Posted on

O exercício de poder e o vocábulo indizível do que se sente

Achou que podia ser ríspido comigo, achou que podia ser displicente comigo, achou que podia me criticar por falhas que não cometi, assim fez.

Achou que podia exigir de mim o sexo que não consegui, achou que tinha mais razão e quando reclamei, achou que sempre recebia a culpa de tudo no mundo. Achou que podia me vigorar, vigiar minhas mensagens, meus eletrônicos, pós câmera escondida, criticou minha negativa, era amor. E de achar em achar, se criou o hábito, se perdeu o espaço e a vida.

Era para si o centro de tudo que era bom e tudo que era ruim. O resto orbitava. Me sentia o resto. E quando debatemos essa relação de centro e periferia, apenas eu tinha algo a fazer, mudar e repensar. Até o que no pacto era de sua responsabilidade, eu tinha que sinalizar. Eu era o servo.
Eu tinha a faca, o queijo, o machucado, a culpa do corte e o curativo para colocar, e apenas uma mão para fazer tudo isso. Não era queijo, mas minha queixa, meu problema, minha solução que me machucava e que não permitia atender a demanda de alguem. Tudo isso para resolver ao mesmo tempo, senão adeus. Pior solidão é aquela na qual quem está contigo te impõe. E impõe ao ponto de querer dormir numa noite fria com ventilador, apenas para sentir o abraço quente de um cobertor.

Que poder tem Narciso sobre seu espelho, se só o que ele vê é sua estonteante imagem? Apenas poder sobre aquele que lhe presenteia com espelho, limpa o espelho, carrega o espelho e mesmo assim, ergue o espelho no ângulo incorreto. Sobre esse serviçal recai o poder de quem só quer ver a si, sofre por não ter com quem se espelhar, chora de barriga cheia de si, de umbigo.

E quando se libertar? Quando ressuscitar meu narciso e lutar? Quando conseguir comunicar mercuriosa minhas vontades em uma negociação diplomática por território? Ou simplesmente aceitar que a vida é assim, uma condição rara de uma doença chamada amor que, aos desafortunados, aparece como lepra?

A cada um que sofre, uma solução. Mas de fato, belas palavras servem apenas para ampliar um vocábulo de sentimentos inomináveis que tentamos, de análise em análise elaborar. Um vocabulário que não serve a ninguem, a não ser ao que adquire. Individual vocabulário que não conseguimos comunicar. E por lógica, o vocabulário que não se usa para comunicar, não existe. Mas por que ele está lá, dentro de nós, como sentimentos indecifráveis?

E se o que sentimos, de bom ou ruim, reside em um vocabulário indecifrável ao outro, como negociar a paz? Se nossa necessidade é incomunicável, como ser atendido pelo outro? E se não podemos contar com seu esforço em tentar entender nossa arqueologia gráfica emocional? Capaz que uma boa relação se faz de pessoas que tentam decifrar um ao outro, sabendo da inglória tarefa de fazê-lo, abastecendo- se de perceber o quanto o outro tenta. E tenta para estar junto.

E nessa tentativa, o exercício de poder (exercido com o achar que pode) se esvai, pois encontra sempre uma demanda alheia que pode atender antes de trazer a sua, na certeza que será atendida ou mesmo tentada. Uma troca de gentilezas que tenta acolher e ler o outro de forma sincera. Capaz que seja isso. Capaz que não.

Esse texto vai ganhando ares cada vez mais contornos incompreensíveis e preciso aqui parar. Tentativas de expor meu sentimento indecifrável só irá confundir o leitor. Espero que apenas amplie o vocabulário interno, para que a capacidade de ler o outro seja uma vez mais a ode da vida em relação. Sem deixar de ser ouvido e compreendido para tornar-se nem servo nem capataz, mas sim, na troca de tentativas, ser mais nós que eu.

Crido Santos – Belo urbano, designer e professor. Acredita que o saber e o sorriso são como um mel mágico que se multiplica ao se dividir, que adoça os sentidos e a vida. Adora a liberdade, a amizade, a gentileza, as viagens, os sabores, a música e o novo. Autor do blog Os Piores Poemas do Mundo e co-autor do livro O Corrosivo Coletivo.
Posted on 6 Comments

Lugar feliz

Visitar antigas moradas é a melhor forma de escorar minha casa. Eu.

Recentemente, ouvindo uma palestra sobre autoconhecimento, foi feita a seguinte pergunta: Qual seu lugar feliz?

Algo como resgatar memórias que te causaram conforto. Foi nesse momento que comecei uma grande jornada em busca desse lugar.

Muitas situações vieram a tona. Boas, felizes e claro, as ruins e tristes. Tive uma vida confortável, uma família que sempre me abraçou com muito amor. Minha adolescência, juventude, fase adulta foram meio atribuladas e cheias de percalços. Mas foram bem boas também. Afinal, sobrevivi e estou aqui. A infância foi tudo do bem e do bom. Então, meu caminho de resgate estava em algum lugar dessa fase.

Minha irmã costuma dizer que eu era uma criança hiperativa. Não parava quieta e minha mãe a colocava para cuidar de mim em festas, eventos… por muitas vezes, ela vivia um caos. Gostava de esportes também. Desde pequena jogava tênis, fazia natação, não faltava da Educação Física. Por muitos anos joguei vôlei, participava dos campeonatos regionais e estaduais entre as escolas e representava um clube da cidade. Era levantadora. Essas lembranças me fizeram sorrir! Sorriso largo! E assim prossegui por horas a fio buscando na memória onde estava o meu conforto.

Todo final de semana frequentava o clube com meu pai. Não tinha nem 13 anos. Primeiro o tênis, depois ele ia jogar bocha e eu para a piscina. Por volta das 11h30, o combinado era nos encontrarmos na lanchonete. Nossa, era tão gostoso quanto subir no escorrega e me jogar de barriga na água gelada dando muitas risadas com os amigos. E lá nos encontrávamos. Seu Wilson era de pouca conversa, mas no clube era muito sociável e rodeado de bons amigos. Todos me conheciam. Era muito bacana.

O ritual era primeiro o bolinho de bacalhau com soda e limão. Depois, sentávamos numa mureta que tinha na lateral da lanchonete, ficávamos olhando para as piscinas chupando picolé de côco. Ele costumava a cruzar as pernas e me colocava para sentar em um dos seus pés para conversarmos enquanto me balançava. Não durava muito e ele já falava: chega dessa “melação” e termina seu picolé.

Ao lembrar desse momento, me deu um calor no coração, senti um aconchego e uma felicidade tomou conta de mim. Ali era meu lugar feliz!

Hoje, sempre que preciso de colo, de segurança, até mesmo o que fazer diante de alguma situação, me vejo naquela mureta, aquele balanço e parece tudo ficar bem.

Volto para o presente com um delicioso sabor de picolé de côco. Minha memória feliz! Meu lugar feliz!

Dani Fantini – Bela Urbana, Relações Públicas de formação. Se jogando na escrita de coração!
Mãe da Marina, filha super companheira! Cuida da casa, trabalha com gente, ama animais, plantas, é cercada de bons amigos e leva a vida com humor! Pode-se dizer que é completa, mesmo faltando algumas peças nesse enorme quebra-cabeças que é viver!

Foto Dani: @solange.portes

Posted on 7 Comments

As rédeas da minha vida de volta

Muitas pessoas me perguntam em silêncio como pude permanecer numa relação abusiva… Poucos realmente têm empatia pelo que passei e tentam se colocar em meu lugar…. alguns se voluntariam a psicólogos repletos de conselhos “certeiros”…. umas duas ou três tentam entender a fundo as situações pelas quais vivi… ninguém sabe na verdade o que eu senti ou sinto até hoje…. eu mesma procuro diariamente validar meu passado, entender, ressignificar dentro de mim pra então, seguir adiante…. absolutamente ninguém compreende as dores de se viver uma relação abusiva e a dificuldade que é sair dela, só eu e você, que eventualmente passou por isso também… No início tudo parece que vai passar, você se enche de esperança e coragem achando que pode mudar a pessoa que está com você… mas ninguém muda ninguém… as pessoas são o que são… o que muda é a nossa capacidade de enxergar… viver na pele o abuso é uma tortura sem data pra acabar… teve um momento em minha vida que não havia um dia que fosse em que eu não chorava… vivia triste, com medo e ainda assim me achava corajosa… não gostava de me colocar no papel de vítima, então de certa forma eu tentava “mascarar” as situações… eu mesma me enganava… tinha um véu em meus olhos e nada via além… perdi meu amor próprio, minha liberdade, meu direito de ir e vir… vivi presa numa vida, em ciclos eternos… e com isso a coragem vai sumindo, não tinha forças pra sair daquela relação… só sabia ter medo… e foi em um Natal, 25 de dezembro, que com a presença da minha mãe em casa, tive coragem para tomar as rédeas da minha vida de volta…. mas não pensem que foi fácil, não foi nada fácil… vivi dois anos de medos e perseguições de um homem que não aceitava o fim da relação… abri mão de bens materiais, eu achava que estaria “comprando” a minha paz, mas a paz não tem preço… então mudei… larguei emprego, casa, uma vida estável e vim para longe… perto da minha família, perto dos meus…. a cada página virada nessa minha história, sinto mais orgulho de mim… por quem eu fui, por que eu sou e principalmente, por quem estou me tornando…. estou me resgatando, pedaços meus espalhados com o passar do tempo… resgato o que eu era para construir quem eu sou… hoje sim, tenho as rédeas da minha vida em minhas mãos e não permito que ninguém tente tomá-la novamente de mim…

Carol Costa – Bela Urbana, mulher, mãe de dois meninos, bacharel em direito, apaixonada pela escrita, pela vida e movida por sonhos.