Este texto é sobre a vergonha em relação a um sentimento. Aconteceu comigo. Não estive na pele de outra pessoa, mas quando tudo acabou, senti vergonha de estar na minha pele. Queria muito ser um indivíduo melhor e, como faz muitos anos desde que ocorreu esse fato, penso que me tornei diferente do que eu era. Na verdade, quero acreditar que me tornei uma pessoa melhor.
Já repeti essa minha história para alguns amigos e para algumas turmas de alunos e eu a repito como uma forma de redenção: para me lembrar, quase todos os dias, de quem não quero ser. Para repensar o que me levou a ter medo. Para esmiuçar onde o racismo habitou em mim. Só procurando essa raiz, lá no fundo da minha formação enquanto indivíduo, é que pude extirpá-la com sucesso de dentro de mim.
Estudei em escolas públicas e sempre tive amigos pretos.
Dou aulas em escolas públicas e particulares e sempre tive alunos pretos.
Sempre me pensei como alguém que vê gente e não cor de pele.
Sempre me vi como alguém que, acima de tudo, respeita o outro.
Mas se hoje me sei assim, houve um dia um caminho para que eu me tornasse assim.
E ele começou naquela tarde, naquela agência de banco, em um domingo perdido na distância – mas não em meu coração. Foi lá que conheci a racista que habitou em mim. E foi lá que também comecei a deixá-la para trás. Pela força da vergonha que senti.
Eu estava sozinha na agência, era um domingo de sol, daqueles bem preguiçosos. Eu ia viajar no dia seguinte e, por isso, fui sacar algum dinheiro. Eu ocupava um dos caixas eletrônicos e os outros caixas, logicamente, estavam vazios. Eram, ao todo, seis.
Escuto, de repente, conversas atrás de mim quando a porta de entrada do banco se abre e quatro homens entram. Quatro homens que se conheciam. Quatro homens pretos. E a despeito de todos os outros caixas vazios, eles se posicionam atrás de mim. E lá permanecem.
Meu coração disparou. Desconfiança no grau máximo. Ninguém na rua. Domingo de sol e eu “presa” em um banco com quatro homens pretos parados atrás de mim sem existir nenhum motivo aparente para isso.
Pensei – “vou ser assaltada”. Enquanto isso, o caixa cuspia meu dinheiro.
Respirei fundo – “vamos ao que quer que seja, preciso sair daqui.”
Ao me virar, eu me deparo com um sorriso cheio de dentes. Quatro sorrisos cheios de dentes, na verdade. O homem mais velho, alto e forte, fala com uma voz suave em que só senti humildade. Ele me diz: “moça, você pode ajudar a gente?”
Pensa num coração apertado de vergonha.
“Claro” – foi a minha resposta. “No que eu posso ajudar?”
Ele então se aproxima e me explica que, apesar dos outros rapazes serem mais novos, eram todos “sem noção”, “tontos mesmo” e que se ele não depositasse o dinheiro para a patroa – quase o salário dele todo – era capaz dela vir da Bahia e dar cabo dele.
Mais um sorriso para me explicar que não podia deixar os meninos dele desamparados enquanto trabalhava tão longe de casa. E se eu podia fazer o depósito para todos eles, que também tinham patroas bravas e meninos esperando pelo dinheiro em um Estado distante.
Pensa numa pessoa que fez quatro depósitos com um coração mortificado de vergonha.
No final, um “muito obrigado, moça, e que Deus a abençoe”!
Sai da agência pensando: e se eles fossem quatro caras brancos, eu sentiria medo? Eu realmente não sei o que sentiria, afinal, homens e mulheres travam uma luta antiga e amarga de violência, mas sei exatamente o que fiz: um pré-julgamento de quatro caras pretos que entraram em uma agência, numa tarde de sol, num domingo qualquer.
E não há, desde o ocorrido, um dia em que não tenha vergonha do que senti.
E não há um dia em que eu não combata, a fundo, essa racista que eu fui, uma pessoa que, em algum momento, por mínimo que fosse, julgou alguém pela cor da sua pele.