No início dos anos 90 ele passou por mim. Era meio enigmático. Feio, sem nada que justificasse uma atração física. “Mas, quem irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?”
Meses depois, nos reencontramos na contramão e a paixão explodiu.
Olhando agora, com distância e maturidade, não era para ter acontecido se tanto eu quanto ele soubéssemos respeitar nossas vulnerabilidades. Limites desconhecidos, tragédias anunciadas.
Ele era um cara mais velho, recém-formado, machista, inseguro e que pela primeira vez na vida tinha um salário digno que lhe proporcionava o contato com lugares e pessoas mais sofisticadas do que o habitual.
Eu, bem nova, carente, baixa autoestima, inexperiente, criada sob a crença das mulheres abnegadas, que não expressam descontentamento, nem interesse, mesmo em crise de dor.
Nossa primeira noite juntos foi num dia em que eu bebi até desacordar e quando acordei sabia que já não era a mesma, nem sei dizer o que senti.
Lembro de voltar a pé para minha casa, numa distância de uns dois quilômetros, com a sensação de que todos os maus julgamentos eram para mim.
Doeu muito, mas, ao mesmo tempo, me veio a satisfação ilusória de que talvez fosse o começo de uma relação que eu desejava tanto.
O namoro era escondido. Ele ia à minha casa e lá era o cara carinhoso, divertido e protetor que eu imaginava querer. Da porta para fora, ele me ignorava, ficava com outras na minha presença e adotava um comportamento que me fazia parecer louca.
Os nossos amigos eram comuns. Para eles, o nosso envolvimento era casual ou só existia na minha cabeça ou pior, só acontecia quando eu forçava a barra.
Eu me tornei a menina da janela, que esperava, esperava, esperava, para de vez em quando sorrir.
Cansada, pedi que ele tomasse uma decisão e foi então que ele se foi, sem caminhos para voltar. Eventualmente me ligava e se masturbava ao telefone. Me constrangia. Eu nunca contei para ninguém.
Foram meses de muito sofrimento e solidão. Eu definhei física e socialmente. Tive anorexia nervosa, não conseguia comer e, enquanto isso, os amigos se afastavam porque achavam o meu sofrimento exagerado.
Me humilhei algumas vezes na tentativa de reatar o que nasceu desatado, solto e incompatível.
Cheguei a pensar em desistir da vida. Por milésimos de segundos, mudei de ideia e fui lentamente, muito lentamente mesmo, me recuperando do luto de mim mesma.
Não foi o fim de um amor, foi a revelação de um caso de desamor que me marcou profunda e dolorosamente, afetando as minhas relações posteriores. Todas as relações: com minha família, com meus amigos, com namorados e, até hoje, 30 anos depois, casada e com filhos, sinto o peso dessa rejeição em meu coração.
Claro, tive tempo e terapia para ressignificar os abusos que me aconteceram. É como uma cicatriz que já não dói, pouco aparece, mas quando você olha sabe o tombo que a causou. É isso, uma cicatriz.
Sinceramente, não sei se ele sabe o mal que me causou. Na época era um comportamento muito comum entre os homens que precisavam se firmar como tais. A sensibilidade masculina era subjugada e a métrica da virilidade era a cafajestagem.
Hoje, se eu pudesse aconselhar a menina da janela, diria a ela para alimentar a coragem de dizer o que sente e não condicionar sua felicidade à chegada de alguém.
Porque para ser feliz depois de tudo eu descobri que amar-me é o meu superpoder!
Anônimo – Mulher, brasileira, mais de 50 ano, não quis ser identificada.
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