O que é abuso?
No dicionário está dito que é o mau uso, excessivo ou injusto de algo.
Então, pensamos sobre o justo e a ausência de justiça. Precisamos de tempo para pensar nisto.
Para começar, alguém diz que pode ser relativo a uma transgressão de bons costumes. Mas, os costumes bons numa sociedade doente? Não sei se gosto dessa aproximação.
Entretanto, me concedo o direito de entender também como uma circunstância que causa aborrecimento e desgosto, deliberadamente, com infração de limites, com dolo.
Se formos para esse lado, tem abuso que é contra si mesmo, antes de ser contra alguém ou contra a lei. Os excessos de comida, bebida, drogas, o consumismo etc. Já me lembrei de uma lista interminável de mau uso e excessos que acumulamos no dia a dia (auto abusos): lícitos e ilícitos, conscientes e inconscientes, ingênuos e calculados. Uma boa reflexão para os que estiverem dispostos àquela reforma íntima.
Porém, não podemos negar que são as atitudes abusivas de uns contra outros, as responsáveis pelos maiores danos, que evoluem de humilhação para traumas, causa de uma variedade de reações e até crimes.
Nesse desfile de significados, as expressões mais contundentes recaem sobre os casos de abuso sexual. Infelizmente constantes, cruéis e com vítimas de todas as idades (eu disse todas). A necessidade dos parênteses determina o tom de adoecimento e nos obriga a questionar com incisão a classificação de humanos e racionais, totalmente incompatível com pessoas de instintos descontrolados e perversos.
Mais que isso, a sociedade muitas vezes acolhe o abusador mais do que as vítimas e faz isso com base na cultura do machismo, do sexismo e da distorção dos ensinamentos religiosos.
Você não precisa sofrer um estupro para entender o quão repugnante é sentir-se violada(o) nos domínios do que de mais seu você tem: seu corpo. Nossa visão de mundo não pode ser divina, nós não somos. No entanto, vamos falar pela milésima vez em empatia, compaixão, solidariedade, amor ao próximo – não são esses valores espirituais que nos ligam à semelhança de Deus? No meu entendimento, sim.
Adiante, os notórios casos de abusos de autoridade são prova cabal da miséria humana exibida de modo patético por quem acha que galgou uma posição superior na planície da existência. É dessa pequenez que estamos fartos!
Outro tipo de abuso, o parental, ocorre quando pais e mães narcisistas projetam suas frustrações nas crianças que crescem machucadas, moral e emocionalmente; além de indefesas e muito vulneráveis a outros sofrimentos ao longo da vida. Nesses casos, eu não vejo culpa, lamento por ambos.
Mas, há tantos outros, menos discutidos e muito nocivos aos nossos relacionamentos, como o abuso de confiança, o abuso de direito, o abuso funcional, o abuso afetivo…
O mais louco é que há casos em que a agressão está tão regulamentada, inclusive por nós mesmos, que existe o impedimento de enxergá-la. Quantas histórias relatadas anos depois de acontecerem em que só o tempo foi capaz de ilustrar que aquilo foi abusivo?
O envolvimento pode cegar, a vergonha pode emudecer, a humilhação pode vexar, a dor pode paralisar, a lucidez pode enlouquecer – a revelação pode ter consequências complexas.
Às vezes, esse abuso vem travestido de uma terminologia que agrava ou atenua o ato em si, como quando ouvimos que foi provocação, afronta, ataque, desfeita, injuria, insulto, ofensa, assédio, excesso, ultraje – injustiças.
Por essas e outras é que a definição de abuso fica sempre inconclusiva. Não é subjetiva, mas ultrapassa o repertório léxico, rompe as fronteiras da compreensão, interrompe o fluxo semântico.
O abuso é inconjugável, é insubordinável. O abuso é injustificável, só isso.