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Relações abusivas, uma reflexão sobre autoconhecimento e autocuidado

Relações abusivas muitas vezes são acordos, permissões silenciosas, repetições de padrões inconscientes. Aquilo que em alguns momentos não percebemos ou fingimos não perceber.

Quando a permissão aparece fora pode ser que já estejamos vivendo muitas permissões dentro de nós. Platão, filósofo da Grécia antiga, chamava essa atitude de licenciosidade, o ato de permitir perder o domínio de si mesmo quando medos, frustrações, e outras sensações diminuem nossa capacidade de ser quem somos como seres dignos e valorosos. Perdemos a confiança em nós mesmos e passamos a nos apoiar e nos justificar em nossas debilidades e inconscientemente percorremos caminhos dentro de nós perdidos em um labirinto de sensações e hábitos que nos falam sobre nossa falta de valor. Assim, adoecemos e não lutamos dentro, mas em algum momento a necessidade de entrar em guerra se torna iminente quando percebemos a realidade estampada em nossa vida nos limites das relações adoecidas e sem amor! Como acabei nessa situação? Quem será o culpado? O que fazer agora? São muitas as questões que nos surgem no momento que abrimos os olhos e começamos a trilhar a senda do autoconhecimento.

Há um livro hindu chamado Bhagavad Gita que conta a história de uma guerra onde o herói, chamado Arjuna, sente o ímpeto da licenciosidade diante do seu dever como guerreiro de lutar por aquilo que é seu por direito, apenas porque seus inimigos são seus “familiares”. Este livro fala simbolicamente do homem dividido dentro de si entre o que carrega de luz e de sombra. Por um lado somos valorosos e corajosos para enfrentar as circunstâncias da vida e por outro lado temos as justificativas de nossas fragilidades para não fazer o que é preciso para garantir nossa dignidade humana. E porque Arjuna deve enfrentar seus familiares? Porque precisa matar nele mesmo as sombras que o impede de ver o que é Real, que o impede de amar.

O amor no contexto filosófico fala da capacidade humana de ver com clareza, de discernir o que é válido e agir em conformidade com a própria natureza humana, oferecendo o melhor de sua conduta nos relacionamentos. Não tem a ver com o que esperamos do outro, mas do quanto de amor podemos viver por nós mesmos utilizando nossos valores como ferramentas na ação de amar. Encontrar nossas próprias motivações, inerentes a nossa identidade para agir no mundo sem perder nossa integridade, sem nos deixar arrastar pelos apelos exteriores quando estes nos tiram o brilho de nossa vida. Por isso autoconhecimento e autocuidado são essenciais. É preciso conhecer nossas forças interiores, nossas habilidades para enfrentar os ciclos da vida, e imprescindível também, é conhecer nossas próprias armadilhas interiores: medos, fragilidades, escapismos da realidade, reatividades quando encontramos algo que nos causa contrariedades, porque talvez nos cause dor e não queremos lidar com a dor. Esse conjunto de sensações, hábitos e fenômenos afetivos são “familiares” ao nosso cotidiano, porque passamos muito tempo nos apoiando nessas características para nos proteger e nos defender, e são esses familiares que nos impedem de utilizar nossas verdadeiras armas que são as virtudes, verdadeiro exército que nos liberta dos condicionamentos e automatismos onde a consciência não está presente. Falta despertar nossas sementes latentes de coragem e amor para romper hábitos psicológicos e assumir as rédeas das nossas ações como protagonistas de uma vida iluminada por sentimentos mais elevados de confiança e vontade de ser e de agir com mais valor.

Acontece que muitos de nós vivemos relações tóxicas, onde ambos os pares são responsáveis por suas escolhas e por sua conduta. Contudo, vivemos em uma sociedade e um tempo histórico que não valoriza a educação formativa do ser humano que busca esse autoconhecimento verdadeiro para aprender a protagonizar sua história com fortaleza psicológica e a liberdade necessária para tomar decisões mais inteligentes, escolhendo atitudes que tragam equilíbrio e deixando de lado as que poderiam provocar adoecimento.

Também nossos pais, pertencentes a essa mesma sociedade, e por falta de algo melhor para nos oferecer podem ter nos levado a firmar acordos e permissões através de violência física ou psicológica e assim, o que aprendemos desde cedo através de relações adoecidas poderá ditar os acordos e permissões de nossas ações futuras se continuarmos inconscientes dos motores e gatilhos que nos conduzem. Como disse Jung em um de seus tratados, “Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamar isto de destino”.

Qual o benefício de manter uma vida inconsciente? qual será o benefício de escolher posturas que nos colocam no papel de vítima ou de predador? Pois, parece que no fim das contas todo predador é uma vítima e toda vítima é um predador em alguma circunstancia, pelo menos se olharmos essas interações na natureza, e porque formamos parte da natureza essas características também nos cabem quando nos deixamos viver sem consciência do que nos move, reagindo ao sabor das demandas cotidianas. Talvez esse lugar, esse papel, já tenha se solidificado de tal forma que nos traga o beneficio de certa comodidade, ou seja, desde esse lugar podemos justificar muitas atitudes, e o maior dos benefícios: não lutar contra nossas debilidades, buscar fora o que é apenas reflexo do que contemplamos dentro de nós. Como disse o filósofo e imperador romano Marco Aurélio, “A nossa vida é aquilo que os nossos pensamentos fizeram dela”. Porém, sabemos que muito do que pensamos vem do mundo que nos rodeia, ou das questões que fogem a nossa responsabilidade, já que foi o meio em que vivemos que causou essa distorção da realidade. Podemos assim ter argumentos para responsabilizar o mundo por nossa situação e continuarmos guiados por contratos e permissões inconscientes, e ainda nos achando conscientes disto. Porém, sempre temos como refazer contratos ou selar novos acordos conosco. Claro que não é nada fácil desapegar-se das couraças que nos protegeram até agora, nem tão fácil submergir desse caos interno as ferramentas necessárias para nossa independência e autonomia.

Mas podemos começar com um passo pequeno de cada vez, aprendendo a respirar com mais calma diante das pressões diárias, conquistando estratégias inteligentes para vencer nossas inércias, e assim aos poucos vamos tomando conta de nós. Porque o pior abuso é aquele que cometemos contra nós mesmos, quando dizemos sim aquilo que nos paralisa, quando não percebemos que nosso tempo de cura é só nosso, e quando fechamos os olhos para ver as situações em suas verdadeiras dimensões. Porque a dor sempre vai existir. Buda dizia que a dor é veículo de consciência, pois nos ajuda a tomar consciência de suas causas para conseguir assim cessar a dor.

Platão também disse em seu livro Filebo, que “a dor mal canalizada se torna ódio, e o ódio se torna vício”. A palavra ódio no contexto não é simplesmente sentir raiva de alguém, mas trata-se de aversão e desejo. Queremos afastar a dor e buscamos alívio imediato. Queremos nos entorpecer como uma fuga irracional. Não há raciocínio inteligente, apenas respostas automáticas, como quando nos queimamos em uma superfície quente e automaticamente nos afastamos por proteção. Instinto de proteção é natural, mas quando se transforma em hábitos repetidos já não sentimos a vida, não apreciamos a paisagem. E na corrida para encontrar algo fora de nós que possa amortecer a dor que queima por dentro agimos sem pensar. Instala-se o medo da dor, evitamos sentir a vida para não doer, agimos no automático para esquecer, nos permitimos ser menos do que podemos ser…

Em nosso corpo podemos perceber que a dor avisa quando algo não está equilibrado e que precisamos dar atenção, entrar em ação para reequilibrar nosso funcionamento, nosso metabolismo, nosso fluir vital. A dor psicológica também requer atenção e ação consciente, mas nem sempre percebemos esses processos sutis. Negligenciamos nossos humores, nossos incômodos, e, no fim já não sabemos onde está a raiz das reações, explosões, implosões, etc. No livro O Pequeno Príncipe há um ótimo ensinamento sobre o autocuidado e autoconhecimento onde o principezinho diz que é preciso disciplina para manter o equilíbrio e por isso ao acordar ele costumava fazer a toalete do corpo e também do planeta, que pode representar os detalhes da nossa vida. Ele tinha dois vulcões e um deles era extinto, mas por precaução revolvia os dois e dizia “nunca se sabe”. Ele também cuidava de seu jardim, onde tinha uma bela rosa que representava muito para ele, por isso retirava qualquer erva que surgia, pois tinha receio que tratasse dos baobás, árvores que se tornam enormes, e que no caso do seu planetinha podiam causar estragos catastróficos. O grande ensinamento aqui é estar atento às ervas daninhas que surgem sorrateiramente e que no início parecem pequenas e inofensivas, mas que após um longo tempo de negligência crescem e tomam proporções muitas vezes insuspeitáveis.

Cuidar é um exercício de atenção diário. A natureza, por exemplo, nos ensina que o ritmo e a constância são fundamentais para que surjam as flores e os frutos através da lei que rege a planta. Se as condições são adequadas todos os dias ela realiza a fotossíntese necessária para manter a energia que possibilitará que cumpra todo seu ciclo de vida. Não há um dia em que a planta se recuse a realizar aquilo que é sua natureza, assim como o sol não decide ser outra coisa que não seja sua natureza solar.

Ana Paixão – Bela Urbana, filosofa, pedagoga, palestrante e educadora que trabalha com treinamentos há mais de 10 anos
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Grupos reflexivos para homens autores de violência contra a mulher

O trabalho com grupos reflexivos para homens autores de violência contra a mulher é uma abordagem sócio educacional que visa promover a responsabilização, a mudança de comportamento e a prevenção da violência de gênero. Essa metodologia busca proporcionar um espaço seguro para que os autores de violência possam compartilhar suas experiências, refletir sobre seus padrões de comportamentos e aprender estratégias para lidar com conflitos e relações interpessoais não abusivas.

É um espaço sem julgamentos. Nem condenações, mas, sobretudo, é um espaço de responsabilização. Quando os participantes tentam colocar as responsabilidades de suas ações em outras pessoas, justamente é invertida essa lógica. O abuso praticado por esses homens não é destino. É uma escolha. Errada. É fato que muitos homens viveram em ambiente abusivos, foram abusados, ou vivenciaram agressões em seus lares na infância. Mas isso nunca pode justificar ou atenuar a repetição de determinado comportamento.

Vivemos uma fase extremamente perigosa em terceirizar a perpetuação do abuso sofrido para a próxima geração, assim, simplificando as atitudes abusivas praticadas como uma reação ao abuso sofrido. É necessário considerar isso. Mas não podemos e devemos ter como justificativa. A perpetuação do abuso e do papel do abusador se deve ao patriarcado, ao machismo e ao exercício de uma masculinidade viciada em virilidade, poder e controle.

O grupo reflexivo para homens autores de violência contra a mulher é realizado em um ambiente sócio educativo, acolhedor, composto por um facilitador, que geralmente é um profissional experiente e capacitado em questões de gênero, masculinidades e violência, e um grupo de homens que tenham histórico de agressão física, verbal, psicológica, abuso sexual contra mulheres. Esses grupos são baseados nos princípios de igualdade, equidade, não-violência, respeito mútuo e confidencialidade.

O grupo reflexivo vem quebrando esse padrão de respostas automatizadas. Essa normatização de atitudes abusivas, controladoras e castradoras.
A metodologia do trabalho com grupos reflexivos geralmente envolve uma fase inicial de estabelecimento de normas e regras, onde são definidas expectativas de comportamento e respeito durante as sessões. Em seguida, os participantes são encorajados a compartilhar suas experiências de violência, explorando as dinâmicas de poder e controle presentes em suas relações.

Os encontros em grupo permitem que os homens compartilhem suas experiências pessoais, escutem as histórias de outros participantes e sejam desafiados a questionar suas visões de masculinidade, poder e controle. O objetivo do projeto é incentivar a empatia e a responsabilidade pelos próprios atos, além de ajudar os homens a desenvolverem habilidades de comunicação saudáveis, resolução de conflitos e respeito mútuo.

Esse projeto é fundamental para trabalhar a prevenção e a redução da violência contra as mulheres, proporcionando uma oportunidade de aprendizado e crescimento pessoal para os homens envolvidos. Além disso, ele também pode oferecer suporte psicológico, afetivo e encaminhamento para outros serviços, como terapia individual, quando necessário.
Alguns aprendizados e resultados:

  • Identificação de padrões de comportamento violento entre os abusadores, relacionados à sua história pessoal, percepções equivocadas sobre a masculinidade e dificuldades de controle emocional;
  • Aumento da percepção de responsabilidade pelos atos cometidos e reconhecimento dos danos causados às vítimas;
  • Ampliação da compreensão sobre as questões de gênero e a desigualdade entre homens e mulheres na sociedade;
  • Adolescência de habilidades de comunicação assertiva e resolução de conflitos de forma não violenta;
  • Reorientação dos abusadores para práticas não violentas, através da mentalização e da construção de uma nova identidade masculina;

Concluo que seja necessário investir em políticas públicas de prevenção, que incluam ações educativas e de conscientização sobre a violência doméstica e familiar desde a infância, adolescência e fase adulta, visando evitar a perpetuação desse ciclo. Além disso, é necessário ampliar o acesso a essas intervenções por meio de parcerias com secretarias de ensino, empresas, secretarias de saúde e segurança pública, e a criação de centros especializados, que ofereçam suporte integral a esses homens, incluindo programas de educação em gênero e ressocialização.

A intervenção com homens abusadores é um passo importante para enfrentar a violência doméstica, violência de gênero e contra a mulher, mas precisa ser acompanhada de outras medidas que atuem na raiz do problema. A conscientização, a educação e o suporte integral são fundamentais para romper com esse ciclo de violência e promover relações familiares saudáveis e igualitárias.

É necessário produzir intervenções educativas, nesses casos geralmente visam oferecer apoio emocional, conscientização sobre questões de gênero e violência doméstica, desenvolvimento de habilidades de comunicação saudáveis e educação sobre resolução pacífica de conflitos.

Eu, homem cruel.
Fui marcado pelo meu passado.
Aqui onde me ergo, 
me dispo do meu orgulho.
Envergonhado pelos atos insanos,
com humildade, refaço o meu traço.
Sim, abusador, dominador do poder,
Cego pelo egocentrismo cruel.
Cravei mágoas e cicatrizes na alma de outros.
Um homem monstro disfarçado de homem cordial.
Fácil papel.
Reflito sobre as dores que causei.
Só agora percebo também as dores que não senti.
Ouvir a mim mesmo.
A minha voz silenciada, calada, vazia.
Entendendo o valor da empatia.
Compreendo o poder do respeito.
Desaprendo a arrogância e semeio humildade no meu coração.
E, com gestos, ações, e dores,  reconstruo meu coração desfeito.
A violência que aflige minha história,
Não será mais causa do sofrer alheio.

Sergio Barbosa – Professor de Filosofia. Co fundador da Campanha Laco Branco. Gestor de projetos voltados para homens autores de violência contra a mulher. Pai de três pessoas maravilhosas. Adora plantas e verde.

 

 

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Eu fugi com as roupas em sacos de sanito

Falar de relações abusivas não é fácil… pois, para quem as vivenciou, o colocar no papel ou falar em voz alta é reviver as situações dolorosas. Eu poderia descrever “n” situações de abuso e relações tóxicas ao longo de 40 anos. Normalmente quem passa por isso, se não se cuidar e buscar ajuda, cai novamente nas mãos de pessoas abusivas e tóxicas. Muda o nome, mas o descritivo das personagens costuma ser idêntico, já dizem os especialistas!

Os relacionamentos abusivos acontecem em várias esferas e nem sempre o abusado percebe a teia em que está se metendo até estar totalmente preso a ela. Comigo foi assim… e por algumas vezes.

Eu havia saído de um relacionamento há alguns meses. Estava literalmente curtindo a solteirice. Naquela sexta à noite, estava já na terceira programação. Fui encontrar amigos em um bar. Cheguei e dei de cara com uma mesa em que eu não conhecia praticamente ninguém. Conhecidos apenas um amigo, que cantava ao som de seu violão, e a amiga que havia convidado. Cheguei bem no meu estilo: vestido curto, cigarro (naquela época podia fumar em locais fechados), falando alto (que é o meu comum, sem beber) e bebi minhas caipirinhas habituais. Um pouco feliz demais por encontrar o amigo cantor, com que à época tinha uma grande intimidade, fizemos uma brincadeira que sempre fazíamos: enquanto ele cantava imitando diversos artistas, eu sentava em uma de suas pernas, fazendo micagens! Essa era eu: sem pudor, sem mimimi, sem me preocupar muito com o que os outros estavam pensando.

Eis que a amiga me chama de canto e me diz que um de seus amigos havia se interessado por mim. Perguntei sobre ele. Ela disse que só o conhecia do trabalho, que ele era gente boa, mas só. Ao voltar para a mesa, muitas músicas e alguns drinks e cigarros depois, ele veio puxar papo. Queria saber tudo ao meu respeito, me ouvia atentamente e concordava com quase tudo, senão com tudo que eu falava. A primeira luz vermelha acendeu e eu não vi. Querer agradar demais e esse excesso de simpatia, hoje eu sei, é sinal de alerta! Faz parte do jogo de sedução do abusador!

Trocamos telefone. Ele viajaria no dia seguinte para a praia para passar alguns dias. De lá, em épocas que não existia whatsapp, ele me mandava mensagens de texto todo os dias e mais de uma vez: “bom dia, boa tarde, boa noite. Só queria saber de você!” Achei fofo! Ele mostrando interesse de verdade, não deixando com que a viagem esfriasse o clima de paquera iniciado no dia que nos conhecemos. A segunda luz vermelha acendeu e eu não vi. Ele não estava querendo manter nada quente, estava era querendo saber o que eu fazia. De uma maneira “fofa” ele controlava meus passos, sem eu perceber.

Enfim, ele voltou. Saímos. Acabamos ficando. Naquela noite, depois de ter fumado no início do encontro (afinal ele me conheceu fumando) e de beijá-lo, fui acender meu cigarro e ele pediu educadamente: Você pode não fumar, por favor? Ok, sem problemas, afinal de contas, ele não fumava! Isso passou de boa… até que um mês depois de começarmos namorar, ele começou a implicar com o meu cigarro de maneira feroz! “Seu carro cheira cigarro, não adianta mascar chiclete, nem sinto mais o cheiro do seu perfume. Odeio esse cheiro. Você tem que parar de fumar!”

De repente, ele começou a me dar roupas de presente. Nada do que eu teria no meu armário. Mais cumpridas, menos decotadas, menos salto, menos cores. Entendam, eu não era uma dita hoje “periguete”. Eu só estava no auge dos 20 e poucos anos, magra e feliz. E me vestia assim. E isso passou a ser motivo de briga constante. Assim como o comprimento das minhas roupas, minhas relações com os amigos (inclusive com os dois que estavam na noite que nos conhecemos). “Meu amor, fala mais baixo. Passa menos maquiagem. Você já tomou duas caipirinhas”. A luz vermelha nesta época não acendia, piscava incansavelmente.

Mas passei por uma situação familiar complicada, e foi na casa dele que encontrei refúgio para fugir de tudo aquilo. Mesmo com todas as luzes piscando, eu precisava de uma rota de fuga naquele momento e escolhi a pior delas.

Com o passar dos meses, reformamos o apartamento dele, com o meu dinheiro (detalhe), mas não conseguíamos nos entender. Eu não me sentia em casa e ele não fazia questão. Prova disso, era que eu estava lá diariamente e que não tinha a minha própria chave do apartamento. Tinha que deixá-la na portaria todo santo dia.

O ser doce e fofo que amava me ver falar começou a me interromper a cada frase nas rodas com os amigos ou mesmo numa conversa a dois. Inconformados de como eu era tratada e da minha submissão, meus amigos se afastaram de mim. Logo, éramos apenas eu, ele e os amigos dele. Chegou ao cúmulo dos pequenos cuidados virarem um controle absoluto. “Onde você está? Que horas você chega? Quem está com você? Deixa eu dar oi pra ela?” Sem perceber a manipulação, troquei o meu salão de beleza que frequentava há anos, por um em frente à casa dele, para assim não perdermos tempo, pois só tínhamos os finais de semana juntos de verdade, visto que ele trabalhava alguns dias da semana em outra cidade. Íamos aos restaurantes e de repente o cardápio não passava mais pela minha mão, porque ele sempre tinha uma sugestão que eu ia adorar.

Fui minguando. Ficando calada. Chorona. Medrosa. Sem brilho nos olhos. Nem de perto a moleca que era antes. Até que a prova de fogo chegou: fui promovida no trabalho e passei a ganhar mais do que ele. E isso o afetou de uma maneira sobrenatural. De repente, não podíamos mais viajar, mesmo que eu tivesse o dinheiro para arcar com os gastos. Não íamos a restaurantes ou passeios que eu queria, porque ele não conseguia pagar e não aceitava que eu pagasse.

O meu trabalho realmente começou a irritá-lo. Eu recebia muitas ligações noturnas e de final de semana, devido ao cargo que exercia na época. Ele xingava a ponto da pessoa do outro lado da linha ouvir, se constranger de desligar. Ele começou a ficar cada vez mais agressivo com as palavras e com as cobranças. Chegou ao ponto de eu não conseguir mais comer ou dormir. Ele deitava na nossa cama e eu esperava ele dormir, para ir a um pufe do lado da cama, ligar a TV no silencioso para não acordá-lo e varar a noite.

Até que um dia, numa das crises de raiva dele por conta de um telefonema num domingo à noite, ele quebrou a casa. Literalmente. Com um murro, fez um buraco na porta do nosso quarto. Espatifou meu telefone de trabalho no chão, quebrou louças. Outra noite no pufe, chorando baixo para ele não acordar.

No dia seguinte, uma grande amiga minha, viu no meu rosto o terror que eu estava e me perguntou o que tinha acontecido. Quando eu contei, ela que conhecia a criatura, pois frequentava nossa casa e se afastou, me disse com o maior amor do mundo: “Xu, você vai esperar o quê? Ele quebrar a sua cara? A gente vai hoje tirar suas roupas da casa dele, aproveitando que ele não está”. E assim fizemos. Expediente encerrado, fomos para a casa dele. E como uma fugitiva, enfiei todas as minhas roupas em sacos de sanito e saí de lá, deixando objetos de decoração e outras coisas minhas. Não queria levar nada que me lembrasse aquele lugar, apesar de ter escolhido e comprado muitas das coisas. Mesmo eu sabendo que era impossível ele aparecer, eu tremia inteira e chorava de pavor!

Liguei para os meus pais, expliquei a situação e disse que não iria para a casa deles para não causar problemas, pois duvidava que ele iria aceitar isso de boa. Essa minha amiga me abrigou com sua família. Foram anjos na minha vida. Mas ele realmente não aceitou. Ligava, me perseguia no trabalho, fazia “tocaia” nos meus pais ou no escritório. Até que um dia, passando qualquer limite do normal, ele ligou no meu trabalho e ameaçou meu funcionário. O nosso chefe ficou sabendo e chamou a Guarda Municipal. Com a possibilidade de uma denúncia formal, ele se “contentou” em ser escoltado para fora da cidade e não me procurou mais.

Passado um mês dessa confusão, voltei a morar com meus pais. Aos poucos, minha vida voltou aos eixos. Mas me doeu por muito tempo, as pessoas falando “ele era tão bonzinho, só um pouco ciumento”. As pessoas a nossa volta, muitas vezes “desculpam” certos comportamentos por causa de outras qualidades do abusador. E externam isso exatamente para quem sofreu, como que cobrando o porque a pessoa desistiu do relacionamento “só por isso”.

Demorei mais de dois anos e muitas sessões de terapia para voltar a me relacionar com alguém. Passados mais de 20 anos, às vezes ainda me pego desconfiando das pessoas e tentando identificar os tais sinais vermelhos. Dez anos depois de terminarmos nosso relacionamento, que creiam, durou cinco anos, encontrei o tal cidadão em um restaurante com a esposa grávida. Me arrepiei. Quando ele me cumprimentou, senti um arrepio. Era a primeira vez que o via desde que havia saído fugida da casa dele, com sacos de sanito nas costas.

As lições que aprendi com ele doeram e muito, mas me abriram os olhos. Se caí em outras relações abusivas e tóxicas? Sim. Mas consegui ver o sinal vermelho antes dele piscar. Vivendo e aprendendo!

Anônimo – Mulher, brasileira,  não quis ser identificada.

SOS – ligue 180

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Precisamos falar sobre relacionamentos abusivos sempre

Começamos hoje uma nova série aqui no Belas Urbanas, uma série que já foi feita, uma série que virou um livro, uma série que virou várias rodas de conversas e palestras, mas continuamos a precisar falar sempre sobre relacionamentos abusivos. Não é necessário dizer o motivo de continuarmos a falar, está nos noticiários diariamente o aumento das violências domésticas e de tantas outras.

Violências armadas, criminosas, feminicídios, estupros, assassinatos de crianças, casos de pedofilia… um show de horrores que, de tão frequentes e comuns, vão endurecendo corações e, por endurecem, sendo normalizados.

Como assim? Que sociedade é essa que se coloca de forma tão negligente contra essas agressões?

Com certeza, uma sociedade omissa, calada, apagada, onde as pessoas lutam pela sua sobrevivência diária e não sobra tempo e ânimo para mais nada. Sim, isso pode ser uma das respostas, mas não é só a única, é também a cultura do silêncio, do dito popular “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Há algumas décadas, aqui no Brasil, fomos silenciados, por medo, por repressão, tempos de ditadura e isso foi calando as vozes, fomos emburrecendo como sociedade… porque conversa e debate geram crescimento, compreensão… ideias contrárias debatidas enriquecem as mentes para a abertura de novos caminhos e para consensos democráticos, mas, quando tudo isso vai ficando à margem, empobrecemos o todo, a sobrevivência e a força do egoísmo imperam.

O que é um abuso, afinal? São tantos e em tantos graus e esferas de relacionamentos que caberia em diversas séries fragmentadas. Por enquanto e agora, falaremos de várias, sem especificar somente uma única.

Sempre digo, saber é poder, poder para fazer boas escolhas, poder para se defender, poder para ser usado em prol de todos, e só quando esse todo estiver equilibrado é que as coisas serão diferentes e melhores. Pode ter certeza, é preciso um coletivo mais saudável, pacífico, aberto a diálogos, culturalmente próspero.

A série está sendo construída. Deixo o convite para quem quiser participar e escrever sua história. Deixo também o convite para empresas que queiram disseminar o conhecimento e levar esse tema para ser trabalhado ou mesmo para apoiar nosso projeto, podem entrar em contato comigo pelo e-mail: adriana@belasurbanas.com.br.

Termino com uma frase de John Lennon, mas mudei para o feminino. “Você pode dizer que sou uma sonhadora, mas eu não sou a única”.

Vem comigo, podemos plantar boas sementes.

Adriana Chebabi  – Bela Urbana, sócia-fundadora e editora-chefe do Belas Urbanas, desde 2014. Publicitária. Roteirista. Escritora. Curiosa por natureza.  Divide seu tempo entre seu trabalho de comunicação e mkt e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa.