Dezembro de 1980, com uma ordem judicial em mãos, me despedi da casa e da vida que eu tinha até então. Estava com 14 anos de idade quando pedi essa ordem para me proteger do lar abusivo que eu vivenciava, da parte da minha mãe, que era uma pessoa muito severa, tinha muita violência psicológica e física desde os 5 anos de idade e de abuso do meu pai, dos 8 anos e meio até os 13. Hoje, com 55 anos, eu olho para tudo isso e penso que o machismo, todo tipo de machismo, vem com uma sequência de abuso e o abuso vem com uma sequência de machismo. Se tratando de homem eu não vejo uma maneira de separar uma coisa da outra, porque o machista quer impor e a partir do momento que você quer impor algo, você já está abusando. Agradeço muito essa oportunidade que BELAS URBANAS abriu para a minha fala e gostaria, não de falar desse passado necessariamente, mas sim partilhar como essas experiências desafiadoras tornaram quem eu sou hoje.
Aos 14 anos, eu disse para mim mesma: eu não quero essa vida, eu não mereço, vou fazer minhas escolhas e para fazer isso, eu tenho que me afastar de tudo e de toda essa realidade, mesmo sendo o meu lar, minha família e meus pais.
Foi o que eu tive que fazer, parar os estudos, mudar de cidade e trabalhar para o meu sustento. Casei muito cedo porque eu queria a emancipação, foi a maneira que eu encontrei de me sentir segura tendo a certidão de casamento e também sendo mãe. Fui mãe aos 17 anos da minha primeira filha, eu desde lá, sempre mantive a determinação de trabalhar, ter a minha renda, a minha independência financeira. Trabalhei em várias áreas, se contasse daria um livro (pretendo escrever um dia, minha biografia sobre essa história que é muito, muito longa).
Quando meu primeiro casamento chegou ao final, por abuso e por machismo, não dava mais pra continuar, foi ele quem saiu de casa e eu, com minha independência financeira, mantive a minha vida. Ter a facilidade de me adaptar a equipes de trabalho e à grupos contribui para enfrentar meus medos, acreditando que eu podia seguir em frente.
Tive o segundo relacionamento, esse um pouco diferente, ele morava com a mãe na semana e no final de semana comigo. Tive meu segundo filho e depois de um tempo, por machismo e infidelidade, esse relacionamento também acabou. Eu estava com meus dois filhos, na nossa casa, tinha as minhas coisas, meus empregos e até voltei a estudar!
De todos os desafios que foram vários e muitos sérios, mantendo minha dignidade, eu fiz minhas escolhas, estando e sendo quem eu quisesse ser. Criei meus filhos (hoje adultos, formados e casados), priorizando a igualdade, sempre fizeram de tudo em casa. Aos finais de semana todo mundo trabalhava, colaborava com os afazeres do dia a dia e aprendiam também a cuidar de suas coisas e isso foi naturalmente, eu achava que era muito importante seguir meu coração. Hoje vejo meu filho dividir todo o trabalho de casa com a esposa, que no meu olhar é a prática daquilo que ensinei: a igualdade. Assim como percebo essa qualidade na relação da minha filha com seu companheiro.
Busquei transmitir tanto para o menino quanto para menina que somos iguais, que devemos ter respeito a todos independente de gênero, que somos responsáveis pelos nossos atos e que a nossa felicidade está em nossas mãos, não está nas mãos do outro.
Hoje me sinto em um relacionamento saudável buscando equilíbrio e igualdade em todos os sentidos, me aposentei, continuo trabalhando, mas agora trabalho naquilo que me libertou, que tanto me ensinou, que tanto me abriu os olhos para o meu caminhar: as terapias integrativas e a constelação familiar. Quero levar para todos, principalmente para as mulheres, como profissão e como voluntariado (já iniciei atuando no grupo de mulheres pela justiça) minhas experiências e saberes. O mais grandioso e mais plausível disso tudo é que eu sou uma mulher preta aprendendo, desaprendendo, para reaprender… ressignificando.
Amor e carinho a minha companheira que registrou essa foto em nosso jardim e contribuiu com o texto acima, gratidão Carolina Teixeira Martins por estamos juntas nessa existência.