Ela queria escrever. Seu pai não queria.
Optou por si.
Taí, já de cara, o primeiro motivo: ser-se. Manifestar-se. Vomitar a vontade e saborear a cor que se produz.
Quero então, e escrevo primeiramente sobre o desejo, que é esse o verdadeiro motor da escrita: o tesão que faz a gente sair do banheiro direto para o cadeira, ainda pelada, abrir a tampa do computador com pressa e logo despejar a primeira frase: “Ela queria escrever; seu pai não queria.” Foda-se, que a idéia desse começo, a propósito, saiu mesmo de lá, enquanto a água caía sobre meus ombros e o devaneio flutuava em neblinas; em gotas que escorriam pelo vidro do box fazendo loucos caminhos orgânicos, uma trilha para especulações abstratas, mente de artista; pois o escritor é, desse tipo. Gente diferente do pai da gente: advogada, médico, dentista, engenheira e ponto final. É desse tipo de gente que o artista foge, a propósito; tem que fugir.
A regra, o quadrado, o exato; o cálculo, o esquadro, aquela coisa que fazia círculos perfeitos, bolhas que não estouram, eu sou o lápis. Sim, artistas são lápis com olhos coloridos; rabiscamos na neve os mais absurdos arcos-íris e encontramos ouro. Brilha diferente, esse nosso. Então quando esse lápis fura a bolha, de dentro para fora, é um arco iris dourado que cintila nos poros.
É isso o que procuramos. É por isso que ela escrevia, a filha: encontrar diamantes.
‘Mas que diamantes são esses?’ perguntava o pai.
‘Tem que procurar fundo, velho’, respondia a garota e imediatamente e se metia-cavucando no meio das páginas, virando uma após a outra, ora com vidrada lentidão, ora voraz como quem esmiuça um palheiro na busca da agulha, e acha. E acha muitas, pois o artista encontra. Encontra no meio da rua palavras para expressar o cosmo; no metrô o ritmo para expressar a velocidade do maratonista, no balé a ironia para expressar o desconforto da amante apaixonada, e assim por muitos quartos, daqueles tipo Usher.
A gente enxerga torto, desviado, distorcido, adulterado. Pela tinta, pela letra, pelo som ou pelo rosto, o nariz do palhaço te escancara um sorrisão; você tava triste lembra?
Transformação, é por isso que eu escrevo. Transformo rostos. Crio narizes, arranco dentes e faço chorar. Sou um
mutante azul e espinhoso; noutro planeta passo a voar e em seguida limpo o chão com pés de cinderela.
A imagem vem e deixo fluir, sabe.
Mas o pai não fluía. A linguagem de um era além do alcance do outro; e assim nascia o conflito de mais uma história, um conto cuja professora lá daquelas distantes ‘vidas’ nos instigara a escrever.
Por que eu escrevo? me pergunto novamente? Por tudo isso, talvez por muito mais; ou até menos, dependendo da hora, do momento, da liberdade de fazer, do parir sem perceber.
Sim, parir sem perceber.
É isso que faço quando sinto, e não paro.