Tinha uma mãe braba. Não é brava de brincadeirinha, dessas que a gente fica entre a chinelada e o xingo engraçado clichê. Ela era BRABA mesmo. Arrumava encrenca com vizinhos, gritava com todos que a contrariasse, perdia amigos e intimidade com parentes. Não se preocupava em entender, se fazia entender por qualquer método, até quando não havia como.
Até meus 14 anos, tudo que queria fazer deveria ser escondido. Até brincar na rua era proibido e coibido. Não tinha privacidade, tudo que tinha era vasculhado. O que eu pensava era errado e melhor eu ficar quieto. Ela era imperativa e se algo saísse do controle, alguém pagaria. Meu pai não era flor que se cheirasse, mas tinha que abaixar a cabeça, se não quisesse perdê-la.
Ela não era só essa brabeza, tinha uma ternura ali. Mas uma ternura cega e surda, que não percebia os sentimentos ao redor. Ela abraçava, mas como seu eu fosse um boneco, e não gente. Ela cuidava, como seu eu estivesse para morrer, e não com os olhares dialogais de atenção aberta e sensível ao que os filhos realmente precisavam. Me sentia, de certa forma, só em cada abraço e desamparado em cada cuidado.
Por mais que muita gente possa se identificar com esse relato, ele é triste, pois esse tipo de atitude priva os filhos de uma amizade pródiga e uma confidencialidade saudável. Sentia-me muito solitário, com baixa autoestima e com uma necessidade de autossuficiência que me prejudicaria por décadas.
E por esses arroubos de intemperança, desenvolvi um comportamento defensivo muito arraigado, principalmente com ela. Até hoje posso dizer que não abro certas coisas com ela, pois se que ela não sabe lidar e não me ajudará de fato, podendo até prejudicar.
Mas deixo claro que não são atos deliberados dela. Ela é inocente. Uma inocência infantil, delicada que não vê maldade do que faz. E faz porque acha que o que faz é o bem. É um excesso de tudo: amor, carinho, cuidado, defesa… como se ela fosse nos perder a qualquer instante.
Não vamos fugir, mas é como se estivéssemos fugindo dela. Não vamos morrer, mas é como se qualquer descuido dela, morrêssemos. Não estamos sob perigo, mas é como se o mundo fosse uma ameaça letal, que precisa ser combatido com gritos e violência. É um exagero de boas intenções, com ações inocentemente desastrosas.
Aos poucos, ano após ano, fui descobrindo minha mãe. Descobrindo em meus traumas, meus traços, nos traços da minha irmã e no meu pai. Fui descobrindo essa mulher castrada moralmente por uma geração conservadora, por um marido puritano, por uma sociedade opressora e por uma série de medos e inseguranças que, ao redor dela, não recebia a devida atenção. E por não ter tido atenção, como ela iria aprender a ter atenção com os outros?
Viver uma adolescência nos anos de chumbo dos 70, uma juventude na década perdida na década de 80 e uma menopausa nos 90 pode ter impactado. A frustração de um casamento falido, de uma carreira interrompida, de não ter sonhos de consumo e experiência realizados também. Minha mãe é uma mulher que sofre, que é apagada. E que grita para existir.
Me incomoda ver ela agindo dessa forma hoje? Sim. Me dói e me faz falta a mãe que sempre projetei. Mas quem gosta de projeto é arquiteto, engenheiro (que sabem bem o que fazer com eles) eu não sei o que fazer com projeções.
Minha mãe é essa e rio quando consigo, para lidar com aquela mãe que grita por pouco, que dá vexame e que é a mãe mais particularmente amorosa do mundo. E esse amor particular, por mais que me fez sofrer a vida toda, me fez enxergar as formas de amor mais estranha e fora do padrão hollywoodianos possível. E a isso sou grato. Grato por ver amor onde ele se esconde.
Me dói essa descoberta tardia dos excessos dela. Me alegra que ainda tenho algum tempo para descobrir e amar em excesso. Assim espero.