Posted on 2 Comments

Na voz de Gal, memórias de uma canção e de um filme

As primeiras vezes que escutei a canção “Negro Amor”, na interpretação de Gal Costa, o que mais me chamou atenção foi perceber um jeito estranho do que eu estava acostumado a ouvir na voz da cantora tropicalista. Esse estranhamento se deu, talvez porque o timbre da voz era dissonante; mesmo assim gostei da música.

“Negro Amor” foi gravada por Gal Costa no álbum “Caras e Bocas”, lançado em 1977. É uma versão de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti, para a canção de Bob Dylan “It’s all over now, baby blue”. A voz sedutora de Gal, chama a atenção pelo distanciamento dissonante que ela imprime em sua competente interpretação. Bem diferente de outras músicas da cantora, quando a doçura predomina, nessa música Gal confere um tom de voz sarcástico, que não busca imitar Bob Dylan, mas transpor a textura árida característica da voz do cantor estadunidense. A composição do trovador pop flutua num fluxo de consciência e monta uma justaposição de frases sustentadas por uma melodia caudalosa e remete à cultura pop dos anos 1960.

A letra de “It’s all over now, baby blue” está contaminada de influências da poesia simbolista de Artur Rimbaud. Estudiosos da obra de Bob Dylan acreditam que provavelmente o compositor faz referências às diversas personalidades que orbitavam no seu círculo de convivência em 1966, época em que a música foi incluída no álbum “Bringing it all back home”.

Caetano Veloso em seu livro “Verdade Tropical” lembra que muitas vezes entendeu erradamente o texto das canções de Bob Dylan e, mesmo sabendo que ele não estava dizendo o que Caetano supunha ouvir, o compositor baiano chegou a frases e ideias que lhe soavam maravilhosas que, talvez tenha usado como sugestões para letras de suas próprias canções. Para escrever sua versão para a música de Bob Dylan, Caetano fez uma tradução livre da música de Bob Dylan, a começar pela feliz transposição do título “Negro Amor” no lugar de “Baby Blue”.

Passaram-se muitos anos e, apesar de conhecer e gostar de “Negro Amor”, na voz de Gal Costa, eu não registrei a canção na minha memória, o que aconteceu com muitas outras músicas da cantora baiana que sempre estiveram presentes nas minhas seleções musicais. Sempre gostei da Gal Costa, como uma das minhas cantoras prediletas.

Em 1996 fui ao cinema assistir ao filme “Basquiat – traços de uma vida” dirigido por Julian Schnabell: uma cinebiografia de Jean-Michel Basquiat (1960-1988), artista conhecido por suas pichações e grafites nas ruas de Nova York. De origem haitiana Basquiat foi descoberto por Andy Warhol, teve uma ascensão meteórica na cena da pop-arte, tornando-se uma estrela no mundo das artes.

O filme imperdível de Schnabell tem uma trilha sonora fantástica. Logo no início, numa cena em que Basquiat assiste vídeos na TV, ouve-se em back-ground uma música familiar. Trata-se da gravação de “It’s all over now, baby blue” na voz do cantor Van Morrison. Ao reconhecer a melodia da música, imediatamente lembrei da versão cantada por Gal Costa, voltei à escutar a música e fiz uma comparação entre as duas versões.

Vale a pena conferir alguns versos da canção, pois permite perceber esse paralelo entre o filme sobre Basquiat e a canção de Bob Dylan-CaetanoVeloso e Gal Costa:

The highway is for gamblers
Better use your sense
Take what you have gathered
From coincidence

The empty handed painter from your streets

Is drawing crazy patterns on your sheets.


Na versão de Caetano:

A estrada é prá você, e o jogo e a indecência

Junte tudo que você conseguiu, por coincidência

E o pintor de rua que anda só

Desenha maluquice no seu lençol

Esse “pintor de rua” que aparece nas duas versões pode ser uma referência a Jean-Michel Basquiat: uma vida enunciada em pichações, depois, descoberta como nova arte, pop arte, ou arte pós-moderna. Traços de uma vida em plenitude criativa.

Tanto o filme de Schnabell, como a canção de Bob Dylan na tradução de Caetano Veloso, lindamente interpretada por Gal Costa apresenta figuras undergrounds, num desfile de pessoas que perambulam à deriva ignorados pela sociedade. Filme comovente, canção comovente pra quem frequenta a arte, não como mera representação e entretenimento, mas antes de tudo como porta voz de uma época e ao mesmo tempo como um grito de pedido de socorro. E não tem mais nada, negro amor!

https://www.youtube.com/watch?v=58qQk69cWXU

João André Brito Garboggini – Belo Urbano – é publicitário, ator e diretor teatral e tem três filhos.
https://www.youtube.com/watch?v=58qQk69cWXU
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *