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Memórias

Eu e uns amigos e colegas de trabalho criamos o hábito de uma vez por ano, sempre no mês de fevereiro ou março, fazermos um peixe na brasa regado a vinho (bem, o vinho a gente bebe) aqui em casa. Devido à pandemia, não fizemos em 2020 e 2021, mas fizemos em 2023. Desta vez estava somente dois amigos e familiares. Apesar de ser verão, não estava tão quente, a chuva deu uma trégua e tivemos um dia muito agradável.

Gostamos de filosofar sobre a vida, sobre o “ser” Humano e andando pelo gramado, tivemos uma conversa até que calorosa sobre… memórias. O que são memórias? Para que servem? Se vivemos de memórias, vivemos no presente ou do passado que se faz presente? E o futuro, criamos ou repetimos conforme as memórias?

Pois bem, memórias! Memórias são nossas experiências, positivas ou negativas, armazenadas em nosso corpo. A ciência diz que a memória celular, biológica, é feita somente em torno dos nossos dois anos de idade e que antes não é possível. Mas não fomos gestados na barriga de nossas mães? E até os dois anos, as experiências não se tornam memórias? Aí os cientistas denominam como memórias de consciência (sensorial, que faz parte das memórias implícitas ou inconscientes) e elas determinam muito dos nossos padrões comportamentais como adultos.

Uma amiga de longa data falou da sua preocupação e dificuldade com o seu filho Gabriel, de quase dois anos, em não deixar escovar os dentes e que já faziam cinco dias que não escovava. Ela o levou em dois especialistas que disseram que é mimo, que ele é manhoso. Ela em tom de desespero: O que fazer? Eu disse que achava que não seria manha não e aí eu perguntei: Mas ele não teve dificuldade em pegar o peito e a mamadeira? Ele não teve que fazer uma pequena intervenção (cirurgia) na língua? Ela respondeu: verdade, e com 25 dias após o nascimento. Bingo! Por isso não deixa ninguém mexer na boca dele. Qualquer pessoa que pense em mexer na boca dele, ele percebe como uma ameaça, um perigo e agora um pouco maior e com mais habilidades corporais aprendidas, se defende.

Essa memória do Gabriel o faz se defender do que tanto, uma vez foi invasivo, o agrediu. Ele ainda tem desenvolvido o cognitivo. Ele não consegue explicar, é impossível, só que o corpo sabe. E foi uma agressão para a mãe e o pai também. Eles disseram: Como que não dissemos isso para os médicos? Expliquei que tinha sido traumático para os dois também e que dores assim a guardamos para poder suportar e sobreviver. Eles sentiram, de imediato, um alívio e que agora (o que era Implícito, se tornou explícito) o Gabriel pode ser devidamente cuidado e o trauma, curado.

Todos nós temos memórias de rejeição, abandono, humilhação, traição, injustiça, desvalorização, assim como temos memórias de conquistas, experiências gostosas (comidas também, hum!), ainda mais quando nos sentimos seguros, amados, momentos prazerosos e de muita alegria com familiares e amigos. Quando faço café, ao sentir o seu cheiro, memórias sensoriais e emocionais de acolhimento, relaxamento e desfrute são ativadas. Quando bem criança, tive estas experiências positivas na casa de uma avó.

Hoje mesmo vi fotos e vídeos de Malta e Itália, viagem que um casal de amigos fizeram no mês passado. UAU! Que delícia foi vivenciar as experiências positivas, agradáveis que tiveram. E que agora, as memórias deles fazem parte das minhas. E essas memórias me fez relembrar a viagem que eu e minha família fizemos para a Itália, dez anos atrás. Momentos deliciosos. Lembro que em Siena, minha filha mais nova, com 07 anos, na Piazza del Campo corria por toda a praça, brincava feliz, livre, leve e solta e perguntamos para ela: Maria, como se sente? Ela respondeu: em casa, já conhecia este lugar! Pois bem…memórias precedentes.

Que futuro é possível criarmos? Depende das memórias que mais vivemos no presente. São mais as positivas ou negativas? Todos queremos a felicidade, amar e sermos amados e ninguém gosta de sentir dor, medo, culpa, sofrer e aí as afastamos, as deixamos guardadas (inconscientes) em nossos corpos, só que ao fazermos isso, o que acontece? Atraímos as pessoas e as situações não resolvidas que se repetem por meio dos relacionamentos abusivos, perdas, doenças físicas, mentais e emocionais.

E se ativarmos as memórias do amor e segurança, podemos aceitar e acolher as dores em nós, transmutá-las e vivermos um futuro com mais leveza e com mais momentos de alegria e felicidade.

Wlamir Stervid – Trabalha como Coach Somático e desenvolvimento de Liderança. Um dos coautores do Livro Precisamos falar sobre relacionamentos abusivos aqui do Belas Urbanas e adora atividades com amigos e familiares na natureza como caminhada, pedalar, fogueira e por aí vai.
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Relações abusivas, uma reflexão sobre autoconhecimento e autocuidado

Relações abusivas muitas vezes são acordos, permissões silenciosas, repetições de padrões inconscientes. Aquilo que em alguns momentos não percebemos ou fingimos não perceber.

Quando a permissão aparece fora pode ser que já estejamos vivendo muitas permissões dentro de nós. Platão, filósofo da Grécia antiga, chamava essa atitude de licenciosidade, o ato de permitir perder o domínio de si mesmo quando medos, frustrações, e outras sensações diminuem nossa capacidade de ser quem somos como seres dignos e valorosos. Perdemos a confiança em nós mesmos e passamos a nos apoiar e nos justificar em nossas debilidades e inconscientemente percorremos caminhos dentro de nós perdidos em um labirinto de sensações e hábitos que nos falam sobre nossa falta de valor. Assim, adoecemos e não lutamos dentro, mas em algum momento a necessidade de entrar em guerra se torna iminente quando percebemos a realidade estampada em nossa vida nos limites das relações adoecidas e sem amor! Como acabei nessa situação? Quem será o culpado? O que fazer agora? São muitas as questões que nos surgem no momento que abrimos os olhos e começamos a trilhar a senda do autoconhecimento.

Há um livro hindu chamado Bhagavad Gita que conta a história de uma guerra onde o herói, chamado Arjuna, sente o ímpeto da licenciosidade diante do seu dever como guerreiro de lutar por aquilo que é seu por direito, apenas porque seus inimigos são seus “familiares”. Este livro fala simbolicamente do homem dividido dentro de si entre o que carrega de luz e de sombra. Por um lado somos valorosos e corajosos para enfrentar as circunstâncias da vida e por outro lado temos as justificativas de nossas fragilidades para não fazer o que é preciso para garantir nossa dignidade humana. E porque Arjuna deve enfrentar seus familiares? Porque precisa matar nele mesmo as sombras que o impede de ver o que é Real, que o impede de amar.

O amor no contexto filosófico fala da capacidade humana de ver com clareza, de discernir o que é válido e agir em conformidade com a própria natureza humana, oferecendo o melhor de sua conduta nos relacionamentos. Não tem a ver com o que esperamos do outro, mas do quanto de amor podemos viver por nós mesmos utilizando nossos valores como ferramentas na ação de amar. Encontrar nossas próprias motivações, inerentes a nossa identidade para agir no mundo sem perder nossa integridade, sem nos deixar arrastar pelos apelos exteriores quando estes nos tiram o brilho de nossa vida. Por isso autoconhecimento e autocuidado são essenciais. É preciso conhecer nossas forças interiores, nossas habilidades para enfrentar os ciclos da vida, e imprescindível também, é conhecer nossas próprias armadilhas interiores: medos, fragilidades, escapismos da realidade, reatividades quando encontramos algo que nos causa contrariedades, porque talvez nos cause dor e não queremos lidar com a dor. Esse conjunto de sensações, hábitos e fenômenos afetivos são “familiares” ao nosso cotidiano, porque passamos muito tempo nos apoiando nessas características para nos proteger e nos defender, e são esses familiares que nos impedem de utilizar nossas verdadeiras armas que são as virtudes, verdadeiro exército que nos liberta dos condicionamentos e automatismos onde a consciência não está presente. Falta despertar nossas sementes latentes de coragem e amor para romper hábitos psicológicos e assumir as rédeas das nossas ações como protagonistas de uma vida iluminada por sentimentos mais elevados de confiança e vontade de ser e de agir com mais valor.

Acontece que muitos de nós vivemos relações tóxicas, onde ambos os pares são responsáveis por suas escolhas e por sua conduta. Contudo, vivemos em uma sociedade e um tempo histórico que não valoriza a educação formativa do ser humano que busca esse autoconhecimento verdadeiro para aprender a protagonizar sua história com fortaleza psicológica e a liberdade necessária para tomar decisões mais inteligentes, escolhendo atitudes que tragam equilíbrio e deixando de lado as que poderiam provocar adoecimento.

Também nossos pais, pertencentes a essa mesma sociedade, e por falta de algo melhor para nos oferecer podem ter nos levado a firmar acordos e permissões através de violência física ou psicológica e assim, o que aprendemos desde cedo através de relações adoecidas poderá ditar os acordos e permissões de nossas ações futuras se continuarmos inconscientes dos motores e gatilhos que nos conduzem. Como disse Jung em um de seus tratados, “Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamar isto de destino”.

Qual o benefício de manter uma vida inconsciente? qual será o benefício de escolher posturas que nos colocam no papel de vítima ou de predador? Pois, parece que no fim das contas todo predador é uma vítima e toda vítima é um predador em alguma circunstancia, pelo menos se olharmos essas interações na natureza, e porque formamos parte da natureza essas características também nos cabem quando nos deixamos viver sem consciência do que nos move, reagindo ao sabor das demandas cotidianas. Talvez esse lugar, esse papel, já tenha se solidificado de tal forma que nos traga o beneficio de certa comodidade, ou seja, desde esse lugar podemos justificar muitas atitudes, e o maior dos benefícios: não lutar contra nossas debilidades, buscar fora o que é apenas reflexo do que contemplamos dentro de nós. Como disse o filósofo e imperador romano Marco Aurélio, “A nossa vida é aquilo que os nossos pensamentos fizeram dela”. Porém, sabemos que muito do que pensamos vem do mundo que nos rodeia, ou das questões que fogem a nossa responsabilidade, já que foi o meio em que vivemos que causou essa distorção da realidade. Podemos assim ter argumentos para responsabilizar o mundo por nossa situação e continuarmos guiados por contratos e permissões inconscientes, e ainda nos achando conscientes disto. Porém, sempre temos como refazer contratos ou selar novos acordos conosco. Claro que não é nada fácil desapegar-se das couraças que nos protegeram até agora, nem tão fácil submergir desse caos interno as ferramentas necessárias para nossa independência e autonomia.

Mas podemos começar com um passo pequeno de cada vez, aprendendo a respirar com mais calma diante das pressões diárias, conquistando estratégias inteligentes para vencer nossas inércias, e assim aos poucos vamos tomando conta de nós. Porque o pior abuso é aquele que cometemos contra nós mesmos, quando dizemos sim aquilo que nos paralisa, quando não percebemos que nosso tempo de cura é só nosso, e quando fechamos os olhos para ver as situações em suas verdadeiras dimensões. Porque a dor sempre vai existir. Buda dizia que a dor é veículo de consciência, pois nos ajuda a tomar consciência de suas causas para conseguir assim cessar a dor.

Platão também disse em seu livro Filebo, que “a dor mal canalizada se torna ódio, e o ódio se torna vício”. A palavra ódio no contexto não é simplesmente sentir raiva de alguém, mas trata-se de aversão e desejo. Queremos afastar a dor e buscamos alívio imediato. Queremos nos entorpecer como uma fuga irracional. Não há raciocínio inteligente, apenas respostas automáticas, como quando nos queimamos em uma superfície quente e automaticamente nos afastamos por proteção. Instinto de proteção é natural, mas quando se transforma em hábitos repetidos já não sentimos a vida, não apreciamos a paisagem. E na corrida para encontrar algo fora de nós que possa amortecer a dor que queima por dentro agimos sem pensar. Instala-se o medo da dor, evitamos sentir a vida para não doer, agimos no automático para esquecer, nos permitimos ser menos do que podemos ser…

Em nosso corpo podemos perceber que a dor avisa quando algo não está equilibrado e que precisamos dar atenção, entrar em ação para reequilibrar nosso funcionamento, nosso metabolismo, nosso fluir vital. A dor psicológica também requer atenção e ação consciente, mas nem sempre percebemos esses processos sutis. Negligenciamos nossos humores, nossos incômodos, e, no fim já não sabemos onde está a raiz das reações, explosões, implosões, etc. No livro O Pequeno Príncipe há um ótimo ensinamento sobre o autocuidado e autoconhecimento onde o principezinho diz que é preciso disciplina para manter o equilíbrio e por isso ao acordar ele costumava fazer a toalete do corpo e também do planeta, que pode representar os detalhes da nossa vida. Ele tinha dois vulcões e um deles era extinto, mas por precaução revolvia os dois e dizia “nunca se sabe”. Ele também cuidava de seu jardim, onde tinha uma bela rosa que representava muito para ele, por isso retirava qualquer erva que surgia, pois tinha receio que tratasse dos baobás, árvores que se tornam enormes, e que no caso do seu planetinha podiam causar estragos catastróficos. O grande ensinamento aqui é estar atento às ervas daninhas que surgem sorrateiramente e que no início parecem pequenas e inofensivas, mas que após um longo tempo de negligência crescem e tomam proporções muitas vezes insuspeitáveis.

Cuidar é um exercício de atenção diário. A natureza, por exemplo, nos ensina que o ritmo e a constância são fundamentais para que surjam as flores e os frutos através da lei que rege a planta. Se as condições são adequadas todos os dias ela realiza a fotossíntese necessária para manter a energia que possibilitará que cumpra todo seu ciclo de vida. Não há um dia em que a planta se recuse a realizar aquilo que é sua natureza, assim como o sol não decide ser outra coisa que não seja sua natureza solar.

Ana Paixão – Bela Urbana, filosofa, pedagoga, palestrante e educadora que trabalha com treinamentos há mais de 10 anos