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Ônibus errado. Estação certa.

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Algumas pessoas têm um olhar atento aos acontecimentos e ao jeito de viver dos cidadãos da sua cidade. Homens e mulheres que têm hábito de perceber o que está além do senso comum, o que ninguém vê ou o que não se ouve em se ouvindo. João é uma dessas pessoas capazes de descobrir e revelar coisas incríveis e que vão pra debaixo do tapete em grandes cidades.

– Se bobear São Paulo te engole e você deixa passar um monte de coisas legais. Foi com essa frase que ele começou a contar a epopéia da sua terça sem lei. Terça-feira é o dia da sua folga, é o dia de sair pelas ruas meio sem rumo, meio sem lei e viver a cidade. É o dia em que tudo pode acontecer, inclusive tomar o ônibus errado, coisa que ele fazia com certa freqüência. Sua intenção era ir até a Paulista, conhecer a nova Livraria Cultura no Conjunto Nacional. Errou e foi parar no centro da cidade. Antes de chegar à Praça do Correio, ponto final do ônibus, resolveu descer na Praça Marechal Deodoro e pegar o metrô. Com poucas estações e uma baldeação no meio do caminho estaria na estação Consolação, ao lado da livraria. Pelos seus cálculos o trajeto todo levaria uns 23 minutos. Foi pensando nisso que desceu as escadas da estação e teve a primeira surpresa do dia. Na verdade não era surpresa coisa nenhuma. Ele saía de casa procurando coisas novas e diferentes. Não precisou de muito esforço. Bastou olhar pra frente. Na parede que engolia a escada rolante lotada de gente apressada, um quadro pendurado sorria para os olhares perdidos. Aquele quadro era como um anfitrião que recebe alguém em casa dizendo olá, bom dia, seja bem-vindo e esse alguém nem olha pra ele ou pede licença pra entrar. Ou seja, o quadro estava lá na escada de acesso à estação e ninguém dava a mínima importância para ele. Aquilo chamou a atenção de João de um modo diferente do habitual. Ao chegar ao piso inferior pegou a escada no sentido contrário voltando para a rua. Queria descer de novo e olhar com mais atenção aquele quadro. Fez esse caminho três vezes. Ao chegar na bilheteria não se conteve. Perguntou ao bilheteiro se ele sabia de quem era o quadro. O funcionário do metrô disse que não se lembrava não.

– Tá cheio de quadro dele espalhado pela estação. Lá embaixo tem uma plaquinha com o nome dele.

João saiu da bilheteria disposto a ver os outros quadros e a tal da plaquinha com o nome do pintor. Antes mesmo de passar pela catraca, atraído pela luz da tarde que invadia um grande jardim interno no meio da estação, percebeu a existência de um outro quadro, gigantesco, reinando absoluto na solidão do jardim espremido no subsolo da cidade. Ficou parado alguns instantes. Chegou a duvidar se era aquele buraco no teto da estação e que dava pra rua, que iluminava as plantas do jardim e os homens retratados no quadro, ou se eram ambos que, por absoluta necessidade de sobrevivência, subiam aos céus da cidade espalhando o verde e a humanidade perdida no concreto. Aproximou-se da mureta e, olhando para baixo, logo viu que poderia descobrir novos ângulos. Passou correndo pela catraca e começou a descer mais um lance de escadas. Agora, na sua frente, um outro quadro o impressionou ainda mais. Declaração do Homem e do Cidadão, esse era o seu nome estampado bem no centro, ladeado pela imagem de inúmeros homens e mulheres do povo. Gente igual a milhares de cidadãos que descem todos os dias as escadas e que talvez nunca tenham se dado ao trabalho de olhar para o seu próprio espelho. Porque era isso que aquele quadro era: um grande espelho pra todo mundo que descia as escadas. Foi invadido por um misto de encantamento e felicidade. Sentia-se sozinho e feliz. Era como se estivesse funcionando numa velocidade muito abaixo do normal e como se o som do ambiente tivesse sido simplesmente cortado, igual a aquelas cenas de filme americano quando se aproxima o momento do clímax final. Aquela fração de segundo antes do tiro fatal no bandido ou do beijo que arrebata uma grande paixão. Tudo fica em silêncio e em câmera lenta até que o som do tiro ou o lábio da amada trazem tudo de volta ao normal.

No caso do nosso João, que não é astro do cinema americano, esse estado de entorpecimento pela descoberta de uma estação repleta de obras de arte, só foi rompido pelo barulho do trem chegando à plataforma. Ficou parado um pouco mais, até se desembaraçar daquele monte de gente que se atropelava pra entrar e sair do trem. Andou uns dois metros e chegou ao quadro que tinha a tal da plaquinha. Lá estava o nome dele: Gontran Guanaes Netto. Esforçou-se em suas lembranças, mas de fato não lembrava daquele pintor, se quer o conhecia. E olha que ele era um cara ligado em tudo. Não se preocupou com isso, sabia que iria atrás de mais informações sobre ele. Resolveu absorver um pouco mais daqueles quadros. Subiu novamente as escadas, mas desta vez não optou pela rolante, preferiu a boa e velha escada de pedra. Parou no meio e ficou repetindo pra si mesmo, várias vezes: declaração do homem e do cidadão. Olhou no relógio, estava quase uma hora dentro da estação. Desceu os degraus e foi saborear novamente aquele quadro no meio do jardim. Ali embaixo, bem ao lado da plataforma e olhando pra cima, percebeu o quanto era pequeno diante do mundo e da arte. Soube também o quanto era bom ser sensível ao novo, ao surpreendente.

– Não via a hora de contar isso a vocês.

Leandro, Rogério e Zé, amigos inseparáveis daquela mesa de bar, compartilhavam daquela emoção. Era como se tivessem – entre um copo ou outro de cerveja ou entre uma garfada no macarrão com molho de miúdos de frango que um dos amigos tanto adorava , vivendo com ele cada minuto daquela tarde de terça-feira. Para criar um suspense pediu um minuto para ir ao banheiro, mas antes de ir disse: – E a maior de todas vocês ainda não sabem. Já volto.

Rogério foi logo dizendo:

– Quando o cara quer, faz arte faz em qualquer lugar. É só querer.

– É meu amigo, o cara do metrô que autorizou isso deve ser uma pessoa muito sensível à causa artística. Completou Leandro.

Zé, que aparentemente era o mais racional de todos, pediu mais uma cerveja pro Luxemburgo – era assim que eles chamavam o garçom que os conhecia de longa data. E Ficou pensando:

– Amanhã mesmo vou lá ver essa exposição permanente. Tem coisas que a gente não vê em nenhum lugar do mundo.

Encheu o copo dos quatro enquanto João se ajeitava na cadeira. O gran finale daquele dia, disse ele, foi um funcionário do metrô que aproximou-se, dizendo:

– O senhor gostou dos quadros?

João estranhou a abordagem súbita, mas respondeu afirmativamente.

– É que tô prestando atenção e vi que o senhor tá aqui há um tempão….olha, eu conheci esse pintor pessoalmente. Eu trabalho nessa estação há muito tempo e lembro quando ele tava pintando os quadros aqui. Ele pintou também lá na estação Itaquera, mas o que eu quero contar é outra coisa. Lembro como se fosse hoje. Era um domingo. O Corinthians jogou no Pacaembu e o Palmeiras no Palestra Itália. Depois do jogo se encontraram aqui, os torcedores. Foi pancada pra todo lado e eu me escondi dentro da bilheteria. Quebraram quase tudo, mas ninguém tocou nos quadros e nas coisas do pintor. Tava tudo aí: pincel, tinta, um monte de coisas. Não sei como chegaram a esse acordo no meio daquela confusão, mas achei aquilo uma coisa bonita. A briga foi e é abominável, mas pouparam o trabalho do seu Gontran. Era como se a obra de arte sobrevivesse a fúria dos homens. Olha, se um dia eu encontrar de novo com ele, vou perguntar se ele é corinthiano ou palmeirense. Talvez nem goste de futebol, não é mesmo? Bom, o senhor me dê licença que vou indo.

Deu um gole na cerveja antes de descrever seus minutos finais na estação. Nem precisava, estavam todos satisfeitos com a história. Antes, contudo, optou novamente pelo suspense, só que em vez de ir ao banheiro, resolveu contar tudo que já tinha descoberto sobre o tal pintor. Disse que naquele dia mesmo, abortou a idéia de ir à livraria e voltou pra casa, vasculhou na Internet e achou tudo sobre ele, inclusive o seu site.

– Gontran Guanaes Netto nasceu em 1933, em Vera Cruz, no interior de São Paulo. É filho de uma família de trabalhadores rurais e teve pouca escolarização formal. Suas pinturas são de homens simples, de gente do povo, do campo. De gente daqui e de todos os lugares. É um pintor que revela a existência de milhões de cidadãos que existem sem existir.

João se encheu de orgulho ao encerrar a breve biografia desse artista.

– Hoje Gontran mora em Itapecerica da Serra, cercado pela natureza, corre 10 quilômetros todas as manhãs e se dedica à pintura 12 horas por dia.

O motivo do orgulho? A relação entre a arte e a corrida. João é apaixonado por arte e adora corrida. Esporte que pratica com freqüência e que apresentou a Zé, hoje seu parceiro de pistas.

– Ô João, um dia desses a gente podia fazer uma visita pra esse pintor. A gente vai correndo lá do limão até Itapecerica.

Os quatro caíram na gargalhada. Beberam mais um pouco, falaram de política, discutiram futebol, pediram outra torrada de alho. No fim da noite, na porta do bar, onde sempre gastavam mais alguns minutos, João disse que a coisa mais louca que aconteceu com ele naquele dia deu-se um pouco antes de ir embora.

Um novo trem chegou à plataforma e novamente se viu envolvido naquela confusão de gente, só que dessa vez não ficou sozinho após a dispersão. Um casal de cegos estava ao seu lado, vagando como ele pelo espaço vazio com a saída do trem, à procura de um caminho. Era como se o casal procurasse sentir o lugar de um jeito diferente. Em vez da pressa, a sensação. Pra ele, aquele homem e aquela mulher também podiam sentir aqueles quadros como ele sentia.

– Eles podiam ver sem enxergar o que muitos enxergam sem ver.

– Bonito isso. Disparou Leandro, enquanto Rogério deu o toque final

– Ihhhhh….tá ficando piegas João. Vamos embora.

Mais uma vez caíram no riso. No caminho pra casa, sentia-se feliz por ter compartilhado com os amigos a sua experiência com os quadros e a história daquele pintor. Gontran Guanaes Netto foi mais um artista que descobriu graças a uma coisa especial chamada arte no metrô. Um projeto que ele conhece desde 1978, quando tudo começou na Sé, e que já o fez percorrer diversas estações em busca de painéis, quadros e as esculturas.

Na manhã seguinte, desejou contar pra todo mundo:

– Olha, tem uma exposição permanente muito boa lá na estação Marechal…vai lá ver.

No fundo, sabia que não iria fazer isso. Cada qual deve descobrir o jeito de olhar e perceber a sua cidade. Arte tem dessas coisas. Viver de olhos abertos também.

12084821_872243929489874_2008663406_o (2) Gil Guzzo 2

Gil Guzzo – é autor, ator e diretor. Em teatro, participou de diversos festivais, entre eles, o Theater der Welt na Alemanha. Como diretor, foi premiado com o espetáculo Viandeiros, no 7º Fetacam. Vencedor do prêmio para produção de curta metragem do edital da Cinemateca Catarinense, por dois anos consecutivos (2011 e 2012), com os filmes Água Mornas e Taí…ó. Uma aventura na Lagoa, respectivamente. Em 15 anos como profissional, atuou em 16 peças, 3 longas-metragens, 6 novelas e mais de 70 filmes publicitários. Em 2014 finalizou seu quinto texto teatral e o primeiro livro de contos. É fundador e diretor artístico do Teatro do Desequilíbrio – Núcleo de Pesquisa e Produção Teatral Contemporânea e é Coordenador de Produção Cultural e Design do Senac Santa Catarina. E o melhor de tudo: é o pai da Bia e do Antônio.

 

 

 

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