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Era meu primeiro amor

Relacionamento abusivo? Eu não fazia ideia na época, mas confesso que passei por um há mais ou menos 20 anos, quando pouca gente falava nisso abertamente, sobretudo entre casais gays.

Eu tinha vinte e poucos e ele uns cinco anos a mais. O ciúme dele era perceptível desde sempre, mas eu confundia esse sentimento com paixão entre dois arianos.

Aceitava com naturalidade o controle dele sobre meus horários, minhas saídas com amigos e idas ao clube, que ele insistia para que eu não fosse, sabe-se lá porque.

Nada que eu dissesse o dissuadia da ideia fixa de que eu aprontasse, nada, e eu me resignei a uma rotina que ele aceitasse. Mal sabia eu, que anos mais tarde, eu o levaria ao hospital depois de uma briga que tivemos.

Eu havia chegado mais tarde em casa naquele dia e nada que eu dissesse o convencia que eu não estava na sauna gay. Discutimos aos berros e num momento de fúria, ele derrubou uma estante aos meus pés. Foi aí que eu dei meu primeiro soco na cara de alguém. Acertei em cheio. Tive de levá-lo ao hospital para receber cuidados e depois paguei de agressor ao levá-lo ao teatro onde ele trabalhava. Amarguei a fama de irascível, destemperado e violento, quando não era.

A gota d’água, contudo, foi o dia em que ele abriu meu e-mail e leu minha correspondência com um amigo, onde eu havia dito que, depois de uma briga, me engracei com um sujeito na rua e acabamos transando. Devia ser o estopim da maior briga, mas não foi. Eu me assenhorei de mim naquele dia. Ele me ligou no trabalho e começou a discorrer sobre o que havia lido e eu cravei: “estamos terminados”. Exigi sua saída imediata de casa e assim, se encerrava a relação.

Foram  quatro anos de controle, desconfianças infundadas dele contra mim, dedos em riste, acusações delirantes e uma marca profunda na minha combalida autoestima.

Depois de alguns meses, descobri um HD externo dele em casa e ali havia a confirmação da minha suspeita: era ele quem me traía, quem em turnê com a peça ficava com quem aparecesse, quem inventava compromissos para me distrair das suas traições. Eu, ingênuo, nunca imaginara que tudo que eu supostamente fazia de errado era, no fundo, fruto de projeção do comportamento dele para comigo.

Descobri tarde? Não, afinal era meu primeiro amor. Amando a gente se descobre, especialmente quando a gente se ama e se respeita.

Décio Hernandez – 47 anos, jornalista da área cultural e nadador amador.
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As rédeas da minha vida de volta

Muitas pessoas me perguntam em silêncio como pude permanecer numa relação abusiva… Poucos realmente têm empatia pelo que passei e tentam se colocar em meu lugar…. alguns se voluntariam a psicólogos repletos de conselhos “certeiros”…. umas duas ou três tentam entender a fundo as situações pelas quais vivi… ninguém sabe na verdade o que eu senti ou sinto até hoje…. eu mesma procuro diariamente validar meu passado, entender, ressignificar dentro de mim pra então, seguir adiante…. absolutamente ninguém compreende as dores de se viver uma relação abusiva e a dificuldade que é sair dela, só eu e você, que eventualmente passou por isso também… No início tudo parece que vai passar, você se enche de esperança e coragem achando que pode mudar a pessoa que está com você… mas ninguém muda ninguém… as pessoas são o que são… o que muda é a nossa capacidade de enxergar… viver na pele o abuso é uma tortura sem data pra acabar… teve um momento em minha vida que não havia um dia que fosse em que eu não chorava… vivia triste, com medo e ainda assim me achava corajosa… não gostava de me colocar no papel de vítima, então de certa forma eu tentava “mascarar” as situações… eu mesma me enganava… tinha um véu em meus olhos e nada via além… perdi meu amor próprio, minha liberdade, meu direito de ir e vir… vivi presa numa vida, em ciclos eternos… e com isso a coragem vai sumindo, não tinha forças pra sair daquela relação… só sabia ter medo… e foi em um Natal, 25 de dezembro, que com a presença da minha mãe em casa, tive coragem para tomar as rédeas da minha vida de volta…. mas não pensem que foi fácil, não foi nada fácil… vivi dois anos de medos e perseguições de um homem que não aceitava o fim da relação… abri mão de bens materiais, eu achava que estaria “comprando” a minha paz, mas a paz não tem preço… então mudei… larguei emprego, casa, uma vida estável e vim para longe… perto da minha família, perto dos meus…. a cada página virada nessa minha história, sinto mais orgulho de mim… por quem eu fui, por que eu sou e principalmente, por quem estou me tornando…. estou me resgatando, pedaços meus espalhados com o passar do tempo… resgato o que eu era para construir quem eu sou… hoje sim, tenho as rédeas da minha vida em minhas mãos e não permito que ninguém tente tomá-la novamente de mim…

Carol Costa – Bela Urbana, mulher, mãe de dois meninos, bacharel em direito, apaixonada pela escrita, pela vida e movida por sonhos.
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Luz sobre as oprimidas

Desperta-me atenção tudo o que está por trás dos relacionamentos abusivos. A lista é certamente finita, mas penso que o tema daria um livro, tamanha a quantidade, diversidade e amplitude de detalhes sórdidos.

Ousaria dizer, antes mesmo de refletir, que tudo gira em torno de poder. Poder de status social, midiático, cultural, político, financeiro, de gênero sexual, de raça e cor, étnico e tantos outros, incluindo alguns fantasiosos.

Esse poder carrega uma mensagem subliminar: “Se sou ‘superior’, tenho ‘direitos’ sobre você, o que faz de você ‘meu súdito’, portanto ‘submeta-se’.”

Retomando o aspecto do poder, gostaria de jogar luz sobre a ausência dele, quando olhamos para a figura feminina, no processo de relacionamento abusivo. Esta é vítima, interesseira ou ‘vagabunda’, na conotação sexual, infelizmente, aos olhos da sociedade ainda “machista”.

Assisti ao documentário Johnny Depp X Amber Heard, na Netflix, e os absurdos do caso me deixaram enojada.

Não vou julgar, aqui, as partes e sequer emitir opinião sobre o veredicto ou sobre as agressões verbais ou físicas, do casal. Agora…, um homem famoso, bonito, com enorme fã clube, bilionário, de fama mundial (Johnny Depp) leva a júri sua ex-esposa, por difamá-lo.

A Corte ‘decide’ filmar todo o julgamento e colocá-lo, em tempo real, na internet.

O grande e maciço público fã de Johnny Depp é feminino, o que fez com que mulheres do mundo todo gritassem a seu favor, durante as audiências, à porta do fórum, em vídeos pelo tiktok e em diversas redes sociais, sem se importarem com as verdades e mentiras, do caso.

Em suma, o mundo feminino massivamente apoiou e favoreceu a opinião do júri popular, que defendeu Johnny Depp, contra uma mulher, apequenada por todo aquele “circo de poderosos”.

Posteriormente, levantou-se informações que ficaram protegidas no processo, pela juíza, consideradas como “irrelevantes” no caso, como o fato de ela ter sido agredida por ele, num vôo particular, cujo testemunha mentiu, jurando falso testemunho.

Causam-me estranheza todas as atitudes da juíza. Além da exposição “ao vivo”, ocultar diversas informações que colocaram a vítima no papel de mentirosa, favorecendo o agressor em todas as situações.

Gostaria de conseguir avaliar o efeito deletério de todo esse desastre público sobre os homens agressores e as mulheres por eles oprimidas. Qual foi a autorização subliminar que tantas mulheres, ao redor do mundo, deixaram aos opressores?

Fico imaginando quantas daquelas mulheres que apoiaram e gritaram a favor de “Depp”, não foram oprimidas e abusadas nos últimos 12 meses…

E a maior reflexão que fica, para nós, mulheres, é: Apontar o dedo para os opressores é o único e o primeiro caminho?

Será que não devemos começar por olhar para a nossa base familiar e nossa base de amor, como fazemos nossas escolhas e como agimos diante de atitudes indevidas? Olhar com carinho para a nossa força interior, nosso valor e para o prazer de uma relação equilibrada, para sairmos do papel de oprimidas?

Marisa da Camara – Bela Urbana, Administradora aposentada, que hoje atua em suas paixões: a escrita e a radiestesia. Crê nas energias da natureza e é amante da vida, dos seres humanos e ‘doidinha’ por seus 4 netos.
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Sobre Manu, vejam só.

Dia Internacional de combate à violência contra a mulher (que deveria ser todo dia!).
Alerta de possível gatilho gatilho. Aborda violência.
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“No Dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num ato totalmente desumano.”

Há quem diga ainda que se trata de lenda. Vou então dividir uma verossímil “historinha”:

Era uma vez uma Mulher, só mais uma entre tantas que tem por aí. Não fora carbonizada no referido incêndio que fez da cor lilás (a mesma do tecido que estava na linha de produção por ocasião da barbárie) o símbolo de uma luta sem fim. A luta por visibilidade livre de falsas validações. Vamos chamá-la de Manu.

Manu era assim, feita de paradoxos humanos. Feita de doçura e um tanto de fúria também, adicionado ao medo, que mesmo estando ali, não a impedia de avançar em seus sonhos. Manu gostava de Arte, Manu gostava de dançar, Manu gostava de pintar, bordar e comer mousse de chocolate. Manu gostava de trapezistas, sempre torcia para que asas brotassem no instante final. Gostava de leões e pequenos insetos, principalmente aqueles vermelhinhos com bolinhas pretas. Manu gostava de crianças e de contar histórias (para crianças e adultos). Manu sonhava de olhos abertos e por vezes vivia de olhos fechados quando o medo vinha lhe visitar… depois abria esses mesmos olhos e continuava a andar.

Um dia Manu resolveu ser mãe. Manu nunca trabalhara em uma fábrica. Minto: Trabalhara uma vez numa fabriqueta de pizzas onde a meta era congelar mil disquetes de mussarela por dia. Tinha como companhia seu constante Sonhar. Sonhava com família, mesa posta, janela em forma de arco, amor e comunhão. Sonhava em ser mãe. Era quase ingênua, afogada em um pueril romantismo.

Um dia, se descobriu grávida. Como grávida? Oras, como engravidam a maioria das mulheres… contou a novidade ao então “companheiro”.

“Manu, tem certeza de que quer ter esse filho?”
“Claro, querido.”
“Não vai ser fácil.”
“Não conto que seja fácil.”
“Ok”.

Esse “ok” lacônico foi o anúncio de tempos de guerra. Enquanto a barriga de Manu crescia, rumo ao nascimento de uma “Manu-mãe” e sua menina (havia uma garotinha dentro dela), seu companheiro enlouquecia. Parecia vibrar com a gravidez, mas não raro, era tomado de acessos de ódio.

“Manu, você não é a mãe certa pra um filho meu. Você sonha demais, Manu, o que você vai ensinar pra essa criança? Arte?”
“Vou ensiná-la a ser feliz”, respondia Manu entre enjoos, vômitos e sorrisos a cada pontapé da criança.
“Ok”.

O “companheiro” começou a enlouquecer mais. Primeiro, botou-a na rua com uma barriga de quase seis meses:

“Vá embora, Manu, senão te encho de porrada. Não estou preparado.”
“Estou grávida…”
“Problema seu”.

E lá se foi Manu, sem lar nem lastro, uma mochila nas costas e a certeza de que seu bebê veria a luz. Dormiu em bancos de postos de gasolina, tentou fugir para outro estado, voltou, dormiu sobre nacos de papelão e sob o frio de chuvas finas. E a barriga teimava em crescer, protegidas pelas mãos de uma Manu em constante estado de prece.

Um dia, o “companheiro”, movido pela vergonha(?), chamou-a de volta “pra casa”.

“Manu, aqui é seu lugar.”

A assustada Manu voltou.

“Manu”- ele começou -“agora que você vai ser mãe, tente ser mais discreta… mãe cuida de criança. Mãe não faz arte”.

Olívia nasceu. Dezoito horas depois de a bolsa estourar. Entre estagiários que dividiam uma pizza na sala do pré-parto, bem na Praça Mauá. Sem analgesia, veio alegria à vida de Manu.

Manu deu peito ainda na mesa de parto. Manu nasceu “Mãe” junto com sua menininha de olhos vivos e muita fome de leite. Olívia era sua Arte maior.

Manu espalhou arte por toda parte: Tons lilases, amarelos e rosas no quarto da menininha. Músicas de ninar em várias línguas de um cd encontrado no Centro: até em iídiche. Havia uma atmosfera de sonho na nova realidade.

Manu voltou a trabalhar aos nove meses de Olivia. Era cenógrafa. Quando não estocava o próprio leite, levava sua pequena para as coxias de teatro. Não tinha babá e queria ver a filha crescer sob seus olhos.

Um dia, chegou em casa e botou a pequena já adormecida no berço. Tomou de seu companheiro o primeiro grande tapa na cara: “Isso não é um jeito certo de ser mãe”.

Manu se recolheu ao quarto, onde trancou-se com a filha enquanto seu companheiro rumava porta a fora para tomar “uns tragos”. Era muito difícil ser pai…

Após sucessivos tapas na cara, Manu foi evitando o espelho. Deprimiu, parou de trabalhar, foi vista como inútil por parentes distantes.

“Meu projeto foi aprovado… aquele roteiro de cinema”… disse um dia Manu, Olívia já com um ano e meio.

A resposta veio em forma de soco. Depois vários, seguidos de chutes. Um dente a menos. Uma lesão no crânio feita a pontapé que não chegou a atingir a meninge. Cusparadas sobre todo o corpo. Ofensas rebuscadas, de “puta” à “louca”. Havia sangue em todo o assoalho. Uma vizinha entrou na sala que não estava trancada.

“Corre, Manu! Pra minha casa!”.

Manu pegou a chorosa Olívia e ganhou a rua. Teve medo de ir à polícia e nunca mais voltou. Demorou a voltar até para si mesma. Também nunca separou-se da filha. Era seu vínculo com a Vida. A Arte foi voltando aos poucos e a Coragem também. Conquistou uma casa com janela em forma de arco, que se não tinha príncipe, ao menos não era proibido sonhar. Por muito pouco, não fora carbonizada. E nunca mais se deixou “apanhar”.

Em um eventual encontro com seu ex-companheiro, não teve dúvidas ao ser ameaçada: polícia e medida protetiva. Não acabaria em brasa nem carvão. Tampouco seria reduzida à mais uma história silenciada em tantas paredes protegidas por hipocrisias. Agora, só lhe interessava Vida.

[Não é mais necessário o consentimento da vítima, muitas vezes paralisadas pelo medo, para denunciar todo tipo de violência contra a mulher. Silêncio pode matar. Denuncie: Disque 180. Quantas “Manus” existem por aí?]

Eu escrevi este texto há dez anos atrás. E hoje posso dizer que a Manu sou eu e potencialmente, qualquer uma de nós.

Claudia Tonelli . –  Bela Urbana, gosta de desenhar e escrever compulsivamente, contar boas histórias e maternar plantas e gatos, que a ajudam a lidar com o ninho vazio. Curte queijos: quanto mais “fedidos e mofados”, mais gostosos.