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Contra as probabilidades

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Adoro ser mulher. Mas sou de uma geração que cresceu querendo ser a mulher maravilha, lutar contra a injustiça, ser forte, bela, íntegra, doce e justa.

Me inspirava nas mulheres fortes da minha família que, sem medo (ou talvez por medo), seguiam em frente e davam conta das tarefas.

Ver a tia pular grávida de um trampolim, e eu lá com meus nove anos olhando admirada aquela mulher sem freios, corajosa e querendo ser igual. Nunca fiz isso, aliás confesso que morro de medo de altura, mas aos poucos tento superar.

Ainda menina, brincava que era uma das “panteras”, série de sucesso numa época que ainda não existia TV a cabo. Queria ser sempre a personagem Sabrina, a de cabelo tijelinha e preto como o meu. A menos bonita, mas a mais inteligente. Gostava de ser essa.

Já fui seguida na rua diversas vezes. No final da adolescência e no início da vida adulta isso acontecia muito, mas eu era esperta e percebia rápido. Atravessava para ruas que eram contramão para quem estava de carro.  Entrava em alguma loja ou padaria e lá ficava até o seguidor desistir. Fingia que ia entrar em uma rua e corria para outra. Fui criando técnicas para não ser abordada, incomodada e sabe-se lá o que mais.

Quando estava no terceiro ano da faculdade fui fazer estágio em uma multinacional. Meu trabalho era interno, porém uma vez fui convocada para acompanhar um colega – talvez uns 15 anos mais velho que eu – em uma tomada de preços. Achei bacana porque seria algo diferente da minha rotina diária.

Tinha 21 anos, eu e toda minha geração usávamos muito minissaias, bermudas e shorts. Mesmo para trabalhar, até porque nosso departamento era composto basicamente por estagiários.

Fomos no carro dele, eu estava de bermuda-saia que também era moda na época. Participamos daquela tomada de preços e, na volta, esse homem parou em uma rua e começou a me dizer que morava perto dali. Não me lembro das minhas respostas, não me lembro se entendia que aquilo era nitidamente uma cantada e que eu estava em uma posição bem vulnerável ou se, de fato, não percebia. Não sei, de verdade, excluí da minha lembrança.

Ele viu que eu não demostrava nada e foi me mostrando alguns álbuns de fotos que tinha tirado do porta-luvas. Até que em um momento ele simplesmente passou a mão na minha perna com uma dessas pegadas fortes e disse algo do tipo: que pernão.

Não sei explicar o meu sentimento: nojo, constrangimento. Acho que minha cara deve ter sido de alguém tão pasma que aquilo não passou dali, por sorte minha. Pedi que fossemos embora e fomos.

Cheguei na empresa com uma sensação ruim, com vergonha e só vim contar isso há poucos anos para uma amiga que trabalhou na mesma empresa. Ela ficou assustada com a história, mas sabia que o tal sujeito era cafajeste. Neste último mês contei essa mesma história para mais três pessoas e, agora, publicamente.

Por que não contar antes? Vergonha? Constrangimento? Não sei, o fato é que não quis compartilhar com ninguém e somente agora, mais de 20 anos depois estou escancarando isso em um texto e divulgando para onde for e para quem quiser ler, simplesmente porque acho que não devemos nos calar em situações abusivas como esta.

Não sou contra cantadas, e nem as tão famosas cantadas de pedreiro. Se não forem agressivas, ok, estão valendo. É gostoso ouvir um “fiu fiu” de vez em quando, mas do assobio à agressão verbal e física existe uma grande diferença.

Mulheres são ainda estigmatizadas pela sua aparência. Bonita, feia, gorda, gostosa, siliconada, loira burra e por ai entram em cena adjetivos animais, como gata, baleia, vaca, piranha, capivara, cachorra, cavala etc.

Tenho 47 anos e três filhos, um com 18, outro com 12 e a caçula com 10 anos. Contra as probabilidades da vida de uma mulher, continuei trabalhando. Sou fundadora e sócia da Modo Comunicação e Marketing há 23 anos, desde que me formei. Trabalhei até um dia antes do nascimento de cada filho, fiquei home office no período de licença-maternidade, mas amamentei todos filhos bem mais que os seis meses necessários.

Ao invés de chorar pela falta de oportunidades para as mulheres fui criando as minhas e elas foram dando certo. Cresci muito, hoje sei muito da minha área. Nessa altura, me permito criar que adoro, além é claro das demais funções que como sócia sou responsável.

Outro dia estava em um evento da área para sócios de agências de comunicação e percebi que eu era a única mulher – sócia de agência – que estava lá. Comecei a tentar lembrar as mulheres daqui de Campinas (interior de SP) que estão há mais de 20 anos no mercado a frente de agências. Temos muitas na cidade, mas só consegui  lembrar de mais duas mulheres nas mesmas condições que eu. É muito pouco.

Se tem uma palavra que hoje eu escolho para mim é coragem. As probabilidades não me assustam e nem me fazem recuar. É justamente por essa coragem de hoje que coloco a boca no trombone, conto essas histórias verídicas e sigo em frente gostando da mulher que sou.

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Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde escreve contos e poesias, mas também e atreve a escrever no divã desse blog. Publicitária e empresária. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing  www.modo.com.br e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa 🙂

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Feminismo – A Quem Interessa?

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Todo ano, no dia 8 de março alguém me dá os Parabéns! Parabéns por quê? Porque sou mulher… E?

Sou filha de uma mulher que precisou lutar por sua existência e a da sociedade em que vivia, durante a Segunda Guerra Mundial! Alguém a quem ninguém dizia que era menos capaz por ser mulher, porque naquele momento precisavam que ela fizesse o trabalho dos homens que estavam morrendo no front. Quando a guerra acabou, essa e outras mulheres já não aceitariam o papel de submissas na Europa. A luta por igualdade de direitos entre os gêneros já era uma realidade de mais de séculos, mas aquele foi o momento decisivo.

Mesmo assim, as mulheres ainda estão longe de ter os mesmos salários ocupando os mesmos cargos. Lutam para poderem ser promovidas nas empresas em que trabalham. Lutam para poder andar nas ruas sem receberem cantadas, para não serem julgadas, estereotipadas. Lutam por respeito. E lutam para explicar quase todo dia a razão da luta.

O que espanta é o quanto uma questão do ENEM gera de protesto e espanto em pleno ano de 2015, não só por uma bancada evangélica, embora sim, a igreja sempre esteve envolvida na opressão da mulher, mas também por pessoas que, por preguiça de pensar, por ignorância, jogam pedras sem saber no que querem acertar.

Alguém realmente imagina que Simone de Beauvoir quis dizer que a mulher que não nasce mulher, nasce sem gênero? Isso seria até simples. Difícil é entender o quanto a sociedade molda a mulher para ser submissa. Essa é a essência da luta.

Na história da humanidade, nos primórdios, homens e mulheres eram responsáveis pela sobrevivência da espécie, o homem, fisicamente mais forte, era caçador e a mulher, a cuidadora da cria, era a colhedora, colhia frutos, musgo, ervas, precisava saber distinguir alimento saudável e veneno. Essa mulher foi ganhando e passando adiante seus conhecimentos, usava ervas para curar, ajudava nos partos e nas curas de doenças… As descendentes dessas mulheres, na idade média, passaram a ser acusadas de bruxaria. Com as bruxas queimadas, queimou-se muito conhecimento…

Hoje, nós bruxas, ainda estamos tentando resgatar a nossa dignidade.

O dia Internacional da Mulher marca uma fogueira, uma fábrica têxtil, onde as funcionárias queimaram em um incêndio, porque o responsável pela fábrica trancara as portas no horário de expediente.

Então quero dar os Parabéns a todas as mulheres e homens que lutaram e lutam por dignidade.

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Synnöve Dahlström Hilkner É artista visual, cartunista e ilustradora. Nasceu na Finlândia e mora no Brasil desde pequena. Formada em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela PUCC. Desde 1992, atua nas áreas de marketing e comunicação, tendo trabalhado também como tradutora e professora de inglês. Participa de exposições individuais e coletivas, como artista e curadora, além de salões de humor, especialmente o Salão de Humor de Piracicaba, também faz ilustrações para livros. É do signo de Touro, no horóscopo chinês é do signo do Coelho e não acredita em horóscopo.  

 

 

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Livremente iguais

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Pelo menos duas vezes na semana costumo passear com meu cachorro pelo bairro e eu não consigo me lembrar, até hoje, uma vez em que eu não tenha me sentido intimidada ou até mesmo agredida por palavras, olhares ou gestos de algum homem.

Sou casada e me mudei algumas vezes de cidade para ficar mais próxima do meu marido e não foram poucas as vezes em que eu tive que escutar, inclusive da minha família, que a vida era assim mesmo, a mulher tinha que acompanhar o marido e que eu nem podia imaginar a possibilidade de deixá-lo vivendo sozinho, pois casamento onde a mulher não cuida do marido, não dá certo. Em meu ciclo de amizades, tanto homens como mulheres vivem reproduzindo discursos machistas, que de alguma maneira desequilibram o gênero, diminuem a mulher, baseados em uma cultura de preconceito e desigualdade. “Nossa, mas você trabalha até tarde, quem faz a janta pra vocês?” , ” Você vai viajar e vai largar o seu marido sozinho uma semana, é muito tempo”, “Não adianta, você fez uma escolha. Agora terá que pensar na sua família e não mais na sua profissão.” E além disso tudo, imaginem o que falaram quando eu resolvi que não colocaria o sobrenome do meu marido ao final do meu nome quando nos casamos…

Todos esses exemplos podem até ser pequenos se comparados a casos de violência contra a mulher, casos explícitos de desigualdade de gênero, ofensivos, esmagadores, silenciosos e dolorosos, mas não deixam de ser casos que muitas mulheres já vivenciaram ou vivenciarão pelo menos alguma vez na vida.

Esses dias uma colega postou no facebook que um menino da escola de sua filha, que tem 5 anos, a havia ameaçado de apanhar porque ela era menina e então a pequena respondeu, eu sou menina mas eu sou forte, pode vir que eu sei me defender! Então a mãe escreveu: pais, ensinem seus filhos a respeitarem o próximo e ensinem suas filhas a serem empoderadas! Eu fiquei pensando sobre essa palavra PODER e o quanto ela exerce domínio sobre as relações. Sou bailarina e professora de dança e a minha profissão me faz refletir todos os dias sobre questões sócio -culturais. A dança me fez enfrentar muitos preconceitos e me ensina cada vez mais sobre a igualdade, sobre não precisar ter mais poder sobre alguém para ser respeitada, sobre não precisar me vestir dessa ou daquela maneira para caminhar em público sem me sentir intimidada, sobre não julgar o diferente, sobre não precisar abafar sentimentos, sensações e desejos para atender às necessidades de um outro alguém, sobre ser livre, sobre movimento, fluxo, sobre o feminino, o masculino, o homem, a mulher, o ser humano, o corpo! Não gosto de radicalismo, mas acho que o grito da mulher precisa ser ouvido, é uma inquietude que nos acompanha de geração em geração e mesmo que hoje haja mais espaço para nos manifestarmos sinto que ainda tememos a fala, a escrita, a expressão… Ainda há repressão, ainda há preconceito, ainda há muito o que dizer.

Se eu pudesse dançar esse texto eu acho que eu me despiria e ficaria girando de olhos abertos para o mundo, na esperança de que alguém pudesse compreender a magnitude de um ser sem impregnações, sem casca, sem sexo, livre e igual a todos os outros: humano!

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Bruna Bellinazzi Peres – bailarina, formada em Dança, mestre em Artes Cênicas e doutoranda na mesma área, realiza pesquisas sobre processos de criação em dança. Atua também como professora de ballet clássico e dança contemporânea para crianças e adultos.

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Nossos Momentos

 

shutterstock_86016289 (1) café da manhã

Abro os olhos e ainda está escuro lá fora.

Levanto, ligo a cafeteira e começo a arrumar a mesa para o café. Respiro fundo, absorvendo lentamente o silêncio da manhã, o cheiro de café e a minha companhia… Aquele momento é só meu!

Um pássaro começa a cantar. A luz do vizinho acende. O motor de um carro é ligado. E o dia lentamente vai clareando.

Espreguiço e leio um pouco do meu livro, planejando meu dia.

Os filhos aparecem na cozinha, primeiro o do meio, depois o mais velho e por último o caçula. É um daqueles momentos deliciosos em que a família está reunida logo cedo. Até o marido aparece, apressado e apressando. A conversa é leve e descontraída, cheia de risos. Saboreio o momento.

Logo acaba, cada um vai para o seu lado. Nesse dia estão todos indo para as suas escolas… Mas esse momento também rapidamente passou, cada um foi para um lado, o mais velho casou e mudou, o do meio mudou e depois casou, os dois tiveram filhos… O caçula foi para a faculdade e para a república…

Tomo outro gole de café, termino um capítulo do livro, planejo a próxima exposição, escrevo um texto, deixo um recado para o marido e vou trabalhar…

FOTO PERFIL Synnove

Synnöve Dahlström Hilkner É artista visual, cartunista e ilustradora. Nasceu na Finlândia e mora no Brasil desde pequena. Formada em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela PUCC. Desde 1992, atua nas áreas de marketing e comunicação, tendo trabalhado também como tradutora e professora de inglês. Participa de exposições individuais e coletivas, como artista e curadora, além de salões de humor, especialmente o Salão de Humor de Piracicaba, também faz ilustrações para livros. É do signo de Touro, no horóscopo chinês é do signo do Coelho e não acredita em horóscopo.  

 

 

 

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A NOSTALGIA DE SER FELIZ

shutterstock_160219655 (1) namoro parque

Se lembra de quando a gente costumava ser feliz?

Se lembra de quando não era preciso fingir?

Onde a gente se perdeu, em que ponto da estrada?

Felicidade simplesmente pelo fato de ser, ter não importava.

 

Você se lembra quando foi que riu até chorar pela última vez?

“Cê” lembra do medo que dava quando a mãe dizia que só ia contar até três?

Me fale daqueles dias que a gente sorria sem motivos

Diz no meu ouvido como era a sensação de se sentir vivo

 

Me fale daquele frio na barriga do primeiro encontro

Da graça dos desencontros e dos abraços de reencontros

Diz pra mim como era a emoção de quando nossa música tocava

De todas as vezes que dançou sozinha no caminho da sala pra cozinha

 

Aqui entre a gente, qual foi seu último beijo de pálpebras fechadas e alma

aberta?

Lembra quando criávamos universos e fazíamos fortalezas debaixo da coberta?

Desejo a  você sonhos maiores que um apartamento 4 quartos e varanda gourmet

Eu espero que você ainda possa crer e que no fim do dia ainda tenha alguém

pra dizer:

 

EU TE AMO

 

Uma viagem para se afastar do mundo e se aproximar das pessoas

Jogando pedrinhas no lago e falando só de coisas boas

E que para sorrir não seja necessário ser ator ou atriz

E que pelo menos uma vez por dia você fique preso na nostalgia de ser feliz

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Lucas Alberti Amaral – nascido em 08/11/87, vem há 27 anos distribuindo muito mau humor e tentando matar a fome. Formado em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela METROCAMP, trabalha na área há 6 anos, tem uma página onde espalha pensamentos materializados em textos curtos e tentativas de poesias www.facebook.com/quaseinedito (curte lá!). Concilia a dura missão de morar em Campinas – SP (cidade onde nasceu) e trabalhar em Barueri-SP, não acredita em horóscopo, mas é de Escorpião, lua em Gêmeos com ascendente em Peixes e Netuno na casa 10. Por fim odeia falar de si mesmo na terceira pessoa.

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Estação Armênia. Antiga Ponte Pequena.

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Que herança você vai deixar para os seus netos?  Essa pergunta sempre vinha à cabeça de Guilherme quando lembrava-se do seu avô. Ele não deixou dinheiro, propriedades ou qualquer coisa que possa ser transformada em valor absoluto, em moeda corrente, em conforto financeiro para a vida cotidiana. Ele deixou o desejo de conhecer o mundo em volta. A vontade de sair pelas ruas e encontrar o outro, o estranho que, sem motivo algum, faz você abrir um sorriso e dizer bom dia. A alegria de sair quase todas as tardes pra ver gente nova e simplesmente sentir a cidade pulsar em seu ritmo frenético. Não sei se ele tinha isso em mente quando vestia, mesmo aposentado, o seu terno impecável após o almoço, penteava o bigode e dizia:

– Tá pronto?

Guilherme respondia que sim com a cabeça enquanto tentava entender porque motivo ele penteava o bigode. Será que ele deveria fazer aquilo quando ficasse adulto? Ele abria um sorriso e continuava:

– Então vamos, vamos.

Aquelas saídas estimularam não só esse desejo de conhecer o jeito e a gente da cidade de São Paulo, elas o faziam ir além. Faziam-no tentar descobrir e imaginar a história de cada um e o lançaram definitivamente, sem que ele desse conta, no mundo da ficção. Naquele tempo não percebia isso claramente, apenas absorvia e desenvolvia a construção de um olhar crítico e apaixonado pelo outro, que como ele, era anônimo e tinha uma história perdida na imensidão do concreto. Histórias que fazia questão de imaginar e tornar verdade como brincadeira de criança.

Foi assim, durante boa parte da sua infância, que Guilherme aprendeu a ver o mundo pelo lado de dentro. Algumas coisas passaram despercebidas, outras incomodaram um pouco e poucas mexeram tanto com ele como o dia que o avô o levou pra conhecer o metrô, quase trinta anos atrás.

Chovia bastante aquela tarde, a mãe e a avó não queriam que os dois saíssem de casa. Ele, alheio à discussão, esticava-se na ponta dos pés para olhar pela janela a água da chuva que corria apressada ladeira abaixo. E, enquanto a sua respiração embaçava o vidro, de tão grudado que estava à janela, só queria tentar entender pra onde ia aquela água toda.

Abandonou logo aquele questionamento, tão importante pra ele naquele momento, assim que ouviu seu avô dizer.

– Hoje é um dia importante. Ele vai conhecer o metrô. Além do mais tenho que passar no Mappin e pagar a prestação do fogão.

Não ouviu nem quis ouvir mais nada. Correu até o banheiro, penteou o cabelo, colocou a sandália de couro, passou pela mãe e pela avó feito um furacão e foi direto pra porta. Finalmente tinha chegado o grande dia, o dia de conhecer o metrô.

Entraram no ônibus e sentaram-se no segundo banco do lado oposto ao do motorista. Era o lugar preferido de Guilherme. Dali podia ver em detalhes e admirar a habilidade do motorista. Estava tão ansioso pelo que o esperava no centro da cidade, que naquele dia nem deu tanta importância pelo que realmente o fascinava na viagem de ônibus: o fato de alguém conseguir dirigir um veículo daquele tamanho. Demorou a perceber também que tinha escolhido o calçado errado para aquela tarde. A sandália tinha se molhado completamente com a chuva e os dedos dos seus pés estavam gelados. Sentiu um pouco de frio mas não disse nada. Tinha medo que seu avô desistisse de levar adiante seus planos para aquela tarde.

Chegando à Praça do Patriarca. Era sempre lá que desciam nos seus passeios vespertinos. Sempre no ponto final. Com o coração quase saindo pela boca de emoção começou a andar no sentido do Viaduto do Chá. O avô o segurou pelo braço.

– Espera aí rapaz, nós vamos pro outro lado. Vamos começar a viagem pela Praça da Sé, a estação mais importante de todas.

No caminho foi contando para o neto um pouco sobre como era esse trem que andava debaixo da terra e que era um dos mais limpos do mundo – até hoje, diga-se de passagem.

Desceram as escadas da Sé. Como num filme ou num sonho, foram tragados por uma multidão de gente apressada andando de um lado pro outro.  Segurava firme na mão do seu avô enquanto seguiam em direção à bilheteria, desviando ora de um ora de outro pelo caminho. O avô entregou-lhe o bilhete.

– Coloque ali na catraca.

Com as mãos trêmulas de emoção e sentindo as batidas do seu coração misturar-se ao barulho ensurdecedor daquele mundo que acabara de se revelar pra ele embaixo da terra, colocou o bilhete na catraca.

As portas de uma nova cidade, submersa, descortinaram-se diante dos seus olhos. Tudo era real e ele estava ali. Entraram no penúltimo vagão. A primeira viagem foi no sentido Jabaquara. Cada estação era um novo começo. A composição emergia da escuridão e estacionava na plataforma. Alguns saiam, outros entravam e ele continuava com os olhos brilhando e divertindo-se toda vez que o condutor anunciava a próxima estação. Ele já tinha andado de trem antes, mas nunca embaixo da terra e nunca tinha ouvido aquela voz que saía de não sei onde pra dizer que estavam chegando à estação x ou a estação y. No Jabaquara desceram do trem, subiram e desceram escadas e por fim chegaram ao outro lado da plataforma. Pegaram o trem no sentido Santana. Naquela época só havia duas linhas de Metrô. Uma chamada Norte-Sul e a outra Leste-Oeste. Não era como é agora que as linhas têm números e cores diferentes. Nesse caminho de volta, a estação Sé chegou e ficou pra trás novamente. Depois veio a estação São Bento, Luz, Tiradentes e finalmente a maior revelação do dia, a estação Ponte Pequena, hoje conhecida como Armênia. Impossível descrever a sensação. Um trem inteiro abandonava a escuridão subterrânea e ganhava os céus da cidade. A euforia foi tanta que o avô, percebendo o deslumbramento do neto, abraçou-lhe e falou ao seu ouvido.

– Preste atenção. Logo ele vai voltar pra debaixo da terra.

Nem é preciso dizer que aquele foi um dos dias mais emocionantes dos quase 10 anos de vida de Guilherme. Fizeram o caminho inverso, desceram na Sé e pegaram a linha Leste-Oeste – as duas linhas só se cruzavam na Sé. Mais uma vez andaram de um lado ao outro, de ponta a ponta. Foi um passeio e tanto. Tanto que naquela noite ele quase não dormiu. Ficou repassando na cabeça estação por estação, tentando memorizar uma particularidade de cada uma. Todas eram tão iguais e todas eram tão diferentes. E de todas, uma ficou gravada na sua memória: a estação Ponte Pequena. Ela sim, era realmente diferente de todas, não ficava embaixo da terra. A estação Tietê, que hoje se chama Portuguesa-Tiete, também não ficava embaixo, mas a Ponte Pequena foi a primeira que viu. Tornou-se inesquecível, única em sua memória.

Anos mais tarde entendeu por que as estações não ficavam submersas. Elas ficavam às margens do rio Tietê.

O fato é que aquela estação tinha um sabor especial pra ele. Era a lembrança doce de um dia incrível que ainda estava vivo nas memórias da sua infância. Talvez por isso, sentia-se invadido por uma sensação agradável toda vez que a estação Armênia era anunciada pelo condutor da composição.

Foi assim durante um bom tempo. Dia sim, dia não pegava o metrô em direção a Santana para encontrar-se com Solange, sua namorada na época. Todas as vezes ele ouvia nos alto falantes:

– Estação Ponte pequena.

Um dia, para a total e inesperada surpresa de Guilherme, ao se aproximar da estação ouviu:

– Estação Armênia, antiga Ponte Pequena.

Aquela frase preencheu seus ouvidos com tristeza repentina. Como se lhe arrancassem um pedaço da sua vida, uma parte daquela tarde com seu avô.

No fundo sabia que aquilo era bobagem. Era adulto o suficiente para entender que as coisas mudam, algumas vezes sem nenhuma explicação. Além do mais, como usuário constante do metrô, já deveria saber que a estação iria mudar de nome. Isso havia sido informado com certa antecedência, mas ele fez questão de não prestar atenção aos avisos. O resultado? O dia da mudança foi um choque.

Agora, passados tantos anos da mudança, não se diz mais antiga Ponte Pequena, é só Estação Armênia e ponto. Mesmo assim, toda vez que passa por lá, fecha os olhos quando o trem se aproxima da estação para poder ouvir mentalmente o condutor anunciar a Estação Ponte Pequena. Um instante mágico que o faz voltar à infância e sentir novamente o calor do seu avô ao seu lado. O trem abandona a plataforma. Guilherme abre os olhos e deixa escapar um breve sorriso.

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Gil Guzzo – é autor, ator e diretor. Em teatro, participou de diversos festivais, entre eles, o Theater der Welt na Alemanha. Como diretor, foi premiado com o espetáculo Viandeiros, no 7º Fetacam. Vencedor do prêmio para produção de curta metragem do edital da Cinemateca Catarinense, por dois anos consecutivos (2011 e 2012), com os filmes Água Mornas e Taí…ó. Uma aventura na Lagoa, respectivamente. Em 15 anos como profissional, atuou em 16 peças, 3 longas-metragens, 6 novelas e mais de 70 filmes publicitários. Em 2014 finalizou seu quinto texto teatral e o primeiro livro de contos. É fundador e diretor artístico do Teatro do Desequilíbrio – Núcleo de Pesquisa e Produção Teatral Contemporânea e é Coordenador de Produção Cultural e Design do Senac Santa Catarina. E o melhor de tudo: é o pai da Bia e do Antônio.

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Vida em pedaços

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São horizontes diferentes…. uns feitos de promessas leves e fartos de figuras momentâneas… Outros são feitos de desejos pesados e com pouco molde, porém extremamente perenes.

Há quem viva com desejos inconstantes….ora quer…ora não… no risco da falta de prova, no fio das palavras sem revelação alguma…atravessam o nosso tempo na ponta dos pés, ocupam a mente e afligem os corações mais assertivos. Ser de carne o osso é relativamente simples nesses casos…mas pra quem é de sentimento, sobra o exercício contante do tato apurado… para aproveitar as oportunidades de estar sem pensar se o outro quer ou não.

Veremos horizontes diferentes… mas bebemos da mesma fonte. Olhar em poesia privada….arriscar-se por simplesmente permitir-se estar vivo através do arrepio dos poros….evoluções revolucionárias dos desejos e deveres.

Por própria conta e risco… feitos de pedaços soltos…. só lembramos do que nos faz completos nos momentos mais intoleráveis…buscamos novos horizontes…mesmo certos do nosso eterno porto seguro.

10958210_10205888085426658_4684666609892689174_n - Renata Lavras Maruca

Renata Lavras MarucaMulher, mãe, publicitária e cronistas nas horas de desespero. Especialista em marketing de conteúdo digital. Observadora do universo humano e suas correlações” intermundos”(reais e virtuais). Viciada em doces, gordinha por opção e encantada pela sedução inteligente. Prefere sempre vestir em palavras escritas tudo aquilo que reflete ou carece de análise. Resumindo: Complicada e perfeitinha

 

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Fragmentos de um diário – 11

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…”Sinceramente acho que é delírio da minha cabeça, mas com uma vontade que não fosse (aí minha carência).

Que necessidade de terminar aquela conversa, talvez até mais por mim (egoísta). Que vontade de sonhar só um pouco e deixar de ser tão racional, agir diferente do que penso e prego, e cometer erros, pois já os tenho como erros, sem sentir culpa alguma.

Não é nada fácil, principalmente para quem sempre é tão de acordo com seus atos e palavras, pessoas assim como eu, esquecem ou apagam determinados sentimentos só pra não ir contra o que pregam e não magoar ninguém.

“Eu não posso fazer mal nenhum a não ser a mim mesmo” já diz a música do Lobão.

Gostaria de falar das entrelinhas, daquilo que a gente sabe sem nunca ser dito, de sentimentos. Pode-se nunca ser dito, mas a gente sabe, sente, sem erro algum. O problema é acreditarmos nesse nosso instinto, acreditarmos que sabemos sem ouvir.

1, 2, 3 caminhos. Sempre tão lógica…

Sinto que precisava ouvir e talvez viver.”

04 de novembro – Gisa Luiza – 31 anos.

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Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde é a responsável pela autoria de contos e poesias, mas também e atreve a escrever no divã desse blog. Publicitária e empresária. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing  www.modo.com.br e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. A personagem Gisa Luiza do “Fragmentos de um diário” é uma homenagem a suas duas avós – Giselda e Ana Luiza.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Primeiras tentativas…ou, não desista nunca!

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Adolescência é um período de descobertas, experiências e muitas expectativas, né? A minha não foi diferente. E pensando naquela época me lembrei de um episódio que poderia ter mudado o que faço hoje.

Eu devia ter uns 17 anos mais ou menos . Minha mãe e minha irmã iam viajar e eu ia ficar por minha conta. Coisa que eu adorava! Bom, eu estava namorando um cara mais velho e logo pensei em algo para impressioná-lo.

Pedi para minha mãe se podia fazer um almoço para ele e ela não só concordou, como comprou os ingredientes.

O cardápio: estrogonofe ( de carne) com arroz e batatas fritas.

Chegado o dia comecei a trabalhar bem cedo…separa ingredientes, pica, põe na panela, mas como era mesmo? Tempera a carne com limão, mas esse tem que ficar especial, mais um pouquinho de limão para ficar melhor.

Tudo lindo, eu linda (era o que eu achava aos 17 anos…rs), a mesa posta, até um vinho arrumei. O gato chega (era assim que chamávamos) eu faço seu prato e ansiosa espero a primeira garfada. Percebo um certo desconforto em suas feições, mas acho que é meu nervosismo, afinal não tinha como dar errado.

Me armo de meu melhor sorriso e pergunto: e aí, como está? Ele mal consegue respirar, mas gentilmente me responde: – É tá bom. Nesse momento me lembro de meu próprio prato e coloco uma porção generosa na boca, hummmm….ecaaaa! Só tem gosto de limão! Começamos a rir e resolvemos sair para comer um delicioso pastel feito pelo japonês da esquina.

O almoço foi um fiasco total e o namoro não ficou atrás, mas por incrível que pareça, apesar da primeira incursão na cozinha ter dado nisso, hoje cozinho profissionalmente. Os talentos nem sempre aparecem na hora que precisamos, mas muita vontade e estudo nos fazem capazes de tudo. Nunca desistam no primeiro tropeço, vocês podem se surpreender com o que são capazes de realizar.

Agora faço comida saudável!!! rs.

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Adriana Rebouças – Formada em Publicidade. Cursou gastronomia no IGA – São José dos Campos Publicitária de formação e Chef por paixão. Sócia do restaurante chama EnRaizAr e fica dentro de um espaço de yoga e terapias que se chama Manipura em São José do Campos – SP.

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Dúvida de adolescente (e de gente grande também)

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Se as coisas por alguns instantes parassem, como se não existissem

Apenas o nada faria sentido

Se todos os sentidos tivessem sentido

Do que valeria o não ter e a dúvida para resolver?

Seria tudo resolvido

Sem graça, sem um doce ar de reclamação.

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Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde é a responsável pela autoria de contos e poesias, mas também e atreve a escrever no divã desse blog. Publicitária e empresária. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing  www.modo.com.br e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. Como o tema dessa semana é adolescentes, essa poesia foi escrita quando ela tinha 18 anos.