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Memórias de um verão

Na correria dos dias de um ano intenso que estava quase terminando, os compromissos se acumulavam na mesma velocidade que os meses são contados em semanas, dias e horas.

Eram muitos detalhes importantes (paradoxo, eu sei) e uma lista quase infinita de pessoas que deveriam ser informadas sobre o acontecimento que se anunciava. Muita gente já aguardava, mas, para outros seria uma grande surpresa.

Para que nada desse errado, contratei uma cozinheira para comidinhas frugais, dessas de comer com as mãos e pedi à equipe de buffet para providenciar guardanapos floridos que deveriam ser espalhados pela recepção, evitando digitais engorduradas sobre o verniz natural. O cuidado é o pai da paz e o estresse não é camarada, por isso, tais observações foram anotadas numa lousa, em letras legíveis.

Comprei as bebidas com antecedência e deixei para gelar para que ninguém reclamasse da temperatura. Afinal, refrescar renova as boas energias e rejuvenesce até o céu.

Uma confeiteira foi trazida das Minas Gerais para que a doçura marcasse as bocas e as almas dos presentes.

Recomendei que a música fosse alegre e constante, mas que tocasse baixo, para que conversas melodiosas fossem as verdadeiras donas daquela festa.

Cada canto da sala deveria ter flores mistas e muita folhagem de alecrim e manjericão para que o visual enchesse os olhos enquanto o vento se incumbiria das profundas inspirações olfativas que aguçam os desejos e a fome.

Pedi que na porta dos banheiros houvesse bacias com toalhas quentes, para desinfetar as pontas dos dedos como se faz nos eventos orientais e, ao lado das bacias, tinas vazias para se depositar as toalhas usadas. Simbolicamente, a ideia era preservar o essencial e descartar o que arrisca a nos contaminar. Mas, sei que é uma interpretação sofisticada para a maioria das pessoas. Talvez seja o caso de repensar este conceito.

O salão foi projetado para parecer movimentado, com luz neutra, vários sofás redondos e mesas desiguais, de madeira verde, sem toalhas, nem vidros; mesas cruas e cadeiras fofas para os corpos cansados numa tentativa de mostrar um ambiente em construção, assim, toda a magia seria compartilhada com as pessoas.

Tudo aritmeticamente preparado para o clima de verão de um ano nem muito quente, nem muito frio, que jamais combinaria com algo morno. A intensidade deveria ser sentida visceralmente.

Uma ideia extravagante surgiu de última hora, provocando as mentes organizadoras, que, se fosse possível, atingiria o ponto alto do impacto que se desejava causar. Imaginei que no fundo da casa, numa edícula pintada de amarelo e lilás, ficariam duas tatuadoras à disposição dos que quisessem carregar uma memória vitalícia daquele dia ou daquela noite, conforme o momento da visita. Um longo estudo e muitas objeções.

Por fim, eu mesma deveria me aprontar para ser vista. Fiz questão de seguir a longa agenda feminina de cabelo ao natural, maquiagem bem leve em tons de saúde, unhas feitas sem nenhuma cor, apenas o básico de apresentação.

O traje não foi uma escolha minha, mas fiquei satisfeita com a elegância que o ofereceram a mim. Uma camisola branca, de cambraia finíssima, com pespontos em vermelho e roxo, adornada por xale vermelho de tricô de linha. Uma combinação de conforto e delicadeza que me identifiquei por definição.

Antes, porém, de ver a engrenagem desta celebração em funcionamento, eu resolvi me presentear com minutos de relaxamento que duraram horas. Cochilei com os pés imersos numa banheira fria que fez meu corpo se ajustar ao colchão afetivo que me envolvia. Como costumam dizer: “tempo de sono dos justos”.

Às dez horas, sem despertador ou aflição, eu me lembrei de nascer.

Rompi a bolsa d´água, desci por um corredor úmido e estreito e respirei de uma vez só todo o ar do mundo. Chorei o mais alto que pude para sinalizar minha forte presença nua.

Enquanto isso, pessoas riam, conversavam, brindavam e davam boas-vindas à mulher que eu, um dia, haveria de me tornar.

Poucos segundos de olhares fixos em mim e uma eternidade de promessas e expectativas criadas por quem passou pela vida festejada recém parida na memória de um verão qualquer.

Dany Cais – Bela Urbana, fonoaudióloga por formação, comunicóloga por vocação e gentóloga por paixão. Colecionadora de histórias, experimenta a vida cultivando hábitos simples, flores e amigos. Iinstagram @daniela.cais
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Na gaveta encontrei o Toninho num monóculo

Sempre fui cismado com a mania que muita gente tem – inclusive eu – de guardar coisas em gavetas para não esquecer onde estão as coisas mais
banais do dia a dia, mas também os objetos importantes, tanto no aspecto material, como no afetivo. Muitas dessas relíquias caem no esquecimento e quando as encontramos, ao acaso, elas mudam de significado. Algumas perdem o prazo de validade, outras ganham valor emocional e muitas delas podem ser apagadas.

Na última incursão pela minha coleção de gavetas explorei uma em que eu havia guardado uma variedade de coisas: chave reserva, retrato 3X4,
selos, pilha usada, cartão de visitas, abotoadura velha, palito de dente, baralho, relógio de pulso, corta-unha, bolinha de gude, parafuso, pen drive, além de toda aquela papelada para organizar ou rasgar.

Entre os inúmeros trecos perdidos na gaveta remexida, encontrei um monóculo de fotografias. Um objeto retrô, do tempo da infância. Conhecido
também como binóculo. É um objeto de plástico colorido em formato cônico, medindo poucos centímetros de comprimento. Tem uma lente em uma das extremidades e na outra uma tampa branca na qual é fixada uma pequena fotografia. Para ver um fotograma dentro do monóculo, a gente precisa fechar um dos olhos e ficar contra a luz. Algo de mágico e nostálgico ao olhar, por meio de uma lente pequena, uma fotografia do tamanho de um selo. O monóculo de fotografias permite que você guarde uma lembrança e, onde você estiver, será possível enxergar uma memória em um espaço menor do que a palma da mão.

No fundo do monóculo encontrado na gaveta uma foto tirada por um fotógrafo ambulante durante uma festa de padroeiro. A foto caleidoscópica que
estava no fundo monóculo era do Toninho, um tio-irmão. Naquele dia de festa, ele, um homem negro trabalhador surgia no centro da fotografia, vestindo um terno branco muito alinhado, gravata borboleta preta, sapatos pretos. Ao fundo da foto um banco de praça, a balaustrada que margeia o rio e mais ao fundo as casas e sobrados da pequena cidade naquele dia ensolarado.

Quando aquela foto foi tirada eu era um menino de 10 ou 11 anos talvez, e estava caminhando ao longo da balaustrada, em companhia de gente
adulta, provavelmente parentes e amigos encontrando-se num dia de festa. O rio estava denso, com muita correnteza e o vento levantava uns borrifos que chegavam até nós. O sol estava quente no início do mês de fevereiro.

Um fragmento de memória como esse de encontrar uma foto significativa num monóculo é um resgate de memória casual e revisita a movimentação de nossos valores, ao longo dos anos que passam. O fato desse fragmento ter sido encontrado dentro de uma gaveta cheia de recordações, novas, recentes, velhas ou não; também permite perceber como nossa memória pode ser seletiva e decidir entre o que tem relevância, o que pode ser apagado, deixado para depois ou simplesmente abandonado.

Memória tem pelo menos duas coisas: lembrança e esquecimento. A falta de compromisso com as lembranças pode deixar a memória menos
pressionada a fazer esforços desnecessários. Economiza a energia emocional e liberta a imaginação para entrar em contato com aquilo que pode ser mais genuíno em nossas lembranças. Voltar a ver os objetos mais prosaicos com importância e outros nem tanta; talvez indispensáveis em tempos anteriores, possíveis candidatos ao lixo da nossa história pessoal ou então como possíveis luzes acesas no final do túnel.

João André Brito Garboggini – Publicitário, ator e diretor teatral e tem três filhos.