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A bota

Quando eu tinha 25 anos, morei em Londres, de lá fiz algumas viagens pela Europa e uma delas foi para a Grécia, foi um período da minha vida que recordo com muito carinho, cheio de aventuras, desejos e anseios pelo futuro, aquele tempo da vida que a gente gosta de lembrar, contar as histórias e se sentir grato pois teve essa oportunidade e aproveitou, esses dias organizando armários, encontrei uma bota preta, de couro, que me transportou novamente para aquela viagem, fiquei nostálgica e revivi o dia que a comprei, eu viajei com uma mochila pequena, a viagem durou uns 10 dias, já não me lembro bem, portanto não tinha e nem queria levar muita bagagem, eu caminhei muito e a bota que levei estragou, tão velha estava, preciso dizer que eu vivia um período de decisões, eu sabia que teria que voltar ao Brasil em breve pois meu segundo visto estava vencendo e namorava um rapaz britânico que residia em Londres, eu era jovem e cheia de intensidades, portanto quando me deparei com a bota preta em uma vitrine de uma loja de calçados em Atenas, pedi para dar uma olhada e vi que tinha sido fabricada no Brasil eu fiquei muito emocionada, um turbilhão de pensamentos inundaram minha mente, pensei que Deus tinha me enviado um sinal de que era hora mesmo de voltar para o Brasil, experimentei, ficou super confortável e o preço era ótimo, comprei.

Essa bota me acompanhou até hoje (52 anos), já levei ao sapateiro para trocar a sola, quando já não fazia mais meu estilo eu a mantive no armário, guardei pensando que talvez uma das minhas filhas a usasse algum dia, e efetivamente uma delas a usou, hoje já não quer mais e decidi doá-la, vou deixá-la ir com muita ternura, e que ela faça feliz a próxima dona ou dono, assim como me trouxe tantas alegrias, caminhei com ela por lindos lugares, vivi momentos cheios de amor e encantamento pela vida, ela testemunhou muitas descobertas e se maravilhou comigo na caminhada, ela foi companheira de um período mágico que eu não imaginava que fosse viver um dia, um calçado que é pleno de significados para mim, eu sou dessas pessoas que gostam de olhar os objetos que tem e sentir a energia deles carregada das minhas histórias, um marcador de página que comprei ou ganhei, um enfeite que alguém me trouxe de algum lugar, um livro que li em determinada viagem e que me acompanhou na jornada, tudo isso faz parte de memórias que são muito preciosas para mim, por isso vivo um paradoxo constante: quero ter menos coisas e ao mesmo tempo tenho dificuldade de me desfazer de determinados objetos que me trazem alegria e doces memórias ao olhar para eles, e respeito isso, tudo têm sua hora certa: a hora de me desapegar da bota chegou.

Eliane Ibrahim – Bela Urbana, administradora, professora de Inglês, mãe de duas, esposa, feminista, ama cozinhar, ler, viajar e conversar longamente e profundamente sobre a vida com os amigos do peito, apaixonada pela “Disciplina Positiva” na educação das crianças, praticante e entusiasta da Comunicação não-violenta (CNV) e do perdão.

 

6 opiniões sobre “A bota

  1. ENCONTREI NESSE SEU TEXTO A VERDADE…. HISTÓRIA DA BOTA.
    ENGATILHOU MESMO E EU ME LEMBREI QUE, AQUILO QUE VOCÊ COLOCA NOS PÉS
    É PARA TODO O SEMPRE!!
    AS IDAS AO SAPATEIRO FOI O QUE MAIS PEGOU…
    QUE PERFEITO… QUE BEM FEITO. PARABENS!!
    (e não é loucura da joaninha)

    1. Quanto tempo Joana! Obrigada por seus comentários, sempre tão queridos. Beijos.

  2. Texto lindo! Fui transportada para um lugar de afeto!!

    1. Obrigada Ana Célia ! Um abraço.

  3. Já eu lembrei de uma passagem do livro da Rita Lee

    “Pra lá de Marrakesh”
    Com minha cabeleira vermelha, a sensação era a de andar com um eterno
    sol na cabeça, me sentia cada vez mais caliente e agradecida por estar viva
    naquele planeta azulzinho dizendo ao mundo hello-goodbye. Essa
    temporada londrina com esticadas em países vizinhos favoreceu meu
    destino, tipo estar no lugar certo na hora certa. Assisti Jimi Hendrix
    tascando fogo na guitarra no Marquee e depois, no festival na ilha de Wight,
    dormi aos pés de Stonehenge em plena lua cheia e aprendi a tocar flauta
    transversal viajando de mescalina numa floresta mágica do País de Gales
    com um garoto inglês lindinho chamado Ritchie (que sequestrei para o
    Brasil). Num bate-volta a Londres, praticamente adaptada à vida cigana,
    entrei na famosa butique Biba, experimentei um par de botas prateadas de
    plataforma e pedi para a atendente um número maior. Quando ela foi
    buscar, saí andando da loja, “invisível” com o produto do roubo nos pés.
    Tudo bem que não estava muito sóbria nessas ocasiões, muito menos
    carregava uma máquina fotográfica provando a mim mesma que realmente
    vivia tudo aquilo de corpo presente. Se bem que as botas da Biba, a flauta e
    o ingresso do Marquee tenho até hoje. Durante um bom tempo fiz a lindaleve-solta, difícil lembrar das esquinas por onde andei, dos bailes da vida
    que dancei. De Itaparica fui parar em Berlim, morei três meses na quitinete
    de um ator no morro do Vidigal, uma breve visita aos campos de papoulas
    do Afeganistão (hã?) e sei lá quanto tempo numa quinta em Portugal. Fora
    o resto. É possível que tais aventuras tenham sido apenas viagens
    psicodélicas, flashbacks ou déjà-vus, sonhos lúcidos ou mediunidades. Ou
    não.

    1. Quantas aventuras! Obrigada por seu texto que me remeteu a magia que há sair pelo mundo a fora colecionando experiências.

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