A noite vinha chegando sem muito floreio… Obscura e incerta, como de costume, e apagando luzes e temperaturas com menos eficiência que o normal, mas firme nesse propósito de séculos. Eu jamais diria que não havia, ali, naquele dia comum, uma noite trivial se aproximando… Eu sempre fui meio desligado, e fosse como fosse, o que eu poderia imaginar que aquela noite me daria? Não havia mesmo muita expectativa, sabe? Um salto no inesperado. E saltei.
Até que chegou, no susto, mais cedo do que eu esperava, a tal anoitecida, o que me fez acelerar um pouco meu ritual de banho e camarim. Eu investia algum tempo nisso, confesso. Na falta de beleza genética, sempre compensei com estilo, remendando aqui e ali as fantasias da vez. Um bom palhaço entende a importância de sua pintura de guerra, e era noite de picadeiro. Rir no final era fundamental.
Com algum suspense suspenso no ar, e a tal da ansiedade que eu ocultava por baixo do perfume, sempre que era dia de festa, saí de casa rumo ao clube onde eu praticava vôlei. E aqui cabe um pouco mais de história… Vôlei havia entrado tarde na minha vida, depois de muitas outras experiências menos interessantes com esportes diversos, de futebol à ginástica olímpica, que embora eu até gostasse, pareciam nunca gostar de mim de volta. Era bom finalmente ter um que me aceitava, acolhia e divertia. E foi dele a culpa que me levou à festa que nos aguarda, e que eu guardo na superfície da memória há tantos anos, revisitando sempre, como faço agora.
A aniversariante era minha amiga de vôlei, assim como dos outros amigos com quem marquei de encontrar na porta do clube, para irmos juntos para a festa dela. Tudo entre amigos faz mais sentido, né? E a mera caminhada de quarteirões virou coleção de risadas que ecoam ainda hoje em mim, feito a mais linda moldura que antecede a mais perfeita obra de arte. Indo, sem saber, descobrir o colorido da vida, fui, ainda por cima, bem acompanhado. Tem sortes que a gente precisa mesmo emoldurar.
E chegamos… Festa de quintal de casa, com decoração despretensiosa, ali apenas para ilustrar um pouco do que acontecia de mais importante: as interações. E como sempre acontecia nas chegadas, liguei meu radar para entender melhor o lugar, as pessoas que eu conhecia, as que eu não conhecia, banheiro, comida e “espelhos”. Espelhos, entendam, eram aqueles caras descolados que serviam de inspiração para meus desajeitados passos de dança… Eu era um pot-pourri de passos surrupiados discretamente, mas nunca colocados em prática como deveriam. Mas era festa, e ser feliz sem muitos cuidados era obrigatório.
Eu já estava nessa, de ser feliz e livre entre amigos e risos na pista de dança, há um tempo já quando ela chegou… Não sei dizer o motivo real de tê-la visto entrando, de longe, tão rápido. Talvez meu radar ainda estivesse ligado, procurando algum salgadinho diferente dos que eu já tinha provado, ou o rodopio copiado do garoto de topete maneiro tenha me deixado de cara com ela… Não sei. Acho que tudo isso… Ou talvez nada disso fosse mesmo preciso, já que eu não era o único sob os efeitos da hipnose. Mas quis acreditar que ela era meu feitiço particular.
Não foi a primeira vez que a vi. Na estreia, alguns anos antes, a conheci como amiga da minha cunhada e, portanto, presa a ser apenas isso, embora houvesse já algum desconforto nessa limitação. Ela foi sempre dessas pessoas que roubam o fôlego da gente, sabe? Quando a vi pela primeira vez acho que desaprendi a respirar, e agora ali, naquela festa de quintal, zonzo por rodopios nada dominados, senti voltar com tudo o poder da inspiração.
Caramba! e agora? Pernas bambas mesmo, que deixavam aquela cópia fajuta de coreografias alheias ainda mais descabida… Será que ela lembrava de mim? Será que ela tinha me visto? E será que eu estava dando pinta demais daquele interesse incubado por tanto tempo e tantos “não possos”? Me vi um enorme e desajeitado ponto de interrogação, com a sensação de que estava piscando florescente, e ainda por cima fora do ritmo da música que tocava. O que estava acontecendo?
Olhando daqui do futuro, penso que eu havia acabado de receber o golpe… Cambaleando ainda do choque com aquela paixão gigante que despencou sei lá de onde, e foi tomando todo o quintal, desrespeitando qualquer limite que via pela frente. E de repente, era só eu, ela e os escombros daquela paixão, espalhados por todo lado, saindo sem controle de mim. De uma coisa eu sabia… Era impossível esconder aquele troço. E eu também não queria esconder.
Ok, ok. Eu estava entre amigos, e ficava sempre mais a vontade nesses casos… Havia meu figurino de festa, elaborado com dedicação para superar a natureza, e havia aquela composição de estilos, remixados com a trilha sonora que tocava, mas por baixo daquilo tudo, eu era um cara tímido pra essas coisas. Ótimo nas palavras que ziguezagueavam atrás dos olhos, mas super enrolado na hora de fazê-las sair. O coração começava a descompassar, e junto dele, as poucas que saiam pareciam não saber mesmo o que dizer. E por acaso, naquela simples ocasião, parecia que toda a minha vida estava em jogo… E, de novo aqui do futuro, sei que estava mesmo.
Fiquei então ali… No esconderijo da roda de amigos, criando coragem como quem cultiva o mais complexo dos grãos… Arando aquele terreno de poucos metros que nos separava, e que parecia tão maior e mais arisco. Lava imaginária, creio ter visto até. E dali, do outro lado da pista, ficava lançando olhares como quem pede socorro, em SOS, esperando alguma fisgada de coragem. Nunca soube pescar.
Mas, como tudo entre amigos faz mesmo mais sentido… Numa jogada inesperada, e na mais incrível levantada que já recebi na partida de vôlei da minha vida, a aniversariante veio até mim, vencendo aquele terreno ilusoriamente flamejante, e perguntou o que eu achava da garota fulana, justamente aquela que havia me sequestrado da festa e da razão. Oi? Lembro de ser pego mesmo desprevenido… Acho que engasguei… Certeza que gaguejei… Mas consegui formular algo que foi suficiente pra declarar meu total interesse. E completei com “por que?”. Eu precisava saber porque… E mais, o porque tinha que me levar até os lábios dela.
A resposta veio. E sei lá pra onde me levou naquele instante. Minha amiga de vôlei, que era já tão mais que isso, disse que ela, a feiticeira, havia perguntado de mim… Em algum momento dos poucos que a perdi de vista. Por que? Estaria interessada também? Curiosa? Eu estava encarando além do saudável? Tudo isso passou feito um calhambeque numa rua de paralelepípedo, trepidando em minha total incredulidade. Era, enfim, uma coragem fisgada.
O que se desenrolou desse momento em diante é difícil de descrever. Acho que por haver, não sei, alguma coisa de magia mesmo, dessas névoas de encantamento sobrevoando aquela cena de encontro. Nos aproximamos, os dois, vencendo uma distância que nem parecia mais real… Ela vindo mergulhada no sorriso mais lindo que já vi até hoje, e eu indo por já não poder mesmo segurar aquele impulso de ir, até ela, pra ela. Cataclisma. A pele dela, imantada, exercia uma atração impossível… E resistir seria imperdoável.
Já próximos, enlaçado pelo perfume dela, descobri ali meu aroma preferido. Engraçado como há coisas que marcam, feito ferro incandescente… Fecho hoje meus olhos, cansado pelo tempo, e sinto ainda aquele perfume, cravado em mim, permanente. E agora um na órbita do outro, mudamos a trajetória indo juntos para fora daquele quintal. Outra dessas coisas que não consigo explicar. Simplesmente fomos, com uma certeza impossível de que era o que o outro também queria. Rua vazia… Sozinhos abarrotados de tanto o que dizer e fazer… E a noite, ali perdida, sem saber para onde olhar.
Nao sei mais o que esperam de mim nesse relato… Esperam que eu conte como foi o beijo? O que eu disse? E o que ela falou? Não posso. Não há nas palavras que eu conheço alguma combinação que consiga traduzir aquela paixão. Antíteses… Um tanto de incêndio, com uma dose de céu… Perdido completamente naquele lábio que parecia meu, ganhado, absorvido… Embaralhando desejos, sonhos, mãos e gostos, como se não houvesse mesmo amanhã. E hoje, alguns amanhãs depois, sei que não haveria mesmo nenhum que pudesse ser maior que aquele instante.
Tudo parece ir e voltar daquele ponto. A vida, o volei, os amigos e antigas namoradas, a rua e a noite me levando como se me devolvessem àquele beijo, que volto também, com a vida em curso hoje, sempre que preciso me refazer, respirar, e me reencontrar. Origens…
De volta àquela festa, da amiga do volei…
De volta àquela rua, vazia e tão perfeitamente à espera de nós dois…
De volta, ao começo de absolutamente tudo.
Paixões como essa são feito estrelas, que estendem seu brilho no manto da nossa história e seguem iluminando e atraindo passe o tempo que passar.
E hoje?
Hoje essa estrela dá novos sinais, novos horizontes, de novas chances e novos encontros.
Reencontros…
E reencantamentos.
A noite vem aí, obscura e incerta, como já conheço, e agora aprendi a não deixar na mão do universo o desfecho do meu espetáculo. É noite de picadeiro, e rir no final é fundamental.
Bernardo Fernandes – Belo Urbano. Um gêmio canceriano, e um ingênuo de 35 anos, nesse contínuo processo insano de se descobrir. Achou na Comunicação uma paixão e uma labuta, e vive nessa luta de existir além do resistir, fazendo diferente e diferença… Ser feliz de propósito, sabe? Sem se distrair desse propósito. E vai assim, escrevendo o que a alma escolhe dizer, tocando o que a viola resolve contar, fazendo festas com cachorros e amigos perdidos, e brincando de volei, de pique, e de ser feliz na aventura da sua viagem. Vai uma carona?