Vida de médico não é fácil. Vida de enfermeira também. Principalmente quando se tem mais de um emprego e se trabalha doze horas em cada um deles. Faço 24 horas direto, dia sim dia não, sete dias por semana. Minha rotina é cansativa, mas adoro o que faço. São dois hospitais, duas UTIs, muitas vidas e uma quantidade considerável de mortes. Algumas doloridas. Esse é o meu trabalho e ainda consigo sorrir no fim do dia. Mas esse não é o caso. Só fiz essa breve introdução para que vocês entendam um pouco o meu estado físico e emocional depois de uma jornada dupla de trabalho. Era quinta-feira e voltava pra casa com um nó no peito. Naquele dia havíamos perdido uma paciente muito querida. É assim que falamos quando não conseguidos salvar os pacientes.
Desci as escadas da estação Clínicas. A plataforma, quase sempre vazia naquela hora, era ocupada apenas por algumas pessoas, na maioria, vestidas de branco como eu. Tomada pelo cansaço e um pouco angustiada, sentei-me. Abaixei a cabeça e quase cochilei. Quando senti aquele vento morno nas pernas, que sempre precede a chegada do trem, levantei a cabeça. Algo me chamou a atenção do outro lado da plataforma. Parada, em pé, olhando fixamente pra mim, estava uma mulher toda vestida de preto dos pés a cabeça. Ela usava um chapéu preto também. Aparentava ter uns 20 e poucos anos e era muito branca. Um tanto quanto pálida. Foi isso o que pude perceber no curto espaço de tempo entre a chegada do trem na plataforma e o sumiço imediato dela após a parada da composição.
Fiquei intrigada com aquela mulher, mas resolvi não pensar muito. Na verdade não tinha forças nem pra pensar. No dia seguinte, não sei porque, a imagem me veio à cabeça mais de uma vez. Não o suficiente pra que eu perdesse meu precioso tempo em tentar entender o que fazia aquela mulher olhando pra mim daquele jeito. Mal sabia eu que aquela história só estava começando.
Ao final da minha jornada seguinte, como fazia habitualmente, desci as escadas da estação Clínica. Igualmente cansada, só que dessa vez sem nó no peito. Fui pro meu banco, sentei-me e abaixei a cabeça. Quando veio o ventinho do trem, levantei-me e tomei um susto. Lá estava ela. Olhando pra mim de novo. Resolvi olhar nos seus olhos. A distância que nos separava era de uns três metros. Vi uma tristeza serena como nunca vi antes. Gelei. O trem chegou e ela sumiu novamente. Na vez seguinte a mesma coisa. E na outra também. A imagem daquela mulher parada olhando com tristeza pra mim estava me atormentando. Perguntei pra todo mundo que eu conhecia se alguma vez a tinham visto na estação ou por ali. Nada. Ninguém nunca tinha visto uma mulher com aquelas características. Senti medo de estar vendo coisas. O cansaço, a dupla jornada, o trabalho pesado de uma UTI, poderia estar desviando a minha consciência para o plano do imaginário. Em outras palavras, ou estava com um nível absurdo de estresse ou estava ficando louca mesma. Mas não era possível. A mulher era real demais. A única coisa esquisita era ela sempre estar com a mesma roupa preta e de chapéu. O que faria uma mulher de chapéu naquela hora da noite numa estação de metrô? Quanto mais eu pensava menos entendia o que estava acontecendo. Não me restava outra opção. Na próxima vez eu iria tentar falar com ela ou iria ao seu encontro. Me enchi de coragem. Estava com medo. Ela poderia ser real e poderia querer me assaltar ou me fazer algum mal. A gente nunca conhece as pessoas que cruzam nosso caminho. E se talvez ela não fosse real, fosse um fantasma. O que um fantasma poderia querer comigo? Tinha decidido. Iria enfrentar a situação. Não queria viver atormentada com aquela dúvida.
Meu coração quase pulava do peito quando desci as escadas. Tinha chegado a hora de descobrir a verdade. Ao chegar na plataforma nem pensei em ir pro meu banco habitual. Meu olhar se projetou para o outro lado da plataforma. Lá estava ela. Do mesmo jeito. Devolvi o olhar em sua direção. Ela me abriu um sorriso, ao qual retribui um tanto quanto sem jeito. Num impulso, virei-me e subi correndo as escadas. A única coisa que eu queria era chegar do outro lado antes da chegada do trem e do seu desaparecimento instantâneo. Quase sem fôlego e parecendo uma doida entrei na plataforma. Olhei de um lado a outro e não vi nada. Nenhuma alma viva ou morta. Eu a havia perdido mais uma vez. Nessa hora senti um cheiro forte de rosas misturado a um perfume doce. Olhei pro outro lado, onde eu deveria estar, e vi um homem sentado no meu banco. Aproximou-se uma senhora e sentou-se ao seu lado. Ele anunciou o assalto. A mulher reagiu. O homem tirou a pistola do bolso, deu dois tiros na mulher e subiu as escadas correndo. Senti uma forte tontura e caí. Ao acordar, no ambulatório do hospital que eu trabalhava e que fica em frente à estação do metrô, fui informada de que o homem que atirou estava drogado e foi capturado na porta da estação. E que a mulher, infelizmente havia morrido.
Tomei um táxi e fui pra casa. Era tarde demais e já tinha perdido o último trem. Não consegui pregar os olhos. Aquilo tudo não saía da minha cabeça. A mulher, o assassinato e o cheiro de rosas. Fiz mil suposições, todas racionais e não encontrava respostas. Parti então para o outro lado dos fatos. Fiz um esforço danado pra aceitar a suposição que me invadiu a cabeça, instantes antes de eu desmaiar na estação: a mulher que eu havia visto até então era um espírito que veio ali só pra me salvar. Era claro. Se eu não a tivesse visto, ficada intrigada e tentado ir ao encontro dela do outro lado, estaria sentada no mesmo banco de sempre e seria eu a vítima do homem drogado. Tentei resistir o quanto pude, mas nada, absolutamente nada fazia sentido. A única história que encaixava parte por parte era essa. Definitivamente, uma coisa do outro mundo. É claro que não disse isso a ninguém. Poderiam rir de mim. Eu mesma iria rir de alguém que me contasse uma coisa dessas.
Em silêncio comecei a fazer conjecturas. Logo de cara veio a inevitável pergunta: Por que eu? E quem era essa mulher?
Eu já tinha ouvido muitas histórias da estação Clínicas. Não sei se todos sabem, mas essa estação fica ao lado do cemitério do Araçá. Dizem que na época da construção, durante as escavações, muitos operários tinham visões assustadoras lá embaixo. Falavam que os espíritos apareciam frequentemente e que continuam aparecendo até hoje, principalmente depois do pôr do sol. Um homem disse uma vez que os espíritos não conseguiam descansar com o vai e vem dos trens.
Quero deixar uma coisa bem clara aqui: sou atéia e não acredito em nada disso. Nunca vi nada também. Pelo menos não até esse momento.
Contudo, o que tinha visto era real e tudo levava a crer que poderia ser um espírito. Foi nisso ao que me agarrei pra tentar desvendar esse mistério e acreditar que eu ainda estava lúcida, apesar de tudo. Se fui ajudada por um espírito, deveria ao menos saber quem era e agradecer o que tinha feito por mim.
Reservei meu sábado de folga para começar a minha busca. Não sabia quem eu procurava. Tinha uma imagem na cabeça e um roteiro a seguir. A primeira etapa era o cemitério do Araçá. Era uma manhã quente de primavera. Fiquei abismada com a beleza e paz daquele lugar. Muitas árvores e verdadeiras construções em homenagem aos mortos. Muitas delas adornadas com esculturas magistrais de Victor Brecheret. Não que passasse a freqüentar cemitérios dalí pra frente. Não era meu estilo, mas era um lugar bonito de se ver. Deve ser por isso que os góticos adoram cemitérios.
Depois da minha entrada triunfal pela alameda principal e das minhas descobertas iniciais, comecei a olhar túmulo por túmulo, nome por nome, foto por foto. A busca poderia durar um dia inteiro. Um dia não, semanas. Até meses lá dentro. E se ela não tivesse enterrada ali? Se tivesse em outro cemitério?
Parei por um instante e respirei fundo. Estava me achando uma doida varrida e morrendo de medo de algum conhecido me ver. Tudo bem que estava toda vestida de preto e de óculos escuros. Pensei nesse disfarce e numa boa explicação caso um amigo me encontrasse ali.
Já passava do meio dia e nada. Não sabia mais por onde tinha passado e a fome começou a apertar. Saí do cemitério e fui até um bar que fica do outro lado da Avenida Dr Arnaldo. Poderia encontrar alguém do hospital, mas estava cansada e com fome e não queria andar dois quarteirões abaixo na Teodoro Sampaio. Comi um queijo quente, tomei um suco de laranja e retomei novamente minhas buscas.
A tarde começava a despedir-se do dia e eu estava exausta. Mesmo assim resolvi parar embaixo de uma árvore e assistir ao pôr do sol que se deitava pelos lados do Sumaré. Acendi um cigarro. Não costumo fumar sempre, apenas em situações especiais. E essa situação, convenhamos, era mais do que especial. Valeria aquele cigarro e aquele breve descanso para minhas pernas. Dei algumas tragadas. Meu olhar vagava perdido, sem achar um ponto fixo. Assim como minhas convicções sobre tudo naquele momento, inclusive sobre minha sanidade. Puxei fundo e dei a última tragada no cigarro. Como se atraída por uma força olhei pra frente. Ela estava ali, olhando pra mim. Não como das outras vezes. Era a sua foto estampada numa sepultura de mármore preta. O mesmo olhar triste e o sorriso enigmático. Fui chegando perto, quase que tropeçando nas minhas próprias lágrimas. Mais uma vez ela me ajudou. Agora a encontrar ela mesma.
Tirei uma caneta da bolsa e anotei seu nome, data de nascimento e data de morte. Chaamava-se Maria Georgete Gomes. Tinha nascido em 06 de junho de 1933 e morta em 29 de outubro de 1957. Corri até a administração do cemitério e lá fui informada, que a pedido da família, nenhuma informação poderia ser dada. Diante da minha cara de decepção, o funcionário me disse: “Minha senhora, não posso entrar em detalhes, mas essa moça teve um fim trágico”.
Fui para casa atordoada, cansada, cada vez mais confusa e com uma certeza absoluta: vi um espírito e ele se comunicou comigo.
Passei o fim de semana juntando mais peças do meu quebra-cabeças e cheguei a mais uma conclusão. Ela talvez tenha me ajudado para que eu também não tivesse tido um fim trágico como ela. Mas com isso aquela senhora teve um fim trágico. Por que ela me escolheu? Será que não era a minha hora e sempre dão um jeitinho de nos avisar? E que ela era apenas uma mensageira disso?
É claro que não me contentei com esse desfecho. Eu precisava saber mais.
Na segunda-feira pedi licença de uma semana dos dois hospitais. Aleguei estresse. Aceitaram rapidamente. A minha cara não deveria ser das melhores depois de ter passado o fim de semana praticamente em claro.
Três dias de pesquisas e nada. Internet, arquivo público, biblioteca, cartório e mais uma dezena de lugares que se possa imaginar. Cheguei a voltar no cemitério e implorar na administração, mas é claro, saí e lá sem nada. De repente, numa dessas idas e vindas entre um lugar e outro, me deu um estalo. Se ela teve um fim trágico, ela pode ter sido assassinada. Não tive dúvidas. Fui direto ao museu do crime da polícia civil. Lá chegando foi relativamente fácil. Expliquei a situação, o que estava procurando e dei o nome dela. Em menos de dois minutos o atendente simpático voltou com uma pasta e colocou na minha frente. Estava tudo ali. A mulher era uma jovem enfermeira que foi brutalmente assassinada ao sair do hospital depois de um dia de trabalho. O hospital que ela trabalhava era um antigo hospital que deu lugar ao que é hoje o maior complexo hospitalar da cidade e onde, por acaso, eu trabalho. E a rua onde foi assassinada é a rua onde passo todos os dias quando vou para a estação do metrô Clínicas.
Um calor aqueceu meu coração. Meu choro se misturava a um riso tímido e orgulhoso. Minha busca havia chegado ao fim e algo de muito diferente estava se processando dentro de mim.
Nunca contei essa história a ninguém, nunca mais a vi e também nunca vi nenhum outro espírito. Aquele encontro foi único e agradeço todos os dias por tê-lo tido. Minha vida voltou ao normal. Tudo continua como antes, a não ser por um detalhe: todo dia 12 de maio, dia da enfermeira, vou até o cemitério e coloco flores em seu túmulo. É como se eu dissesse: “Parabéns pelo dia de hoje minha amiga”.
Gil Guzzo – Belo Urbano, é autor, ator, diretor e fotógrafo. Em teatro, participou de diversos festivais, entre eles, o Theater der Welt na Alemanha. Como diretor, foi premiado com o espetáculo Viandeiros, no 7º Fetacam. Vencedor do prêmio para produção de curta metragem do edital da Cinemateca Catarinense, por dois anos consecutivos (2011 e 2012), com os filmes Água Mornas e Taí…ó. Uma aventura na Lagoa, respectivamente. Em 15 anos como profissional, atuou em 16 peças, 3 longas-metragens, 6 novelas e mais de 70 filmes publicitários. Em 2014 finalizou seu quinto texto teatral e o primeiro livro de contos. É fundador e diretor artístico do Teatro do Desequilíbrio – Núcleo de Pesquisa e Produção Teatral Contemporânea. E o melhor de tudo: é o pai da Bia e do Antônio.