“Não me convidaram
Pra esta festa pobre
Que os homens armaram
Pra me convencer
A pagar sem ver
Toda essa droga
Que já vem malhada
Antes de eu nascer”
Sábado, 06 de Janeiro de 1988.
Último capítulo de “Vale Tudo”, talvez a melhor novela de todos os tempos. O Brasil em frente aos televisores, quando as famílias assistiam TV juntas depois da janta, e, na ausência do controle remoto, as crianças eram escaladas pra mudar o canal nas brilhantes chaves seletoras, eu inclusive.
Não nessa noite! Ninguém nem ameace nem passar na frente da TV, quanto mais mudar o canal…
Eis que a impactante, dramática e moderna introdução de “Brasil” enche a sala e arranca aplausos e assobios da “platéia”. Vai começar!
De repente a voz. Aquela voz.
Uma interpretação transbordando energia, veneno, afinação, revolta, autoridade, sagacidade… humanidade.
Nos versos precisos de Cazuza, ela reclamava não termos sido convidados pra “festa pobre” da escolha do presidente sem a participação do povo.
Recém saídos do absurdo da Ditadura, o país quebrado e o presidente que queríamos, Tancredo, morto, exigíamos o básico do básico em uma democracia: Votar.
O Brasil unido pelo direito ao exercício da Democracia, quem diria…
E lá estava ela, atenta e forte.
A mesma voz que cantou as belezas tropicais com “sua voz enternecida”, e pedia atenção em um tempo escuro: “tudo é perigoso, tudo é divino, maravilhoso”.
Cantou o bem e o mal de cada um, literalmente. “Paixão e carnaval”.
“Cada uma sabe a dor e a delícia de ser o que é.”
“Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada.”
Eu tenho pra mim que essa geração absolutamente brilhante e livre, teve o talento de ouvir, talvez até mais que cantar.
Construíram uma obra desconcertante e inimaginável em um país onde arte, até hoje, pasmem, é considerada vagabundagem.
Inventaram algo que hoje chamamos de MPB, que o mundo reverencia e aplaude como uma das mais finas e complexas formas de música e expressão.
Anos depois, minha queridíssima amiga Eliete me convidou pra ver “Gal canta Jobim”. Eu, fã alucinado do Maestro Soberano, com que eu viria a ter a honra de conversar demoradamente anos depois (sei que não vem ao caso, mas não resisti à lembrança).
Foi uma das noites musicais mais deslumbrantes da minha vida, e virou um disco ao vivo que ouço até hoje com requintes de obsessão.
Gal se vai em um momento que me lembra um pouco aquela época. “Tente entender em que ano estamos…”
Agradeço ao Universo a honra de estar vivo ao mesmo tempo que ela e esses verdadeiros faróis de lucidez e integridade a nos oferecem reflexão e beleza, uma beleza profunda.
Na novela, a cena icônica do personagem de Reginaldo Farias, corrupto, fugindo do país de helicóptero e “dando uma banana” para o Brasil, tem mais uma vez a voz cortante dela colorindo o quadro que, de tão triste e tão real, chegava a provocar risos envergonhados.
E quem matou Odete Roitman, ora, ora, quem diria, já perigosa e doentia, foi a Cássia Kiss…