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Em Busca das Terras Abandonadas

Da estação de trem era possível ver as imensas colinas que pareciam encobrir a cidade com um manto verde de natureza e beleza. Afastado de tudo e de todos, o lugar parecia ter uma vida própria quase como se quisesse preservar algo que poderia ser perdido. Entre costumes tradicionais e um ensaio de civilização, a cidade só sentia medo de uma história que rondava os quarteirões. A bruxa das Terras Abandonadas, lugar que ninguém ousava ir, era uma entidade misteriosa que parecia sempre estar por perto, mas nunca se materializava. Diziam que ela pegava as pessoas às escondidas e roubavam seu coração, porém ninguém havia ainda confirmado essa história. Na verdade, a bruxa das Terras Abandonadas parecia ser mais uma lenda do que um mal para sociedade.

Como todo mistério da vida, a temida bruxa um dia chegou à pequena cidade disfarçada de uma senhora rica e elegante em seu belo vestido roxo. Quem a via, pensaria que era uma turista que visitava a cidade para fazer compras, mas suas intenções eram mais profundas do que comprar as roupas exclusivas do lugar. Sua função era mostrar um pouco da realidade que não se vivia ali.

Ao entrar na única chapelaria do lugar, a bruxa disfarçada encontra Sophie, uma jovem de 18 anos tímida e de pouca expressão. Ela seria sua vítima nesse momento lançando a ela um feitiço inquebrável da qual não poderia nem ao menos falar sobre ele, já que seus lábios seriam selados magicamente cada vez que tentasse. Sophie é transformada em uma mulher de 90 anos, de saúde fragilizada e que não teria como explicar a seus familiares o que tinha acontecido. A a bruxa das Terras Abandonadas a tinha encontrado apesar de todo o cuidado que tinha tido em não se expor demais. Nada havia adiantado. Fora pega e agora precisava deixar sua casa, o único lugar que tinha para viver, para sair rumo ao mundo na delicada condição de idosa.

A história de Sophie brilhantemente retratado no filme O Castelo Animado é uma metáfora de uma das condições mais caras à vida, porém das mais importantes em termos de conhecimento e consciência: a passagem do tempo e o envelhecer. De imediato, já destaco que todas as palavras que fazem parte desse vocabulário são lidas na sociedade como palavras negativas uma vez que o movimento para que se retarde o que se chama de velhice ganhou muita força nas últimas décadas. Dessa forma, vivemos no sentido de se evitar essa condição e deixamos de lado, portanto, uma série de conhecimentos essenciais a nós mesmos em nome do medo de uma suposta fragilidade da vida.

É curioso como eu aprendi a ter uma leitura negativa dessas palavras. Quando criança, lembro que sempre gostava de ficar perto das pessoas mais velhas ao invés de brincar com aqueles que tinham minha idade. Isso porque as pessoas adultas ou mesmo as idosas transmitiam a mim uma sensação de poder, de autonomia e de um exemplo a ser seguido, algo que as crianças não podiam me oferecer. Então aprendi por mim mesmo que as pessoas mais velhas deveriam ser meu norte, mas as experiências com o mundo alteraram essa percepção de forma tão doentia que hoje me esforço para resgatar um valor que deveria ser introjetado de forma natural.

Quando ingressei na realidade da vida, de forma forçada eu diria, as pessoas pareciam ter um senso sobre ser velho que desfigurava de tudo o que pensava. De repente, o discurso das pessoas chegava até mim afirmando que ter 30 anos era ser velho e a experiência de vida acumulada das pessoas era insignificante para o mundo “maravilhoso” que temos agora. “Tanta tecnologia e ainda havia pessoas que não tinha se adaptado a isso. Pobre delas. Que fiquem em casa se não são capazes de estarem no mundo da forma como nós estamos. Que gente chata e imprestável que atrapalha o andamento das coisas e ainda exigem direitos”. Tantas foram as atrocidades que ouvi que eu também, sem perceber, comecei a temer essa condição e me pautava nos “modelos” tidos como referência. O mais triste disso tudo é que mesmo depois de entender a maldade desses ditos padrões, nunca consegui me libertar completamente deles. Isso porque a subversão da ordem natural da essência humana foi violada de maneira tão agressiva que me adoeceu permanentemente e, portanto, não tenho mais como voltar a uma condição natural de aceitar a vida e suas nuances. Triste realidade ser atacado por valores que nem são meus em nome de não sei exatamente o quê. Acho que é para nos tirar a paz, a alegria da vida e a sabedoria de vivê-la não na felicidade, mas de maneira mais relaxada. Com tantas sombras rondando nossas próprias vidas, venho me perguntado se, de verdade, temos o direito de envelhecer.

Para os mais pragmáticos e politizados, adianto que não estou falando de empregabilidade, saúde da terceira idade ou previdência. Admito a importância de todas essas questões, mas acredito que para podermos falar sobre elas, precisamos antes refletir sobre pontos ainda mais importantes que diz respeito sobre estarmos nessa vida e o quanto podemos fazer por ela. Tenho assistido de perto algumas transformações que considero bizarras, mas que é visto pelo mundo como um novo valor a ser seguido que é a imagem da juventude não como sinônimo de beleza e vigor, mas de sabedoria e exemplo.

Quando era adolescente, sempre me imaginava que quando fosse mais velho queria ser um exemplo de conhecimento e sabedoria de vida. Torcia para que as pessoas buscassem em mim tudo o que havia aprendido para que parte desse conhecimento não se perdesse, mas impressionantemente na profissão de professor vejo o inverso disso com as pessoas mais jovens ignorando o que tenho a dizer. Sai a imagem da maturidade fortemente ligada à sabedoria e à competência para dar lugar à imagem de um rapaz de 22 anos de barba rala e mochila nas costas almejando ser o próximo CEO milionário. Que sentido faz isso? Ninguém deseja mais trilhar o caminho do conhecimento e quando o faz é de forma superficial e fútil. Consomem somente o que lhe convém e formam sua opinião não por aqueles que passaram por esse caminho, mas por um vazio de conteúdo que não vem de nenhuma fonte e tecem um modelo de sociedade fadada ao fracasso. Para mim, fracasso é não viver a trajetória da vida. É não perceber quanta coisa interessante pode ser aprendida no caminho se nos permitirmos viver. Admito que, assim como muitos, está difícil de livrar dessa doença já que ela se enraíza profundamente impedindo de nos exercer.

Há muitos anos atrás, fiquei sabendo da morte de uma amiga de infância que sofreu um acidente de carro quando tinha 21 anos. Todos no veículo sobreviveram menos ela. O mais triste desse episódio é que dia antes, ela havia dito que preferia morrer do que se casar com o noivo, pois seria infeliz a partir daquele momento. Ela morreu justamente no carro de seu noivo quando ele estava na direção. A Suellen perdeu a chance de viver a progressão da vida, de conhecer as emoções, de simbolizar suas existências e suas perdas e não alcançou a potência da vida em seu máximo. Mesmo assim, aqueles que têm essa oportunidade a desprezam por acharem vulgar demais, depreciativa demais, falha demais.

Não repetirei a ideia do senso comum em dizer que o mundo está passando por uma inversão de valores, até porque não acho que isso esteja acontecendo. Isso já aconteceu. Por isso, não me resta muito a não ser buscar um pouco de vida em valores mais sólidos, mas de maneira particular, em silêncio. A essência da vida reside no silencio que se esconde para que somente aqueles que a procurarem irão achar. A vida não deseja mais ser encontrada, pois também precisa se preservar e manter seu ciclo de naturalidade, o que inclui a maturidade em todos os seus sentidos.

Consegue então entender por que citei uma parte da história do filme O Castelo Animado? Pense bem! A bruxa das Terras Abandonadas era vista como um ser maligno que prejudicava as pessoas. Ela sempre aparecia às espreitas para aqueles que a queriam encontrar. Entende a relação? A tal bruxa é na verdade uma representação da vida que nunca se mostra verdadeiramente e com destreza às pessoas que a desejam. Sophie tinha um grande coração e uma beleza imensa como pessoa que a vida/bruxa não pode deixar de ignorar. Entretanto, ela precisou viver a maturidade com todas suas dificuldades para compreender a finitude de uma existência. Chamo esse movimento da bruxa de oportunidade. Oportunidade de viver a realidade, de ver e chegar aonde a maiorias das pessoas não chegam, de sentir a liberdade e de quase atingir a plenitude.

Como um aspirante a escritor e um eterno fã de histórias, não queria neste texto ter o descuido de repetir as mesmas asneiras que dizem por aí da “melhor idade”. Tentando viver um pouco da minha própria maturidade, diria que, ao escrever essa reflexão, pela primeira vez na vida fiquei vontade de encontrar uma bruxa, pois entendi como são sábias e poderosas apesar de tanto serem representadas pelas imagens de velhas ranzinzas.

Bruxas, por favor, ouçam meu pedido e apareçam para mim. Aqui se encontra um alguém que deseja a vida que vocês oferecem. Prometo que a partir de agora, terei a decência de saber enxergar os detalhes onde vocês aparecem para um dia ser tocado pela mágica e naturalidade que muitos não desejam mais.

Renan Gaudencio Vale -Belo Urbano. Professor, linguista, mestre em semântica e psicanalista, e interessa pela linguagem e pela mente humana como uma forma de entender ao mundo e a si mesmo.

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