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Viajo no tempo

Viajo no tempo e me vejo na primeira infância falando pelo telefone preto, pesado – grande para aquela mãozinha –, com a Carminha Lucia, a amiga imaginária. Lembro-me do avô Julio querendo me levar para a casa dela, sorrio ao lembrar. Será que ele era um provocador?

Viajo um pouco mais no tempo e lá estou eu sentada ao lado desse avô na sua casa, eu ouvindo-o me contar sobre seu pai quando veio para o Brasil brigado com o pai dele (meu trisavô), que iria se casar de novo.

Viajo mais um pouco no tempo, mas para uma época perto daquela, e lá estou de novo com meu avô analisando a grafologia das amigas do colégio: “essa é burra, a letra é assim…”, “essa é íntegra…”, aprendendo sobre numerologia, linhas da mão, e sem perceber nascia ali a Madame Zoraide.

Viajo de novo e vou para o carnaval da infância, matinê no clube, vestida de baiana, o colar da prima Gi arrebentou antes de irmos… o choro…, mas no final nos divertimos com muitos confetes e serpentinas no salão, tudo certo, brincar sempre foi bom.

Viajo novamente e lá estou com a amiga Kátia, fazendo aulas de direção juntas, fazíamos muitas coisas juntas, o instrutor desesperado, que as alunas saíram sozinhas com o carro. Lembro-me dos olhos verdes do instrutor.

Na esquina do tempo, me vejo prestes a entrar na igreja com meu pai ao lado, escuto de uma futura (ex) cunhada que nunca viu uma noiva tão calma. A frase ficou na cabeça, contei para a Gi e ela disse: “é porque fizemos teatro, já conhecemos um palco”.

Viajo para a infância, acordo na sala, desesperada, achando que iria morrer porque algo dentro de mim fazia barulho, e a Vó Gisa a me dizer que aquilo era o coração que batia. Fazia barulho porque eu estava viva, “se parar, morre”. Quantas vezes coloquei a mão no peito só para sentir o coração bater e saber que estava viva.

Viajei de novo no tempo e fui para o começo da Modo na casa da Vó Luiza, tempo bom, muitas lembranças, bilhetinhos, fax, paradas para fazer o almoço, hortinha no quintal, máquina elétrica de escrever e um telefone preto que enfeita hoje a minha casa, 23560, era esse o número, depois entrou um 3 na frente e da minha casa foram 87054, 516529, 32516529, tivemos também o 32542001 e depois tive o 32130585 – será que este era o da minha casa ou da Modo? Neste momento não sei mais.

Viajo no tempo e estou no sofá passando a mão na barriga, sentindo o bebê mexer, e digo: “oi, filho”, ele acalma, quando nasce chora, vem para perto do meu rosto e eu digo: “oi, filho” e ele para de chorar na hora, Bruno, o meu mais velho.

Com cada filho, uma lembrança no nascimento. Pedro com o choro forte e voz grossa, até as enfermeiras falaram, e com a Carol chorei muito entrando no centro cirúrgico, medo de morrer e deixar os três, mas foi tudo bem e ela nasceu linda, forte e saudável.

E que mãe sou eu, afinal? Prefiro não responder, deixo a pergunta para meus filhos.

Na esquina do tempo, lembro do bolo de formiguinha da minha mãe e de tantos outros sabores que já experimentei.

Pés na areia, água salgada, montanha, escola de samba, danceteria, festival de violão, balé, teatro, comemorando a entrada na faculdade. A sensação boa ao descobrir como é bom abraçar e ser abraçada pelo namorado. Andar de bicicleta…

As memórias são tão ricas que nem cabem em um só sonho ou texto. Fico com elas dentro de mim, construindo todo dia novas.

Às vezes os dias são quentes, mas tem lágrimas. Às vezes os pés doem. Às vezes o carro para. Às vezes eu viro a esquina errada e mudo o caminho, e, nesse caminho, afetos. Sim, encontro muitos afetos e alguns poucos desafetos.

A vida é ida!

Adriana Chebabi  – Bela Urbana, sócia-fundadora e editora-chefe do Belas Urbanas, desde 2014. Publicitária. Roteirista. Escritora. Curiosa por natureza.  Divide seu tempo entre seu trabalho de comunicação e mkt e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa.

 

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Na gaveta encontrei o Toninho num monóculo

Sempre fui cismado com a mania que muita gente tem – inclusive eu – de guardar coisas em gavetas para não esquecer onde estão as coisas mais
banais do dia a dia, mas também os objetos importantes, tanto no aspecto material, como no afetivo. Muitas dessas relíquias caem no esquecimento e quando as encontramos, ao acaso, elas mudam de significado. Algumas perdem o prazo de validade, outras ganham valor emocional e muitas delas podem ser apagadas.

Na última incursão pela minha coleção de gavetas explorei uma em que eu havia guardado uma variedade de coisas: chave reserva, retrato 3X4,
selos, pilha usada, cartão de visitas, abotoadura velha, palito de dente, baralho, relógio de pulso, corta-unha, bolinha de gude, parafuso, pen drive, além de toda aquela papelada para organizar ou rasgar.

Entre os inúmeros trecos perdidos na gaveta remexida, encontrei um monóculo de fotografias. Um objeto retrô, do tempo da infância. Conhecido
também como binóculo. É um objeto de plástico colorido em formato cônico, medindo poucos centímetros de comprimento. Tem uma lente em uma das extremidades e na outra uma tampa branca na qual é fixada uma pequena fotografia. Para ver um fotograma dentro do monóculo, a gente precisa fechar um dos olhos e ficar contra a luz. Algo de mágico e nostálgico ao olhar, por meio de uma lente pequena, uma fotografia do tamanho de um selo. O monóculo de fotografias permite que você guarde uma lembrança e, onde você estiver, será possível enxergar uma memória em um espaço menor do que a palma da mão.

No fundo do monóculo encontrado na gaveta uma foto tirada por um fotógrafo ambulante durante uma festa de padroeiro. A foto caleidoscópica que
estava no fundo monóculo era do Toninho, um tio-irmão. Naquele dia de festa, ele, um homem negro trabalhador surgia no centro da fotografia, vestindo um terno branco muito alinhado, gravata borboleta preta, sapatos pretos. Ao fundo da foto um banco de praça, a balaustrada que margeia o rio e mais ao fundo as casas e sobrados da pequena cidade naquele dia ensolarado.

Quando aquela foto foi tirada eu era um menino de 10 ou 11 anos talvez, e estava caminhando ao longo da balaustrada, em companhia de gente
adulta, provavelmente parentes e amigos encontrando-se num dia de festa. O rio estava denso, com muita correnteza e o vento levantava uns borrifos que chegavam até nós. O sol estava quente no início do mês de fevereiro.

Um fragmento de memória como esse de encontrar uma foto significativa num monóculo é um resgate de memória casual e revisita a movimentação de nossos valores, ao longo dos anos que passam. O fato desse fragmento ter sido encontrado dentro de uma gaveta cheia de recordações, novas, recentes, velhas ou não; também permite perceber como nossa memória pode ser seletiva e decidir entre o que tem relevância, o que pode ser apagado, deixado para depois ou simplesmente abandonado.

Memória tem pelo menos duas coisas: lembrança e esquecimento. A falta de compromisso com as lembranças pode deixar a memória menos
pressionada a fazer esforços desnecessários. Economiza a energia emocional e liberta a imaginação para entrar em contato com aquilo que pode ser mais genuíno em nossas lembranças. Voltar a ver os objetos mais prosaicos com importância e outros nem tanta; talvez indispensáveis em tempos anteriores, possíveis candidatos ao lixo da nossa história pessoal ou então como possíveis luzes acesas no final do túnel.

João André Brito Garboggini – Publicitário, ator e diretor teatral e tem três filhos.

 

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Lugar feliz

Visitar antigas moradas é a melhor forma de escorar minha casa. Eu.

Recentemente, ouvindo uma palestra sobre autoconhecimento, foi feita a seguinte pergunta: Qual seu lugar feliz?

Algo como resgatar memórias que te causaram conforto. Foi nesse momento que comecei uma grande jornada em busca desse lugar.

Muitas situações vieram a tona. Boas, felizes e claro, as ruins e tristes. Tive uma vida confortável, uma família que sempre me abraçou com muito amor. Minha adolescência, juventude, fase adulta foram meio atribuladas e cheias de percalços. Mas foram bem boas também. Afinal, sobrevivi e estou aqui. A infância foi tudo do bem e do bom. Então, meu caminho de resgate estava em algum lugar dessa fase.

Minha irmã costuma dizer que eu era uma criança hiperativa. Não parava quieta e minha mãe a colocava para cuidar de mim em festas, eventos… por muitas vezes, ela vivia um caos. Gostava de esportes também. Desde pequena jogava tênis, fazia natação, não faltava da Educação Física. Por muitos anos joguei vôlei, participava dos campeonatos regionais e estaduais entre as escolas e representava um clube da cidade. Era levantadora. Essas lembranças me fizeram sorrir! Sorriso largo! E assim prossegui por horas a fio buscando na memória onde estava o meu conforto.

Todo final de semana frequentava o clube com meu pai. Não tinha nem 13 anos. Primeiro o tênis, depois ele ia jogar bocha e eu para a piscina. Por volta das 11h30, o combinado era nos encontrarmos na lanchonete. Nossa, era tão gostoso quanto subir no escorrega e me jogar de barriga na água gelada dando muitas risadas com os amigos. E lá nos encontrávamos. Seu Wilson era de pouca conversa, mas no clube era muito sociável e rodeado de bons amigos. Todos me conheciam. Era muito bacana.

O ritual era primeiro o bolinho de bacalhau com soda e limão. Depois, sentávamos numa mureta que tinha na lateral da lanchonete, ficávamos olhando para as piscinas chupando picolé de côco. Ele costumava a cruzar as pernas e me colocava para sentar em um dos seus pés para conversarmos enquanto me balançava. Não durava muito e ele já falava: chega dessa “melação” e termina seu picolé.

Ao lembrar desse momento, me deu um calor no coração, senti um aconchego e uma felicidade tomou conta de mim. Ali era meu lugar feliz!

Hoje, sempre que preciso de colo, de segurança, até mesmo o que fazer diante de alguma situação, me vejo naquela mureta, aquele balanço e parece tudo ficar bem.

Volto para o presente com um delicioso sabor de picolé de côco. Minha memória feliz! Meu lugar feliz!

Dani Fantini – Bela Urbana, Relações Públicas de formação. Se jogando na escrita de coração!
Mãe da Marina, filha super companheira! Cuida da casa, trabalha com gente, ama animais, plantas, é cercada de bons amigos e leva a vida com humor! Pode-se dizer que é completa, mesmo faltando algumas peças nesse enorme quebra-cabeças que é viver!

Foto Dani: @solange.portes

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Crônica sobre os prédios do centro da cidade

Pedaço 1
Hoje eu tive um sonho. Era um pedaço de caminho nebuloso. Em meio à névoa, como num filme do Fellini, surgiu a imagem de um touro numa intensidade do presente. O presente é futuro. Sempre converso com pessoas que acham que o pretérito é mais que perfeito, mas o sonho sempre é imperfeito. Imagens esparsas vão se tornando nítidas conforme se desenrola nas telas da madrugada bem dormida.

Pedaço 2
Ao volante do meu carro pela rua que leva à cidade, ao sol e aos devaneios vejo um jabuti atropelado no meio da pista. Estaciono, defronte ao cinema central. Caminho até o jabuti para observar a maldade que atropela animais pelo caminho. O jabuti imaginado não passava de uma luva largada no meio do caminho assim… como as latas e outras embalagens atiradas pelas janelas dos automóveis que transitam por aquela via.
De volta ao volante do carro a caminho do centro da cidade vejo os muros cinzas dos condomínios fechados e os cartazes que vendem liberdade aos moradores que habitam ali. À esquerda os bois e vacas andam uniformemente, brancos e prontos para o abate.

Pedaço 3
Agora vou falar a sério; vou falar umas verdades dos prédios vazios no centro da cidade. Fui fazer uma caminhada pela região central da cidade. Um deserto incontornável atrás da “Última Crônica” do Fernando Sabino. Entrei em algumas livrarias e sebos procurando alguma leitura para além da minha zona de conforto: a representação da vida em movimento na época contemporânea. Em algumas das prateleiras percebi que os livros não se encontravam organizados pelos critérios tradicionais por temas e ordem alfabética de autores e nomes de livros, mas pela vizinhança, meio que se encostando um nos outros pela sincronia de sua diversidade. Não encontrei o livro de crônicas que procurava.
Depois, andei pela rua vazia, ao longo de um novo muro cinza. Na praça, as crianças jogavam bola. Sentei para descansar perto das dúvidas dos sem-teto que estavam almoçando linguiça, arroz e rúcula e descobri que eles se organizavam para saber aonde iriam passar a noite, sem atrapalhar o público.

Parte 4 ou (Guisado de considerações)
Unificar aspectos humanos em si, independentemente do instante de seu acontecimento. Mas se tudo era um sonho bom sobre o tempo que lento, não diz nada a ninguém, nem mais ilude a alma batida como as roupas que os moradores da rua lavam e estendem ali mesmo na grama da praça. Nada mais do que o ciclo dos dias em sua velocidade que roda nos raios da bicicleta e o sol que a segue mais uma vez completa seu arco e dá lugar a uma lua acompanhada de estrelas que mais uma vez vão se embora e vem o sol e vai-se embora.
Assim eu gostaria que fosse a crônica: um apanhado dos pedaços e anotações justapostes como num painel sobre o tempo presente. Caminhar por ruas e praças desconhecidas para ficar em silêncio e escutar o novo.

João André Brito Garboggini – Belo Urbano – é publicitário, ator e diretor teatral e tem três filhos.
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Estrada de tijolinhos amarelos

Toda vez que penso em caminhos, me lembro de uma via de tijolinhos por onde caminhava todas as tardes após o trabalho, na cidade de Otsu, Província de Shiga no Japão.

Muito charmosa, recortava uma área grande onde havia uma biblioteca, um espaço cultural com diversas exposições de Arte e um jardim maravilhoso bem típico japonês.

Ao entrar nesse parque, o terreno inclinado além da vegetação bem cuidada, das esculturas espalhadas por entre as plantas, nos dava a sensação de estarmos indo a caminho do Paraíso. E eu, vivenciando uma fase de muitas reflexões existenciais, passeando demoradamente por entre as instalações artísticas, parando em cada novo ângulo para observar o pôr do sol, observando cada flor, cada espécie diferente que ressaltasse aos olhos, concluia que esse era meu jeito de viver.

Toda vez ao passar pelo portão de entrada, a imagem desse caminho me remetia à estrada de tijolos amarelos que Dorothy tinha que pegar para chegar à Cidade das Esmeraldas e encontrar a forma de voltar para casa, no filme “O Mágico de Oz”. E assim como no filme, os percalços vivenciados eram muitos.

Elucubrações excessivas nos desequilibram, ou na verdade, acontecem quando o coração está desequilibrado; nos levam aos profundos labirintos do Inconsciente e precisamos ter em mãos o tênue ‘fio de Ariadne’ para que consigamos voltar ao Consciente, à sanidade mental.

Foi através da Arte que encontrei o Caminho de Casa. Pintura, escultura, fotografia, Poesia… foram algumas vias pela qual transitei.

A todo momento temos que fazer escolhas que muitas vezes nos conduzem por vias desconhecidas mas que, com certeza, nos fazem avançar.
Pecamos quando nos tornamos estáticos pois a Vida é movimento; um movimento para o Centro, para nós mesmos.

“A antiga palavra grega para pecar significa ao mesmo tempo, ‘errar o ponto’… O ponto e o círculo – Deus e o Mundo – O Uno e o Múltipo – o irrevelável e o revelável – o conteúdo e a forma – o Metafísico e o Físico – são muitos pares de conceitos que se referem à mesma coisa.”
Trechos do livro ‘Mandalas’, de Rudiger Dahlke, que me trouxe uma clareza em meu caminhar.

Enfim, todos os caminhos levam à Deus!
Namaste

Érika Taguchi – Bela Urbana, publicitária por formação, com especialização em Marketing além de: terapeuta holística, praticante de Yoga Arhatica, fundadora do Instituto Sempre Vivva, artesã, cozinheira, costureira, poeta, jardineira, personal organizer e tantas outras definições mais.

 

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A vida cansa

Eu estou cansado, mas gosto quando sou anestesiado, mais um episódio do novo seriado, sobre um cara cansado que gosta de seriados. É triste esperar a morte chegar, sem algo que me faça perceber que a vida vai acabar.

As vírgulas estão no lugar errado? Já não me importo, tudo é passado, nada é pra sempre. O fim vai chegar, Deus há de se vingar, Deus precisa me ensinar a não falar o nome de Deus em vão.

Perdão!

Vão embora antes que eu comece a despejar as minhas mágoas imaginárias, nascidas de diálogos da temporada passada do seriado sobre um cara cansado. Eu tô cansado pra caralho, me sinto repetitivo, introspectivo, é sempre terça-feira, seja domingo ou segunda, tudo acontece, nada muda.

Muda de canal? Eu me sinto tão mal, com essas cenas irreais, eu já vi esse final, parece que eu sou o ator principal, esperando a morte, vivendo num espiral, o traje é casual, o trabalho é formal, o cansaço descomunal.

Ninguém sabe como me sinto, mas a minha dor é tão igual a de outros bilhões de atores principais, esperando o fim de suas vidas banais, nos achando reis, mas não somos nada mais que poeira interestelar, numa pequena esfera, vagando perdida no ínfimo e íntimo sistema solar.

Não cabe a mim julgar, mas será que minhas palavras podem viajar pelo infinito e alcançar o coração solitário de algum outro ser cansado do outro lado da imensidão que brilha na tela do seu celular?

Lucas Alberti Amaral – Belo urbanonascido em 08/11/87. Publicitário, tem uma página onde espalha pensamentos materializados em textos curtos e tentativas de poesias  www.facebook.com/quaseinedito  (curte lá!). Não acredita em horóscopo, mas é de Escorpião, lua em Gêmeos com ascendente em Peixes e Netuno na casa 10. Por fim odeia falar de si mesmo na terceira pessoa.
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Voltar

Há um momento que vivi anos e anos atrás que segue viívido em mim: fui fazer minha segunda faculdade distante 450km de casa.
Na primeira vez que voltei, já era noite, parei o carro “embicando” no portão e, nesse momento, numa coincidência carinhosa da vida, começou a tocar no rádio “O Portão”, do Roberto. Foi forte. Muito forte o sentimento que, sem pedir licença, tomou conta de mim.

Era a primeira vez que eu tinha saído de casa. Era a primeira vez que estava voltando.
Cheia de novidades, de saudades, de tagarelice desmedida, eu voltei.

Ainda não era prá ficar.

Abri o portão, guardei o carro, fechei o portão e entrei. Naquele momento ainda não fazia a menor ideia da repercussão emocional que este simples ato teria na minha vida mais de trinta anos depois.

E assim o tempo foi passando, acabei a faculdade, comecei a trabalhar, mudei de cidade, conheci pessoas muito diferentes e muito iguais, aprendi a exercer minha profissão.

Após um câncer do meu pai, nós fomos morar juntos novamente.
Papai faleceu, minha mãe e eu tivemos mais vinte anos de convivência. Amigas, cúmplices, apoiadoras.

Aí aconteceu uma doença grave que me jogou num leito hospitalar por dois meses. Precisei reaprender a sentar, engatinhar, até finalmente andar.

Então comecei a voltar. Assim, sem pensar. Deixando acontecer. Hoje eu sei. Entendo. Agradeço.

A gratidão começou a ganhar uma dimensão imensa. Grata ao amor que pude sentir, às pessoas que tiveram paciência ao me esperar encontrar o caminho de volta.
Isso gerou força capaz de abrir o portão. Os portões. O cadeado foi quebrado.
Mas ainda sem perceber o processo que se desenhava.

Minha mãe também faleceu.
Minha aposentadoria chegou.
E eu lá, sózinha em São Paulo.
Ô cidade cruel com os sozinhos!

Foi então que decidi voltar para o interior, onde tinha uma parte da família – a parte de laços fortes.
E portões.

Comprei meu apartamento, vivi meses incríveis neste recomeço..

A alegria foi perdendo a forma, cedendo lugar a novas percepções, algumas decepções.

Passei a ficar muito comigo mesma.
Com minha vida vivida inteira à disposição para reflexões , entendimentos, reformulações. Não mais intuitivamente, mas foi com um misto de garra e medo comecei a vislumbrar as frestas. Ensaiando voltar.

E durante a pandemia, após 45 dias completamente isolada, comecei a voltar. Pra mim. Por mim.

E a música insistia “…. acho que só eu mesmo mudei e voltei…. agora pra ficar…”

Tem sido muito bom e difícil abrir o portão e voltar. Decidir quando fechá-lo. Para quais caminhos não voltar. Quais repavimentar. Pra poder voltar. Em paz.

Ruth Leekning – Bela Urbana, enfermeira alegremente aposentada, apaixonada por sons e sensações que dão paz e que ama cozinhar.  Acredita que amor e física quântica combinados são a resposta para a vida plena.
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Rotina

Tenho pensado muito sobre simplicidade, humildade, quereres e fazeres.

Sobre tudo que já vivi,  as escolhas que fiz, os medos e alegrias que mexeram comigo de forma profunda e me fizeram ora recuar, ora ser cautelosa e ora virar um bicho cheio de garra.

Sobre as diferenças e afinidades nos relacionamentos.

Sobre dar, como dar, sobre receber e como demonstrar os sentimentos envolvidos nestes atos.

Sobre amor. O mais puro, desprovido de expectativas,  de egoísmo. Aquele sobre entender que o pássaro é livre. Sobre os dizeres imponderados,  ímpetos de indignação egoistica,  recuos fantasiosos. Sobre dar sentido à simplicidade enchendo-a de cores, flores, amores.

Sobre guardar no mais íntimo o que me é revelado em convivência. Sobre valores, ética…… sobre viver e deixar viver. Respeitar desmedidamente as pessoas, suas culturas, suas palavras às vezes tão desencontradas do que penso.

Tenho pensado muito.  Sobre mim e sobre todos. Sobre meu mundo e sobre o universo. 

Sobre tudo que temos passado nos últimos três ou quatro anos pessoal e globalmente e como isso é -ainda é- determinante no presente.

Sobre o que penso em relação  ao momento político do nosso país,  sobre extremos e atitudes provocantes. Não quero isso. Não suporto mais. Eu me retiro. Tenho humildade para reconhecer que sou uma mal informada, que estou à revelia da realidade.

É isso : exercício diário de humildade.  

Ruth Leekning – Bela Urbana, enfermeira alegremente aposentada, apaixonada por sons e sensações que dão paz e que ama cozinhar.  Acredita que amor e física quântica combinados são a resposta para a vida plena.
ResponderEncaminhar
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O descanso não vem aos domingos

Quando é que o tempo para? Eu me pergunto dez vezes enquanto me visto para o trabalho.

O cansaço que eu sinto é de outras vidas e parece que eu o levarei comigo para outras mais.

Hoje é segunda-feira. Não adianta um domingo por semana. As pausas semanais são ilusões que nem começam, nem terminam, se emendam aos dias que chamam de úteis e a vida segue sem noticiário, porque o domingo é sagrado. Mas, cadê o descanso? Ele não vem aos domingos também.

A realidade é sedenta de minutos corridos, não dá tréguas nem para beber água, nem para olhar o céu, nem para disfarçar.

Eu acordo com o relógio atrasado, arrastado, me pedindo para cuidar da casa que nem amanheceu, nem viveu a noite.

Não converso mais com o espelho depois dos desaforos que ele vinha me dizendo e que eu retribuía sem nem sentir dó, nem querer mal. São as micro agressões perturbadoras do ego que eu evito alimentar.

Os instantes precisam de mim e eu nem posso desfrutar.

Todo dia a mesma coisa: correria e ofegância. Nada é capaz de me tirar do moinho de mim. Por fora pareço ventar, por dentro nem inspiro, nem respiro.

Quero ar, quero mar, quero par, quero lar… mas, não encontro brisa, nem onda, nem afago, nem travesseiro. Passo os dias ansiosa, tentando acreditar que uma hora alguém vai dizer bem alto que o tempo resolveu apreciar a paisagem e liberou geral para vadiar.

Pior é que esse desejo de não fazer nada vem embarcado em culpa e saudade. É tão difícil ter paz! Eu tenho sentido falta da angústia do tédio na minha infância, da aflição do ócio na maternidade, daquela gana terrível de não ter o que fazer na adolescência, do medo de perder tempo em pensamentos soltos e revoltos que um dia foram meus, nem são mais.

Quem pode suportar essa ideia de que o nada tenha seu valor? Eu não dou conta!

Mesmo exausta, sôfrega e abatida, recebo convites para tomar café, sorvete, vinho no meio da semana… e pedidos de ajuda no meio das noites chuvosas… e lembretes de eventos nos momentos mais inusitados. Tudo isso é motivo de orgulho para mim, pois ainda que eu me sinta cansada, aos olhos do meu mundo sou lembrada e sou salva da loucura de que o tempo nunca repara em mim.

Termino de me vestir sem resposta e apressada, acumulando mais cansaço à minha já lotada mala de lamentos inesgotáveis, ansiando por mais tempo e mais vigor.

Não hesito em suspirar para que a esperança não tenha tempo de fugir de mim.

Dany Cais – Bela Urbana, fonoaudióloga por formação, comunicóloga por vocação e gentóloga por paixão. Colecionadora de histórias, experimenta a vida cultivando hábitos simples, flores e amigos. Iinstagram @daniela.cais

 

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Se essa casa fosse minha

Se essa casa fosse minha provavelmente teria um livro ao lado da cadeira na entrada. Talvez tivesse também uma escrivaninha, onde sobre toda a bagunça do dia a dia, teria rascunho das minhas poesias.

Ah! Se essa casa fosse minha, a xícara de café teria fumaça saindo, um aroma de livro velho misturado com poeira e um ar de quem vive sorrindo.

O que mais teria?

Teria música espalhada pelos cantos, cantos de vários poetas que escreveram sua voz no tempo, e de tempos em tempos, derramariam sobre a tarde que se esvai levando levemente o dia;

Teria também um gato para trazer harmonia, que no final do dia, iria deitar no meu colo enquanto eu lia;

Teria um incenso queimando lavanda, encontrando cheiro e alegria, durante a chuva, tudo misturado, o gato, os livros, a textura da música e a poesia;

Teria lembranças na parede representadas por fotografias minhas, dos amigos, das viagens de outros dias;

Teria uma bela cozinha…. e tempos em tempos, com a casa cheia, alguém cozinharia, cantaria e falaria alto, durante a noite e durante o dia;

Teria coração aberto, gritos de crianças em alegria, sonho de vô, ver sua casa cheia, todo dia!

André Araújo – Belo Urbano. Homem em construção. Romântico por natureza e apaixonado por Belas Urbanas. Formado em Sistemas, mas que tem a poesia no coração e com um sorriso de menino. Sempre irá encher os olhos de água ao ver uma Bela mulher sorrindo.