Minha mãe sempre teve medo do pai dela, ele batia nela e em todos os irmãos, ela chegou a ser espancada algumas vezes, minha mãe viu também uma tia ser chutada na barriga, grávida, essa mesma tia viveu anos com esse homem e teve vários filhos dele, apanhou e foi muito humilhada, ele teve várias mulheres fora do casamento e finalmente quis se separar para ficar com outra, bem mais jovem, ela, mulher das antigas ficou com ele e nunca tentou se separar, aguentou tudo calada. Apesar do meu avô ter sido violento com minha mãe, ele nunca me bateu, acho que foi suavizando com o tempo mas eu percebia o quanto minha avó o temia, o quanto minha mãe se sentia tensa ainda adulta ao estar perto dele, ela carrega muitas feridas emocionais da infância que a afetam até hoje aos seus quase 65 anos; se casou aos 16 anos, no fundo acredito que quis fugir de casa; aos poucos na adolescência fui entendendo o ciclo de violência que as famílias vão perpetuando, e o poder que os homens exercem sobre as mulheres, ou querem exercer, vivemos ainda hoje na cultura do patriarcado, a cultura do machismo que ainda impera e apesar de tantos direitos adquiridos pelas mulheres ao longo dos anos, essa cultura segue impregnada nas atitudes de homens e por vezes até das próprias mulheres, na relações das crianças também, podemos ver os meninos ainda nos dias de hoje, passando a bola somente para os colegas meninos e ignorando as meninas, essas atitudes são ensinadas, observadas e copiadas, as famílias ainda perpetuam essa cultura sexista e misógina, ajudando a disseminar essa visão da mulher como um ser inferior, infelizmente ainda existe um preconceito muito grande em relação a mulher e tudo isso leva ao feminicídio, uma realidade horrenda no Brasil, com números alarmantes, em média 13 mulheres são assassinadas por dia, e o pior: uma grande parte dessas mulheres é morta por parentes, maridos ou parceiros.
Talvez por ouvir as histórias da minha mãe, me sentir muito tocada por seu sofrimento eu cresci muito atenta às relações entre mulheres e homens, me lembro que minha mãe não trabalhava fora e quando chegava próximo ao horário do meu pai chegar do trabalho ela me pedia para pôr o par de chinelos dele e a toalha de banho no banheiro, eu fazia isso sempre, aos quinze anos falei que não faria mais, achava um absurdo e pensava que se um dia me casasse eu jamais faria isso, claro que eu era apenas uma adolescente desenvolvendo minhas opiniões sobre o mundo porém me incomodava também aquelas piadinhas antigas: “mulher esquenta a barriga no fogão e esfria na geladeira”, eu nunca achei aquilo engraçado e ficava muito brava ao ouvi-las, e o pior: me deixava boquiaberta a naturalidade das meninas com respeito a isso, para mim nunca foi uma piada ou “brincadeira boba de homem” era algo muito sério, o tempo passou e hoje eu vejo com alegria que apesar da cultura machista as mudanças chegaram para nós mulheres, a Constituição de 1988 assegura que os homens e as mulheres são iguais em direitos e obrigações, a Lei Maria da Penha já existe há 12 anos e essa lei trouxe apoio legal para milhões de vítimas de violência, a mulher conquistou o direito do voto, no nossos dias as mulheres trabalham, são independentes, chefes de família e as relações amorosas são igualitárias, porém a cultura machista segue ainda poderosa, e com ela o feminicídio segue frequente, o abuso, a falta de aceitação do homem de que ele não tem poder absoluto sobre as mulheres, felizmente com o advento da internet as notícias chegam muito rápido, as investigações também e assim pessoas como João de Deus, Sri Prem Baba e tantos outros são desmascarados e detidos, no entanto me entristece ver todos os dias uma notícia nova de uma mulher que foi morta, estuprada, atacada e tantas outras situações que a colocam em risco de vida ou que perdeu sua casa ou está foragida enquanto o homem segue sua vida normalmente, é tanta injustiça que me angustia pensar que minhas duas filhas vivem nesse mundo aonde não somente a rua mas a nossa própria casa pode se tornar um lugar perigoso; sei que leva anos para que as mudanças sejam efetivas, para que os culpados sejam punidos adequadamente, sonho com o dia em que as estatísticas sejam diferentes para nosso país e que as mortes diminuam, por ora eu acredito nos grãos de areia das nossas atitudes, em minha micro esfera tento plantar sementes de respeito e amor na minha casa com as minhas meninas e nossa relação de família, meu marido é um companheiro que respeita meu “não”, que divide as tarefas diárias, e faz sua função de pai assim como eu faço a minha de mãe, ele cuida delas, ensino minhas crianças a respeitar o “não” de qualquer outro ser humano, e também a dizerem não se necessário, a respeitar seu espaço pessoal, seu corpo, a duvidar de figuras de autoridade, que não batemos para conseguir respeito, com minha família espero ter quebrado o ciclo de violência que tantas vezes vi com meus avós e parentes próximos, ensino que estudar e trabalhar é importante e necessário para todos, não sou uma “feminazi”, e estou longe de ter uma vida de foto de rede social, radicalismos não são meu forte, gosto, pratico e busco o caminho do meio: as pessoas precisam uma das outras, as relações amorosas independente do gênero devem ser respeitosas e igualitárias, se alguém acha que está em desvantagem então é problema, acredito nos bons combinados entre os parceiros, no amor acima de tudo, quem ama não quer prender o outro consigo, quem ama aceita que as coisas nem sempre são como gostaríamos que fossem, quem ama quer a felicidade do outro e não a morte.
Eliane Ibrahim – Bela Urbana, administradora, professora de Inglês, mãe de duas, esposa, feminista, ama cozinhar, ler, viajar e conversar longamente e profundamente sobre a vida com os amigos do peito, apaixonada pela “Disciplina Positiva” na educação das crianças, praticante e entusiasta da Comunicação não-violenta (CNV) e do perdão.