Minha memória da infância tem cheiro, tem sabor, tem brilho nos olhos, tem o barulho da colher de pau batendo a massa daquele bolo feito no sábado à tarde por minha mãe – Dona Dora.
A expectativa já começava com o anúncio de que teríamos algo especial para o café da tarde.
Era comum ficarmos, eu e meus irmãos, pertinho da nossa mãe, enquanto ela separava cada ingrediente e aproveitava para contar suas histórias da infância na Fazenda Império na Bahia, descrevendo suas memórias também ligadas aos bolos e doces que eram feitos por sua mãe.
Sempre que aguardávamos a deliciosa guloseima em forma de bolo, às vezes de laranja, às vezes como um bombocado ou como uma torta, minha mãe descrevia, e ainda descreve todo o ritual para se preparar os doces quando ela era criança. Naquele tempo, tinha que pegar a lenha e acender o forno, juntar os ingredientes muitas vezes produzidos ali mesmo. O coco, que não pode faltar na culinária baiana, tinha que ser quebrado e ralado. O milho, que também sempre teve presença obrigatória no cardápio, precisava ser colhido, para ser limpo e ralado. Já se sabia quem ficava por perto, porque sobrava coco e milho ralado para todo lado.
Durante esse momento cheio de magia, eu e meus dois irmãos ouvíamos as histórias contadas por minha mãe e ficávamos pensando na quantidade de bolos que eram feitos por minha avó, afinal, eram 15 filhos das mais variadas idades, e sempre havia outras pessoas por lá.
Minha mãe, a sexta filha de Dona Anita e Sr. Manoel Gomes, junto com suas irmãs mais próximas em idade, ficava muitas vezes encarregada de tomar conta dos irmãos mais novos para que minha avó pudesse se dedicar aos muitos bolos feitos durante aqueles dias especiais.
O trabalho para acender o fogão à lenha e organizar tudo só se justificava se fosse para fazer realmente muitas fornadas de bolo, afinal a família era grande.
Minha avó prometia um bolo em miniatura como prêmio extra para quem tomasse conta dos mais novos. É óbvio que minha mãe fazia questão de ganhar esse prêmio.
Às vezes, quando o irmão ou irmã mais nova não dormia logo, Dona Dora colocava na rede, ficava balançando e assoprando os olhos da criança, esperando que o truque funcionasse, com o objetivo deter uma pausa para brincadeira.
Ouvindo essas histórias, eu e meus irmãos ríamos muito e imaginávamos a fazenda, o forno à lenha, a rede, o rio próximo, o cheiro dos bolos.
Engraçado como ficamos não apenas com as lembranças que vivemos, mas também com aquelas que nos são contadas. Tenho a impressão de ter vivido quase tudo que minha mãe já viveu.
Nós, que não morávamos em fazenda, tínhamos um espaço bem delimitado para brincar e, talvez por isso, estávamos sempre bem juntinhos, ouvindo cada história, cada detalhe e nos transportando para esses cenários descritos de forma tão minuciosa a ponto de sentirmos o gosto e o cheiro dos doces e das comidas ali preparadas.
Após esse ritual em volta do bolo feito por minha mãe, aguardávamos para raspar a tigela onde a massa tinha sido preparada.
Aquela massa crua até hoje tem para mim sabor de infância. Uma infância cercada de amor, de histórias, de sonhos, de cores, de cheiros sentidos e imaginados.
No final, a alegria vinha em forma de bolo apreciado primeiro com os olhos. Depois, levar à boca um pedaço de algo preparado com tanto carinho e recheado com tanta história nos dava certeza do quanto tudo aquilo permaneceria na vida de cada um de nós.
Dona Dora tem cumprido bem o papel de perpetuar sua história e de seus antepassados. Fico pensando se serei capaz de cumprir essa mesma missão com tanta maestria, para que minhas filhas continuem a contar suas histórias tendo como ponto de partida tudo o que as tem precedido.
O texto Uma receita de vida integrará o livro-coletânea Gostosuras de Mãe, a ser lançado em junho deste ano pela Editora Ponto Z, tendo Edmilson Zaneti como organizador.