Era uma noite de setembro, nos meus idos vinte e poucos anos, e meu eu ali, enfiado num assento de janela, no fundo vazio de um 432 laranja, em sua inconveniente mania de dar a volta ao mundo. Um ritual de respeito, que seguíamos à risca, ele e eu, devo dizer.
A viagem era a mesma, na missão de me devolver pra casa – o trapo que fosse, depois do dia desafiado entre trabalho e faculdade, e eu ia assim, me escondendo do sono entre os capítulos do livro da vez, nas esquinas do “era uma vez” escolhido, cortando a cidade com o fio da imaginação.
Até que, de uma só vez, e sem qualquer antecedente, me vi preso inconteste numa Paris de 1820, alheio ao peso incômodo daquela edição antiga de “Os Miseráveis”, dada a completa anestesia de ver caber, também ali, meu Rio de Janeiro de 2004 perfeito nas falas cruas daquele autor hipnótico.. – E eu jamais voltei daquela viagem.
Até hoje, muitos eus depois, não sei escolher o que, especificamente nas linhas daquele tijolo verosímil, levou embora a parte de inocência que precisava mesmo ir, dando lugar e voz a uma consciência que até hoje fica e grita por humanidade e igualdade.
Talvez Jean Valjean, andando à toa pelas ruas de Vila Isabel, tenha visto pela janela do ônibus o tanto que eu não podia enxergar de realidade a minha volta. E em mais uma de suas generosas jornadas de resignação, fez sinal pra mim e me acordou desse transe insano que nos cega diante da miséria cotidiana.
Não sei… mas aprendi, naquela inesquecível volta ao mundo, que “viajar é um constante nascer e morrer”, e que aquele “eu” que nascia, entre as estações de Paris e Rio de Janeiro, saberia pra sempre o valor de um pão, de um livro preferido, e o da mais justa empatia.