Há alguns anos eu recebi um presente de uma plataforma online: um livro (virtual) e a chance de presentear mais duas pessoas com o mesmo link de leitura.
O livro diz sobre o sagrado feminino, eu já li e acho a história digna de muitas releituras e estudos.
Fiquei feliz demais e na hora já pensei nas duas mulheres, amigas, que eu gostaria de presentear. Uma delas é minha contemporânea de maternidade, um exemplo de força e determinação e a outra uma mulher muito sábia que passava por um momento profissional difícil e vivia o ostracismo mais dolorido que eu já acompanhei.
Encaminhei o link com o coração pleno de certezas e liguei para comunicá-las em viva voz que eram minhas escolhas.
A primeira, Beatrice, recebeu como se fosse uma joia. Disse que devoraria palavra a palavra do que ela chamou de aventura da primeira leitura totalmente virtual. Conversamos e rimos por alguns longos minutos, num papo bom e cheio de gratidão.
A segunda, Marta, me deixou atônita com o telefone no ouvido e um nó no peito. Ela respondeu seca que não tinha tempo para esse tipo de leitura, que estava numa fase de cuidar do espírito e se detinha à literatura religiosa que, de acordo com suas palavras, acrescentavam luz à sua formação moral e lhe permitiam a evolução. Não digo que foi grosseira, mas, soberba. Agradeceu e eu me desculpei, me sentindo a inconveniente que leva chocolates para diabéticos.
Naquele instante dois pensamentos me cutucavam: joguei fora uma oportunidade, já que uma vez enviado o link, era irrevogável; e, como alguém que eu julgava inteligente, se prestava a esse tipo de limitação?
Por dias amarguei minha indignação.
Até que me lembrei de uma frase do Umberto Eco que diz “nem todas as verdades são para todos os ouvidos” e passei a olhar Marta e sua busca por evolução com outro ânimo.
A vida dela estava de ponta cabeça, os sonhos enterrados, a força minada, e a religião era o seu bote salva-vidas no meio do oceano.
Não tinha como ela desviar sua atenção para brisa ou para o céu… Sobreviver exige esforço total.
Assim, eu aprendi sobre o mundo possível.
Cada um tem uma trena do (seu) possível. Trena e não régua, porque a gente avalia quando esticar ou recolher à medida que vive. É maleável, programável e se vale da nossa disposição e autonomia.
Essa metáfora me confortou e abriu espaço em mim para continuar em contato com a Marta, sem ressentimentos.
Por que contar essa história em plena pandemia?
Porque eu me dei conta que estamos vivendo o nosso possível.
Vejo as pessoas discutindo sobre o que é melhor pensando apenas nelas e sensação do conflito entre a régua e a trena volta a me cutucar.
Esse drama de muitas vezes quando alguém defende algo que não concordamos nos fazermos reféns das nossas convicções (ou daquelas que nos parecem mais seguras), mas esquecermos de reconhecer as
impossibilidades que nos cercam.
Dentro das nossas contradições, queremos paz e fechamos os olhos, crentes de que estamos envolvidos e esclarecidos.
Deixamos de vislumbrar o que mostram outros pontos de vista de considerar o que vem a ser a medida do possível para cada um.