Sempre fui cismado com a mania que muita gente tem – inclusive eu – de guardar coisas em gavetas para não esquecer onde estão as coisas mais
banais do dia a dia, mas também os objetos importantes, tanto no aspecto material, como no afetivo. Muitas dessas relíquias caem no esquecimento e quando as encontramos, ao acaso, elas mudam de significado. Algumas perdem o prazo de validade, outras ganham valor emocional e muitas delas podem ser apagadas.
Na última incursão pela minha coleção de gavetas explorei uma em que eu havia guardado uma variedade de coisas: chave reserva, retrato 3X4,
selos, pilha usada, cartão de visitas, abotoadura velha, palito de dente, baralho, relógio de pulso, corta-unha, bolinha de gude, parafuso, pen drive, além de toda aquela papelada para organizar ou rasgar.
Entre os inúmeros trecos perdidos na gaveta remexida, encontrei um monóculo de fotografias. Um objeto retrô, do tempo da infância. Conhecido
também como binóculo. É um objeto de plástico colorido em formato cônico, medindo poucos centímetros de comprimento. Tem uma lente em uma das extremidades e na outra uma tampa branca na qual é fixada uma pequena fotografia. Para ver um fotograma dentro do monóculo, a gente precisa fechar um dos olhos e ficar contra a luz. Algo de mágico e nostálgico ao olhar, por meio de uma lente pequena, uma fotografia do tamanho de um selo. O monóculo de fotografias permite que você guarde uma lembrança e, onde você estiver, será possível enxergar uma memória em um espaço menor do que a palma da mão.
No fundo do monóculo encontrado na gaveta uma foto tirada por um fotógrafo ambulante durante uma festa de padroeiro. A foto caleidoscópica que
estava no fundo monóculo era do Toninho, um tio-irmão. Naquele dia de festa, ele, um homem negro trabalhador surgia no centro da fotografia, vestindo um terno branco muito alinhado, gravata borboleta preta, sapatos pretos. Ao fundo da foto um banco de praça, a balaustrada que margeia o rio e mais ao fundo as casas e sobrados da pequena cidade naquele dia ensolarado.
Quando aquela foto foi tirada eu era um menino de 10 ou 11 anos talvez, e estava caminhando ao longo da balaustrada, em companhia de gente
adulta, provavelmente parentes e amigos encontrando-se num dia de festa. O rio estava denso, com muita correnteza e o vento levantava uns borrifos que chegavam até nós. O sol estava quente no início do mês de fevereiro.
Um fragmento de memória como esse de encontrar uma foto significativa num monóculo é um resgate de memória casual e revisita a movimentação de nossos valores, ao longo dos anos que passam. O fato desse fragmento ter sido encontrado dentro de uma gaveta cheia de recordações, novas, recentes, velhas ou não; também permite perceber como nossa memória pode ser seletiva e decidir entre o que tem relevância, o que pode ser apagado, deixado para depois ou simplesmente abandonado.
Memória tem pelo menos duas coisas: lembrança e esquecimento. A falta de compromisso com as lembranças pode deixar a memória menos
pressionada a fazer esforços desnecessários. Economiza a energia emocional e liberta a imaginação para entrar em contato com aquilo que pode ser mais genuíno em nossas lembranças. Voltar a ver os objetos mais prosaicos com importância e outros nem tanta; talvez indispensáveis em tempos anteriores, possíveis candidatos ao lixo da nossa história pessoal ou então como possíveis luzes acesas no final do túnel.
João André Brito Garboggini – Publicitário, ator e diretor teatral e tem três filhos.
Que bom você tornar conhecido de tantos esse garimpeiro da chapada diamantina, personagem de nossa família. Deixa no ar a dúvida: será que foi nosso tio de sangue ou de coração? Um grande coração.
Adorei seu texto, ao longo do tempo as memórias se transformam e as dores se suavizam, a importância que damos para certos objetos que nos remetem a eventos importantes é outra após a ação do tempo, podendo seguir sendo algo doloroso ou não.