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A rua dos vagalumes

Com o fim do primeiro casamento de minha mãe na metade dos anos 90 nos mudamos eu e ela para uma casa em um quintal compartilhado e também propriedade da Dona Carol, senhora essa que tinha alguns netos que viviam a brincar na rua enquanto a lua fazia a iluminação natural do local.

No dia que nos mudamos para lá, lembro de ter tantas caixas empilhadas pela casa que para minha sorte minha mãe não achava as panelas e tampouco talheres, por isso procuramos a padaria mais próxima de casa e enquanto ela pedia as gramas de mortadela e pães quentinhos aquele cheiro de “padoca” inebriava todo o espaço daquele lugar.

Nesta nova vida éramos somente eu e ela, e toda confiança que eu depositava nela voltava para mim quando ela me pedia para me trocar e colocar o uniforme da escola na primeira chamada do Sítio do Pica Pau Amarelo que começava ao meio dia em ponto na rede Globo, assim só lhe restava pentear meu cabelo enquanto dividia seu horário de almoço entre comer, me buscar em casa e levar-me para escola. Lembro de chorar apenas uma vez sentindo sua falta e ser consolada com massinhas de modelar e ser a escolhida do dia para ajudar a professora por uma tarde inteira.

Quando podia minha mãe me levava também ao seu serviço, um pequeno salão de beleza que ficava numa grande avenida. Ao final do dia uma barraca de alumínio era montada na frente do local e ali se criava mais um cheiro que eu nunca seria capaz de esquecer em toda minha vida. Um cachorro quente completo com direito a todos os ingredientes da época, salsicha, maionese, ketchup, mostarda e batata palha. A simplicidade do lanche tão perfeita em seu sabor não se compara nem de longe aos preparos gourmetizados de hoje.

Menos é mais.

No rádio era lançamento de Pacato Cidadão da banda Skank, mas o que escutávamos mesmo eram as histórias contadas na rádio AM tais como, Papo de Boléia, Sérgio Bocca, Gil Gomes e Eli Correia, hábito que carrego até hoje e passo gentilmente para meu filho.

Na tv iniciava mais uma novela que seria maratonada com fervor. Com o final mais que esperado de A Próxima Vítima, agora nos renderíamos ao amor impossível de Dara e Igor em Explode Coração.

Capítulo por capítulo assistidos com a esperança de mais um final feliz.

As noites quentes inundavam a pequena casa de dois cômodos em que morávamos, era como um convite para ficarmos na rua na espera de qualquer brisa mais fresca para saciarmos o calor.

Minha recompensa era poder brincar na rua com os netos e netas da Dona Carol. A regra era apenas uma, era preciso levar uma sacola ou pote de vidro. O objetivo também era único, quem conseguisse pegar mais vagalumes vencia.

As sacolas e potes iluminados pelos mosquitinhos brilhantes arrancavam gargalhadas da criançada e um certo orgulho de quem havia pegado mais vagalumes.

A inocência fazia parte do DNA de quase todo pupilo.

Ao cair da noite em que víamos os adultos recolhendo suas cadeiras postas na rua ouvíamos também nossas mães nos chamando para jantar. Era hora de soltar os bichinhos de volta à natureza e entrar em casa.

Mais um final de semana chegava e eu mal poderia esperar para andarmos de trem, comer amendoim torrado na lata de óleo e assistir Domingo Legal ao meio dia.

Com certeza não era só o domingo que era legal e sim o mundo inteiro que era muito mais maneiro e supimpa.

A saudade existe e a memória fica.

Que sorte a nossa termos vivido na mesma época que os vagalumes, sem medo de brincar na rua e ficar em rodas de conversas até altas horas da noite.

Criamos lembranças que jamais serão vividas novamente, porém lembradas com carinho e gratidão por termos sido uma criança ou adolescente dos anos 90.

Gi Gonçalves – Bela Urbana, mãe, mulher e profissional. Acredita na igualdade social e luta por um mundo onde as mulheres conheçam o seu próprio valor. 
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Sobre relacionamentos abusivos – parte 4 – Ave de Rapina

“Quem um dia irá dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração”, e quem irá me dizer que não?

Dos limões que a vida me deu posso dizer que fiz uma limonada e diga-se de passagem, limonada essa daquelas bem azeda e ruim de tomar.

Nunca fui de fazer planos mas os poucos que fiz nunca saíram da maneira como planejei e talvez seja por isso que as frustrações ainda machucam mas já não me ferem mais.

Acredito que quando decidimos compartilhar a vida com alguém temos a responsabilidade meio a meio de fazer aquele investimento fluir com sucesso. Porém, quando o investimento é feito sempre somente por uma das partes a chance disso terminar das piores maneiras é grande.

Por isso decidi encerrar um dos ciclos, se não o mais, desgastante da minha vida.

E neste caso a situação se assemelha à uma vítima que precisa escapar do cativeiro, mas que sente pena do seu sequestrador.

A Arlequina iria se despedir do Coringa.

Eu precisava sair e você me dava todas as razões possíveis para ficar. Era como se eu tivesse despertado de um sono profundo e muito pesado. De repente tudo estava muito claro e o fim já não era mais uma pergunta.

O fim era uma resposta.

As suas tentativas incansáveis de me fazer repensar só me deram mais certeza de estar no caminho certo.

O choro, a manipulação, as palavras chaves e as suas inúmeras hipóteses sobre o que aconteceriam se eu decidisse terminar me fizeram dar o primeiro passo para não poder mais voltar.

Você me fez perder noites de sono, me fez perder amigos, dinheiro, saúde e por último minha casa.

O preço de tanta compaixão foi pago com muitas lágrimas de ódio por ter perdido cada móvel que eu demorei muito para conquistar.

Judas é íntimo e nunca um estranho não é mesmo?

Por diversas vezes você me fez acreditar estar perdendo minha sanidade.

Foi cruel.

Você me separou de você.

O juramento se cumpriu.

Recomeçar do zero pode parecer uma tortura, quase todos nós temos medo do novo e está tudo bem.

Descobri que mesmo quando é tirado o chão de nossos pés ainda nos restam asas para voar. É assustador perder bens, pessoas e sentimentos porém é assustadoramente maravilhoso perder o chão, ganhar o céu e se descobrir como uma águia.

O fim que eu renunciei por várias vezes me mostrou diversas possibilidades de aprendizado.

Não tenho culpa por ter feito o meu melhor.

Não tenho culpa de ter agido com meu coração.

Eu me amo.

Eu me curo.

Eu me cuido.

E se nesse novo processo aparecer uma companhia vai ser super legal dividir a caminhada pois agora eu também sei voar.

Fim.

Gi Gonçalves – Bela Urbana, mãe, mulher e profissional. Acredita na igualdade social e luta por um mundo onde as mulheres conheçam o seu próprio valor. 
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Sobre relacionamentos abusivos – parte 3 – Ele roubou meu coração

Com quantos perdões se fazem uma relação de sucesso?
Sinceramente não sei, mas apostaria em muitos.
Existem os dias de luta para que possamos reconhecer os dias de glória e o que eu mais queria era compartilhar todos esses dias com meu parceiro. O que eu não esperava era por uma batalha sem fim na qual ficamos presos sem achar uma saída.
Mais uma vez eu decidi começar do zero, uma vida nova porém dessa vez sozinha.
Sim eu poderia, pelo menos foi o que mais ouvi diante de dezenas de conselhos que escutei.

Você é mulher linda, inteligente, profissional com certeza vai encontrar alguém que te valorize.

As falas são as mesmas mas o que esquecem de dizer é que algumas feridas, preferencialmente as afetivas, não se cicatrizam com uma boa noite de sono.

No dia seguinte da minha vida nova senti o desespero da saudade mas aguentei firme.

Eu não poderia me sabotar mas ao me olhar no espelho sentia culpa.

Bastou um telefonema e todo meu discurso findou ao som de uma velha risada que eu conhecia bem.

Estou com saudades. Eu também.

O coração é enganoso e Deus foi o primeiro à nos alertar.

No peito a esperança fazia cócegas.

Decidir esquecer tudo o que havia acontecido até ali, permitiu abrir espaço para novas decepções após nossos novos dias juntos.

O tempo foi passando velozmente em nossa frente e todos meus sentimentos foram se mesclando ao amor e compreensão que eu sentia.

O amor virou medo.

O carinho virou ansiedade.

Todos os dias a mentira progredia, a fim de esconder outras ‘sujeiras’.

Mas como explicar a sensação de responsabilidade com alguém que se coloca em situações perigosas?

Troquei fechaduras, tranquei portas, mudei a senha do cartão.

Você mentiu, manipulou e me fez acreditar que eu estava louca quando numa noite tentou me convencer que meus dados bancários haviam sido clonados. O desespero crescia em saber o que teria acontecido com meu dinheiro enquanto você olhava fixamente no meus olhos e mentia para mim.

A sua habilidade em reverter a situação favoravelmente para si era algo fora do comum.

Surreal, além de ser roubada eu ainda te pedi desculpas.

Você roubou meu coração, minha carteira e meu tempo. E eu aprendi a parar de ver o seu lado bom para ver o que você realmente me mostrava.

O choque foi cruel.

Continua …

Gi Gonçalves – Bela Urbana, mãe, mulher e profissional. Acredita na igualdade social e luta por um mundo onde as mulheres conheçam o seu próprio valor. 
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Sobre relacionamentos abusivos – parte 2 – Gêmeos

Uma vez li em algum lugar que compreensão demais é burrice.

Hoje concordo.

Sempre entendendo, concordando, perdoando, me colocando no lugar do outro me fez ver o quanto abrimos brechas para arrependimentos cruéis.

Em todo caso já expresso minha opinião de que claramente devemos nos colocar no lugar do próximo. Ao menos provar nossa empatia diariamente se possível desde que, você não se anule pelo próximo também pois é exatamente aí que mora o perigo.

O que eu pensava que seria apenas mais uma noite chorando se tornou uma rotina torturante.

E o meu instinto altruísta sempre teria as melhores opções possíveis para justificar os porquês de eu não ter ido embora antes.

Na minha interpretação de taurina raíz eu teria que ficar até o fim e jamais abandonaria um parceiro que havia se perdido de si mesmo na vida por algum tempo.

A minha recompensa eram nossos dias felizes com você sóbrio.

Uma eterna montanha russa num carrinho sem cinto.

Em algum momento iríamos cair.

Mas enquanto não caíamos só me restava segurar bem firme na sua mão e aproveitar a viagem.

Eram dias de extrema alegria, eram dias de extrema tristeza, as suas personalidades se dividiam entre a versão de um marido apaixonado e um adolescente louco.

Gêmeos.

Geminiano louco num corpo duplicado.

Hora no céu, hora no inferno.

Não dava para prever, a qualquer momento qualquer um dos dois poderia estar comigo. Mas houve um momento que esta versão louca e irresponsável ganhou força e todo amor foi se transformando em medo.

Você enlouqueceu e me segurou.

Você enlouqueceu e não voltou.

Você enlouqueceu.

Você.

Queria te ajudar mas eu também estava afundando.

Só queria resgatar o meu marido em algum lugar ali dentro daquele corpo alucinado.

Num domingo de sol tudo mudaria.

Um revólver engatilhado só não foi disparado talvez por gritos incansáveis de perdão a Deus.

O desespero tomou conta de mim e ali tive certeza que te perderia para sempre.

Eu não poderia deixar a loucura te levar.

Decidi lutar.

Continua …

Gi Gonçalves – Bela Urbana, mãe, mulher e profissional. Acredita na igualdade social e luta por um mundo onde as mulheres conheçam o seu próprio valor. 
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Sobre relacionamentos abusivos – parte 1 – Coringa

Dizem que os amores são únicos e há quem acredite que na vida toda existe somente um amor.

Como saber se não apostar todas as fichas?

Nunca fui das pessoas que acreditam em contos de fadas e amores impossíveis, o que mais almejava era uma boa companhia para poder relaxar comigo numa tarde de domingo sem muita pretensão. Então assim te conheci.

Você se aproximou e aos poucos fomos nos conectando de uma forma surreal, completa e única.

Abreviamos todos os passos tradicionais de uma relação e nos casamos após o primeiro beijo. Apelidamos nossa casa e criamos raízes e razões para ficarmos juntos para sempre.

Você me dizia o quanto valia o risco de se jogar na vida e me apresentou um lugar maravilhoso, onde seria meu refúgio e o nosso lar. Eu me entreguei, mergulhei, te contei todos os meus segredos e em troca você me revelou os seus.

A conexão já havia sido criada e em tudo estávamos ligados. Eu e você contra o mundo e lendo nossos signos pelas estrelas de madrugada.

Eu era um livro que você já havia lido.

Surreal mas sentíamos que não poderia ser algo comum.

Nos jogamos nessa imensidão sem ao menos nos previnir. Fomos de peito aberto segurando nossas mãos e voando no espaço.Você me fez perder o medo, me segurou, me amou em detalhes.

Numa noite de amor percebemos juntos o quanto estávamos ligados de corpo e alma. Te olhei e depois de um longo beijo me olhou e disse que eu era a sua Arlequina e assim como o Coringa eu era uma criação da sua mente e que havia me encontrado depois de muito procurar.

Éramos feitos um para o outro.

Nada mais poderia dar errado para nós e entre juras de amor te jurei, ninguém mais poderia me separar de você além de você mesmo e assim eu te provaria meu amor.

E ali descobri que a pior mentira é aquela que contamos a nós mesmos.

Você sumiu por uma noite e me fez desabar em lágrimas sem ao menos saber onde estava.

Os dias se passavam e a única razão pela qual me fazia apostar nessa relação era única e exclusiva de que você e só você conseguia me enxergar atravéz da alma.

Mas esquecemos que energia demais também gera explosões e danos irreversíveis.

Não seria diferente conosco.

Tanta sintonia poderia se voltar contra mim e demorou para eu entender.

O ‘amor tóxico’ nunca mostra seus gatilhos, ele os cria ao longo do tempo. Uma mentira que gerou várias outras e resultou num cenário de tragédia anunciada.

O ciclo precisava ser encerrado, porém como arrancar uma árvore que já tinha dado flor mas momento apresentava espinhos?

Mesmo machucada e com mil motivos para ir embora decidi ficar.

Te segurei, te cuidei e curei todas as tuas feridas. Na tua escuridão eu quis ser luz e na tua fome eu quis ser pão.

Eu só não imaginava o quão doloroso seria as páginas seguintes deste livro.

Dançamos por muito tempo no silêncio onde a música era o delírio.

Continua …

Gi Gonçalves – Bela Urbana, mãe, mulher e profissional. Acredita na igualdade social e luta por um mundo onde as mulheres conheçam o seu próprio valor.