores diferentes. Nesse caminho de volta, a estação Sé chegou e ficou pra trás novamente. Depois veio a estação São Bento, Luz, Tiradentes e finalmente a maior revelação do dia, a estação Ponte Pequena, hoje conhecida como Armênia. Impossível descrever a sensação. Um trem inteiro abandonava a escuridão subterrânea e ganhava os céus da cidade. A euforia foi tanta que o avô, percebendo o deslumbramento do neto, abraçou-lhe e falou ao seu ouvido.
– Preste atenção. Logo ele vai voltar pra debaixo da terra.
Nem é preciso dizer que aquele foi um dos dias mais emocionantes dos quase 10 anos de vida de Guilherme. Fizeram o caminho inverso, desceram na Sé e pegaram a linha Leste-Oeste – as duas linhas só se cruzavam na Sé. Mais uma vez andaram de um lado ao outro, de ponta a ponta. Foi um passeio e tanto. Tanto que naquela noite ele quase não dormiu. Ficou repassando na cabeça estação por estação, tentando memorizar uma particularidade de cada uma. Todas eram tão iguais e todas eram tão diferentes. E de todas, uma ficou gravada na sua memória: a estação Ponte Pequena. Ela sim, era realmente diferente de todas, não ficava embaixo da terra. A estação Tietê, que hoje se chama Portuguesa-Tiete, também não ficava embaixo, mas a Ponte Pequena foi a primeira que viu. Tornou-se inesquecível, única em sua memória.
Anos mais tarde entendeu por que as estações não ficavam submersas. Elas ficavam às margens do rio Tietê.
O fato é que aquela estação tinha um sabor especial pra ele. Era a lembrança doce de um dia incrível que ainda estava vivo nas memórias da sua infância. Talvez por isso, sentia-se invadido por uma sensação agradável toda vez que a estação Armênia era anunciada pelo condutor da composição.
Foi assim durante um bom tempo. Dia sim, dia não pegava o metrô em direção a Santana para encontrar-se com Solange, sua namorada na época. Todas as vezes ele ouvia nos alto falantes:
– Estação Ponte pequena.
Um dia, para a total e inesperada surpresa de Guilherme, ao se aproximar da estação ouviu:
– Estação Armênia, antiga Ponte Pequena.
Aquela frase preencheu seus ouvidos com tristeza repentina. Como se lhe arrancassem um pedaço da sua vida, uma parte daquela tarde com seu avô.
No fundo sabia que aquilo era bobagem. Era adulto o suficiente para entender que as coisas mudam, algumas vezes sem nenhuma explicação. Além do mais, como usuário constante do metrô, já deveria saber que a estação iria mudar de nome. Isso havia sido informado com certa antecedência, mas ele fez questão de não prestar atenção aos avisos. O resultado? O dia da mudança foi um choque.
Agora, passados tantos anos da mudança, não se diz mais antiga Ponte Pequena, é só Estação Armênia e ponto. Mesmo assim, toda vez que passa por lá, fecha os olhos quando o trem se aproxima da estação para poder ouvir mentalmente o condutor anunciar a Estação Ponte Pequena. Um instante mágico que o faz voltar à infância e sentir novamente o calor do seu avô ao seu lado. O trem abandona a plataforma. Guilherme abre os olhos e deixa escapar um breve sorriso.
Gil Guzzo – é autor, ator e diretor. Em teatro, participou de diversos festivais, entre eles, o Theater der Welt na Alemanha. Como diretor, foi premiado com o espetáculo Viandeiros, no 7º Fetacam. Vencedor do prêmio para produção de curta metragem do edital da Cinemateca Catarinense, por dois anos consecutivos (2011 e 2012), com os filmes Água Mornas e Taí…ó. Uma aventura na Lagoa, respectivamente. Em 15 anos como profissional, atuou em 16 peças, 3 longas-metragens, 6 novelas e mais de 70 filmes publicitários. Em 2014 finalizou seu quinto texto teatral e o primeiro livro de contos. É fundador e diretor artístico do Teatro do Desequilíbrio – Núcleo de Pesquisa e Produção Teatral Contemporânea e é Coordenador de Produção Cultural e Design do Senac Santa Catarina. E o melhor de tudo: é o pai da Bia e do Antônio.