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Defina: Homem

O abismo parecia ser uma ponte para o infinito que contemplava uma vida íntegra e desprovidas de amarras tamanha era sua dimensão e liberdade. Chegar perto do precipício era uma atitude de coragem e contentamento. Uma coragem que antecipava a tal liberdade e a existência frente a um universo que desconhecia limites. O ingresso para uma nova vida estava a um salto de distância rumo à vermelhidão do deserto, do clima quente e do céu limpo que imprima um abraço para aqueles que ousassem se permitir uma nova experiência. O salto do precipício não era o salto da morte, mas o salto de vida, de libertação das amarras para conhecer uma possibilidade mais autêntica do que um mundo que emula uma realidade longe das expectativas da grandeza humana.

Essa pequena narrativa foi criada por mim quando criança em momentos de dificuldades e frustrações. Acreditava com fidelidade que havia um outro mundo para além deste e que todo o sofrimento deixava de existir quando pulávamos rumo a essa imensidão do precipício. Existia, portanto, uma outra realidade melhor que esta que me acolheria e permitiria me exercer. Sempre fui assim. Um amante de histórias. Além de ter sido influenciado por muitas delas, encontrava a paz inventado aquelas que surgiam de ideias e de experiências que vivia. Entretanto, o que parecia uma forma de me integrar ao mundo e à socialização, foi a primeira porta de entrada para um caminho de questionamentos e dificuldades de me encontrar. Estou falando da minha própria definição como homem no mundo e como essa identidade foi (e ainda é) de difícil compreensão mesmo em tempos de lutas e formação de comunidades.

Me definir como homem em uma sociedade tradicionalmente machista e patriarcal foi o maior desafio que tive até o momento, pois me encontrar nesta sociedade me fez tomar caminhos de idas e voltas sem destino. Estive sempre sob o julgamento e o olhar penoso das pessoas que esperavam de mim uma espécie de “promessa cumprida”, de me tornar o homem considerado perfeito zelando por esse papel social tão “importante”.

Se assim como essas pessoas que fizeram parte da minha trajetória você espera que eu diga através destas palavras que hoje conheço a definição mais assertiva de ser homem e também da masculinidade, terei de pedir licença para, mais uma vez, fazer um pedido de desculpas oficial. Perdoem-me. Desculpe se não fui o macho alfa pegador, se não provi dinheiro suficiente, se não transmiti meu DNA ao mundo, se não me apaixonei pela mulher que iria me completar, se não tive um exemplo de masculinidade dentro de casa, se mostrei demais minhas fraquezas e sentimentos. Passei tanto tempo tentando me adequar a essas concepções da perfeição masculina que não me dei a chance de poder me conhecer e me encontrar na minha própria essência.

Tanta ineficiência na arte de ser homem formou uma dívida que, aos olhos alheios, nunca fui capaz de pagar e então terei que arcar com os juros que, no meu caso, consiste em ser excluídos das interações com outros homens de forma legítima e decretada. Afinal, qual é graça de se “eximir” de um papel social tão vantajoso como esse? Os homens são, de alguma forma, sempre perdoados pelos seus atos por mais desprezíveis que sejam sempre tendo um centro de apoio para lhe oferecer uma justificativa para suas atitudes. Soma-se a isso a posição de privilégio e poder que vem quase por serem considerados uma figura superior às mulheres e também aos outros homens que não alcançaram todos os requisitos. Eu nunca tive esse tive esse tipo de privilégio, e por muitos anos, me rotulei como alguém estranho que não fazia parte de um clubinho super valorizado que só ganhava a carteirinha caso esses requisitos tivessem sido checados. Mas atenção: precisa ser TODOS os itens. Se faltar um, não pode mais brincar com os meninos. Quando penso que fiquei do lado de fora da porta do clubinho, penso também como muitas mulheres sempre estiveram nesse lugar também sem ao menos ter uma chance de concorrer a uma entrada. A exclusão delas, entretanto, promoveu atos de mais sensatez e sagacidade, pois elas não se limitaram a uma brincadeira de criança. Ao contrário, se organizaram para poder participar de seus direitos. Elas não formaram outro clubinho só para meninas. Elas criaram um espaço de coletividade e permitiram, inclusive, que os meninos chatos e segregadores viessem conhecer suas ideias sem propagar o rancor e divisão que um dia as fizeram sofrer. Agora, aproveitam de um lugar mais adequado e justo que os escuros e infames clubinhos masculinos sempre carregando a certeza de trazer mais melhorias e paz encaradas de peito aberto. Atitude inteligente e admirável!

Eu poderia dizer que essa exclusão que tensionou a minha definição como homem no mundo me fez ter uma atitude diferente fazendo com me aproximasse de outros tipos de pessoas em busca de uma comunidade própria. Isso não aconteceu. Cresci confuso e em uma eterna busca que nunca se concretizou. Posso dizer, no entanto, que essa busca hoje vem tomando caminhos diferentes e de uma reflexão mais madura considerando muitas experiências negativas que vivi. É verdade que uma parte de mim ainda busca uma semelhança aos homens típicos (cuja tipicidade venho questionando muito nos últimos anos) não por ser uma posição melhor, mas por ser uma posição mais facilitadora. Gosto de dizer que, neste período da história da minha vida, me permito julgar menos a mim e aos outros e posso de vez quando querer pegar caminhos mais suaves. Por que não? No entanto, também sei que parte de mim nunca alcançará esse objetivo talvez porque minhas “habilidades”, como a de imaginar histórias ou mesmo ser capaz de olhar para dentro mim, não sejam tão importantes e valorizadas na realidade que vivo. É mais uma rota que se inicia que eu não sei se vou ter que pegar um retorno para começar o trajeto de novo. Sigo caminhando longe da tipicidade e da definição de homem que fazem tanto deles, por assim dizer, felizes.

Nesse momento, só tenho confiança em um pensamento: prefiro me dar o direito de errar e seguir errando enquanto a vida me permitir do que ensaiar um homem de falsa empatia que finge estar vinculado ao século XXI. Esses são ainda mais obscuros do que eu: defendem o amor incondicional, formam famílias, afirmam compreender as mulheres e suas lutas, se exercem como pai (um tanto quanto duvidosos), mas que não fazem nada mais do que cumprir um papel superficial achando que estão mudando o mundo para as novas gerações. Imagino quantos desenganos esses homens terão se um dia acordarem de seu sono fantasioso. Não terão a coragem nem a força, tão comumente atribuídas ao homem de excelência, para lutar pela própria vida, pois as experiências que deveriam formar um caráter mais estruturado não encontrarão espaço para existir de maneira satisfatória. Prefiro estar onde estou. Mesmo como muitas ruínas ao meu lado, sempre fui do tipo que prefere tirar as vendas dos olhos à custa de dores quase insuportáveis. Se aos outros homens sobram poder, privilégios e caminhos previsíveis e sem pedras, faltam para eles a honestidade e a humildade que é um entroncamento no caminho da vida difícil de perceber. Essa rota não traz as atividades com a pesada energia do que é comum, mas sim um caminho onde é necessário deixar todo o pesado lixo acumulado na entrada, dar adeus às pessoas que um dia foram significativas e ter a coragem de andar frente ao céu aberto na paz da solitude.

Renan Gaudencio Vale -Belo Urbano. Professor, linguista, mestre em semântica e psicanalista, e interessa pela linguagem e pela mente humana como uma forma de entender ao mundo e a si mesmo.
 
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