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Ninguém perguntou se ela queria

 

Coitada da Torre Eiffel
Que faça chuva ou faça neve
Brilha
Todas as noites
Tem que estar sempre
Completamente
Inquestionavelmente
Impecável
Que não pode nem por um segundo
ser menos que perfeita

Ninguém perguntou se ela queria estar lá
Exposta
Nua
A todos os momentos da sua vida
Apenas seu exterior sendo admirado

Sem ninguém nunca questionar
Como ela se sente
De onde veio
Para onde gostaria de ir
Todas as noites
Não importa o que ela pense
Ela brilha
Pro mundo todo
Está sempre de cabeça erguida
Infalível
Brilhando

Sem ninguém sequer ter indagado
Se era isso o que ela queria
O livre arbítrio brutalmente
Tirado de suas mãos

E todas as noites ela brilha
Pontualmente
Não importam os rostos feios encarando
Ela brilha
Só se tem certeza da morte
E que de hora em hora ela estará brilhando
Para todos
Menos
para
ela
Seu destino irrefutavelmente fora do seu alcance

Apenas um objeto de admiração
Incontáveis
Turistas
Desconhecidos
Estranhos
Todas as noites
Invadindo seu espaço
Sem questionar
Sem pedir
Sem permissão

E mesmo assim
Todas as noites
Ela estará lá
De ferro
Encantadora
Prestativa
Pontual
Sem jamais se queixar
Brilhando

– este não é um poema sobre uma torre

Giulia Giacomello Pompilio – Bela Urbana, estudante de engenharia mecânica da UNICAMP, participa de grupos ativistas e feministas da faculdade, como o Engenheiras que Resistem. Fluente em 4 idiomas. Gosta de escrever poemas, contos e textos curtos, jogar tênis, aprender novos instrumentos e dançar sapateado. Foi premiada em olimpíadas e concursos nacionais e internacionais de matemática, programação, astronomia e física, além de ter um prêmio em uma simulação oficial da ONU
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Nasci menina

Nasci menina. Bonita, sorridente, moleca. Era menina-menino sempre correndo, pulando. E na ingenuidade das brincadeiras de crianca de 5 anos já tive que aprender a desviar de lobos. Cruzou o meu caminho um tal Sr. João, avô da minha amiguinha. Na casa onde moravam era correr em volta dos móveis da sala e esbarrar nesse obstáculo gordo de nariz vermelho esparramado no sofá. Ele sempre dava um jeito de me puxar pelo braço e me apertar contra sua barriga enorme e com suas mãos velhas e gordas me puxar entre minhas pernas. Aprendi a driblar o velho.

Crescendo me tornei bela adolescente com quem todos queriam se relacionar. Ainda lembro o calor que senti em minhas costas, algo duro, quente parado ali, ele em pé eu sentada escrevendo. Na minha ingenuidade custei a entender. Mudei de lugar, calei. Assustada passei a fugir das ciladas, andar em bando. Comecei a perceber o que queriam de mim.

Vale ressaltar que sou filha de imigrantes guerreiros mas não tive orientação sobre sexualidade, outros tempos. Fui descobrindo sozinha.

Logo cedo casei, sonhadora, iludida. Traída dentro de casa, mudei tudo. Sofri muito mas continuei no sonho de “felizes para sempre”. Fui aos trancos.

Agora a lembrança me leva a um consultório médico com fortes dores abdominais. Deitada numa maca sou demoradamente apalpada, estômago, intestino, barriga toda. Então? Nada? Sim! Sai o medico de perto meio contorcido parecia que tinha encorporado minha dor. Qual nada! Ele escondia mal uma ereção. Percebi, calei com ânsia de vômito. Sai do consultorio com mais dores do que as tinha. Agora com a auto estima doida também.

E seguindo o caminho, amores, namoros, casos à toa. Bonitos, feios, bobos, inteligentes. Eu queria um príncipe, todas queriam.

Nessa busca mais uma porrada de leve. Entre conversas e cervejas o rapaz de familia rica me levou a marina no Iate Clube para me mostrar o barco novo. Claro que achei que íamos ficar juntos, beijos, risadas, carinhos e velejar.

Nao foi bem assim. Fui virada de costas apoiada num barco e estuprada. Dolorida de todo jeito, pouco falei. Lembro de dizer: isso não e assim! Acabou, fui embora na hora arrasada.

Espanto, no dia seguinte entra pelo corredor do lugar onde eu trabalhava, o sujeito com sorrisinho no rosto e bonbons na mão. Continuei calada.

E o tempo passa na minha memória, voando. Já com filhos criados e um a criar, vou levando a vida de divorciada e super-heroína. Sou boa nisso!

Já aos quarenta e tal me deparo com mais dessa espécie comum. Um amigo/parente, me liga com voz rouca de desespero pedindo que fosse a sua casa urgente. Éramos vizinhos.

La fui eu, short , camiseta, descabelada, estava descabelada, fiquei mais ainda quando ao descer as escadas o sujeito me agarrou a força e tive que usar a minha para empurrá-lo e sair correndo. Chorei de raiva e espanto. Afinal, eu era amiga da mulher dele. Não entendi nada ou entendi tudo. Em choque ainda cruzei com o personagem dias depois e ele todo sorrisos me perguntou porque eu não falava mais com ele? Porra! Como assim?

Hoje ao 67 passando um pouco a vida a limpo, trago essas grotescas memórias a tona. Feridas curadas, não esquecidas. Ainda sinto nojo de cada uma delas.

Menina sonhadora: caíram os panos, desfizeram-se os sonhos. A super-heroína esta aqui de pé, MULHER.

E bem longe os João, Marcelo, Carlos , Vidal, Jorges que nãoo ouso chamar de HOMEM.

Maria Nazareth Dias Coelho – Bela Urbana, jornalista de formação. Mãe e avó. É chef de cozinha e faz diários, escreve crônicas. Divide seu tempo morando um pouco no Brasil e na Escócia. Viaja pra outros lugares quando consigo e sempre com pouca grana e caminhar e limpar os lugares e uma das suas missões.