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Inadiáveis

Ontem, na contramão do hábito, desci pra dar uma volta enquanto algumas questões se revoltavam dentro de mim, vendo quem levava quem pra passear. E nessa exagerada quarta-feira de sempre, espremendo um pouco mais de férias na pia da minha semana, fui atravessar a rua e esbarrei comigo, 20 anos mais novo, olhando de volta do impossível, quase tão assustado quanto eu diante do impensável reboliço. Quem de nós dois voltaria pra casa?

Eu – de mais tempo – levava comigo o Dom, meu cachorro e parceiro, e o dom inato de não ver com facilidade pessoas conhecidas na rua, da proximidade que fosse, o que sempre me fez ser descoberto muito mais do que descobrir. Naquele momento, não teria outro jeito: me descobrir era a única saída.

E lá, do lado de lá, que é cá também – ou foi – ia eu, com a mesma inabilidade de equilibrar cães, sendo levado por Thanatos, hoje saudade, que parecia ter me reconhecido há muitas quadras, ou décadas. O cheiro deve ser das poucas coisas que o tempo não mexe.

Deixei que eu viesse. E fui, também. Misturando um pouco cada um de nós. E conversamos, não sei nem quanto tempo, mas pareceu passar uma vida dentro desse diálogo familiar. Tudo meio embaralhado, entrelaçando coleiras e certezas até que fosse necessário desfazer aqueles nós.

-Como você está? Disse eu.

-“Quando”, você quer dizer. Eu também falei.
Rimos um bocado.

Falamos sobre os dramas de se ter 17 anos, querer o mundo todo de uma vez, e não saber por onde começar. E também sobre os dramas de se ter 37, o mundo não ser seu, e o medo de como tudo pode, de uma hora pra outra, terminar sem nem chegar a acontecer.

Sempre fui do tipo dramático mesmo, e já ali nos reconhecemos.

Falamos da crueza da vida, sem pesar… E de como ela é difícil mesmo, por estarmos normalmente tão pouco preparados, mas tudo isso como contrapontos, que tornam, talvez, os bons momentos tão mágicos e etéreos. E a melancolia foi, aos poucos, se dissipando, como algo que precisava passar ali para provar que era tudo real naquele idílico duelo. No espelho, normalmente, é a ruga que salta.

Comparamos tudo que pudemos lembrar… O corpo, da carcaça lisa esculpida a Vôlei e Toddy, frágil, ao dobro, engolido em culpas, dietas em série e a mesma despedida todo domingo. Frágil também.
O tempo fragiliza. Resistir pra existir, né? Mas não foi de zero… A barba, outrora rarefeita, agora resolvia melhor a aparência de mais novo, e o olhar, apesar de suas adquiridas aspas, conseguia dizer melhor o que precisava.Você ainda escreve? perguntei de longe, de 2003

-Menos, bem menos. Demoro mais, acho que porque espero ver algo diferente, que não sai do mesmo eu de sempre, ou porque o hoje não espera. Expliquei, me debruçando para saciar as saudades, minhas e do “Natos”.

-É feliz? Emendou o jovem com a mais velha das questões

-Várias vezes. Uns dias mais, outros menos. Mas sempre tentando, sem me distrair. Respondi imaginando que se eu mentisse, eu saberia.
E assim fomos.

Conversamos sobre escolhas, de como, na verdade, são ilusões para manter qualquer sanidade na superfície. É tudo tão frenético, tão rápido, e efêmero, que parece que estamos, na verdade, soltos no mar, num dia de ventania… Ele, que é meio, que é acaso, que é multidão, correndo com a gente por aí… E a gente, que é vida, escolhendo o ritmo da pernada. Resistir acho mesmo que é escolha. E segue valendo mais.

Fez-se um silêncio necessário para assimilar a recente gravidade daquela prosódia… Tantos caminhos possíveis, de vida e de papo, mas a gente sempre gostou mais mesmo dos exageros. Aquele marca-texto neon sobre a verdade mais aguda… A retórica presa nos extremos, sendo a vida bem mais de outra média qualquer.

-Acho que, na verdade, o tempo muda pouco as coisas. Ele passa, porque precisa ir. E segue na gente o que precisa ficar. Filosofei, como próprio dos mais velhos que precisam parecer, também, mais sábios.

-E vou além, é tudo pra ontem. O agora é inadiável, porque a vida não espera. Completei, urgente, sem saber direito do que dizia. Mas eu entendi, depois, já.

-E agora? Perguntei velho.

-Agora eu busco você e você me busca, respondi sábio com a boca de poucos beijos. Eu, ser você daqui a pouco. E você ser um pouco eu, pra sempre. Completou.

-Então invista em amigos e no tempo dedicado a eles. Foi sempre neles que eu pude realmente me encontrar. Orientei, com a boca cheia de poesia.

-Isso vale pra sempre, não percamos de vista. Finalizei dizendo o que eu precisava ouvir, qual fosse a geração.

Os 20 anos que recheiam o abismo entre aquelas duas versões da mesma coisa, guardam também neles e no mais empirico saber outros tantos personagens que ajudaram a contar uma história mais feliz hoje. É estranho, olhar daqui dos polos, e perceber o quão longe me levaram, pela mão e pelo sorriso, tanto quanto ver que já eram, no início de tudo, meu tudo.

Sorrisos com identidade, alegrias com receita de bolo e passo a passo, e a mais corriqueira felicidade, garantida em ser deles e de volta. Como pude me esquecer tanto assim? Ou me negligenciar… Que o eu de 57 me veja na rua um dia e agradeça pelos encontros nunca mais adiados.

E ali, sob a verdade daquele diálogo, redescobri o segredo maior. Acenei, com pena de apertar a mão do passado, e puxei o Dom pra perto, despertando a despedida. E na outra ponta, sob a vasta cabeleira, reprisei o aceno, acompanhando a valsa daquele “adeus”.

-A gente se vê. Gritei pra mim, esperando que fizesse sentido no sentido que fosse. De trás pra frente, de ver no inacabado adulto de 37 anos aquele incalculável jovem de 17, como na própria mão do tempo, vendo no âmago do garoto de 17 as exatas condições para tirar da cartola esse homem de 37, grato pela jornada até aqui.

-Eu sei. Respondi, e agora podendo ter sido qualquer um dos dois.

E assim voltamos pra casa, juntos, eu e eu… E sem nenhum dos dois, jamais, chegar. Em mim, agora, somos todos inadiáveis, e vai ser incrível ver o que esses encontros vão realizar de agora em diante. Amigos queridos, aí vamos nós.

Bernardo Fernandes – Belo Urbano. Um gêmeo canceriano, e um ingênuo que já passou dos 35 anos, nesse contínuo processo insano de se descobrir. Achou na Comunicação uma paixão e uma labuta, e vive nessa luta de existir além do resistir, fazendo diferente e diferença… Ser feliz de propósito, sabe? Sem se distrair desse propósito. E vai assim, escrevendo o que a alma escolhe dizer, tocando o que a viola resolve contar, fazendo festas com cachorros e amigos perdidos, e brincando de volei, de pique, e de ser feliz na aventura da sua viagem. Vai uma carona?

 

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