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Existe um eu sou?

Somos aquilo que pensamos ser? Será que me vejo a partir do meu próprio olhar
ou através do olhar dos outros — a começar pela família e, posteriormente, pela
sociedade — que nos impõe valores e comportamentos com a promessa de que
seremos aceitos e amados?

É verdade que nascemos num mundo factual, onde as coisas já estão dadas e
sobre as quais não temos o menor controle, como o lugar de nascimento, a
família, a cor da pele, entre outros. Somos frutos da nossa época, com a sua
historicidade, cultura e contingências.

A princípio, somos natureza in natura, expressando-se na sua potência de ser e
existir. Ao interagir com o mundo, experimentamos uma força de expansão e
criação — sobretudo de nós mesmos. Neste estado, onde o existir se assemelha
a uma experiência de comunhão com o mundo e com o outro, tudo se entrelaça,
favorecendo a continuidade do ser e tornando-nos uma versão inédita de nós
próprios.

Nesta perspectiva, o sentir e o pensar estão integrados, de tal modo que as
palavras não conseguem conter a linguagem dos afetos — são apenas pontes
entre a experiência partilhada e o indizível do mundo particular que compõe cada
um de nós.

Seguimos pela vida em busca de nós mesmos — ora vivenciando algo mais
próprio, ora nos perdendo em meio aos discursos e falatórios da cultura a que
pertencemos. Todavia, a doce e terrível angústia de ter de ser as minhas
possibilidades, num mundo fluido e dinâmico, convoca-me a transformações e
realizações.

Quando estamos abertos para compor com o fluxo da vida, renunciando à
segurança de um pertencer engessado — isto é, aceitando que não podemos
deter a vida, pois ela nos escapa por entre os dedos — somos então lançados à
aventura de nos criar e recriar na novidade de cada instante.

A ideia de controle retira-nos do movimento da vida, reduzindo o ser a uma
representação daquilo que gostaríamos que fosse. Todavia, não há nada mais
real e potente do que sermos nós mesmos. A busca pela perfeição objetifica-nos
e rouba-nos a beleza do fazer-se e do tornar-se aquilo que se é. É interessante
pensar que um lindo vaso de argila, na sua origem, foi apenas uma massa
disforme; porém, quando moldada pelas mãos de um artífice, transforma-se
numa obra de arte. É possível imaginar a vida como movimento, de modo que
em algum momento, no tempo e no espaço, tal vaso possa retornar à sua origem.
Viver é um estado de permanente recomeço. Noite e dia ressurgem, a cada vez,
de modos diferentes e, assim, passado, presente e futuro encontram-se num
fazer contínuo. A bagagem do passado serve-nos de matéria-prima, que será
atualizada pelo presente, tornando-se a semente para um futuro que já desde
sempre começou. O futuro é um esboço de um amanhã que será preenchido, a
cada dia, ao seu modo. Somente ao final de uma vida podemos vislumbrar a
obra concluída — e não há nada mais sublime do que perceber-se coautor da
própria existência.

Somos complexos, múltiplos e diversos, pois, a cada instante, surgem inúmeras
possibilidades de novos arranjos e combinações com a experiência vivida.
Considerando, assim, as infinitas possibilidades que se apresentam diante de
nós e a finitude que nos constitui, é inevitável lidarmos com a dor de ser e deixar
de ser. Afinal, para que algo possa nascer como possibilidade vivida, outras
possibilidades precisam ser inviabilizadas — ao menos naquele instante no
tempo.

Considerando que somos uma metamorfose ambulante, como cantou Raul
Seixas, na origem de tudo encontra-se um existir vazio, mas potente de
possibilidades — um lugar nunca preenchido, de onde emana o ato criativo.
Podemos, assim, transcender a finitude da vida quando, ao contemplar as
infinitas possibilidades, damos o salto de fé — mergulhando na direção de
algumas delas, não com a pretensão de acertar, mas com o intuito de uma
expansão e autor realização.

O salto de fé projeta-nos para fora, levando-nos, paradoxalmente, a mergulhar
mais fundo em nós mesmos. Tal como as plantas que se estressam no outono
com a chegada do inverno, também aprofundamos nossas raízes para, mais
tarde, florescer com maior vigor.

Às vezes, devido às nossas inseguranças, sentimos necessidade de nos apoiar
em coisas — como a grife de uma roupa, o copo de cristal, um lugar turístico,
entre outros — em busca de garantias para um bom encontro. No entanto,
quando o bom encontro realmente acontece, tais coisas tornam-se irrelevantes.
A vida é assim: quando tentamos definir o que é dançar, perdemos a dança.

Pensar a vida fora da experiência vivida é um trabalho infrutífero — oferece-nos
apenas a ilusão de algo possível para além da nossa própria trajetória singular,
feita de dores e alegrias. Crescer envolve uma dor necessária, pois novas
estruturas estão sendo forjadas para que novas fontes de vida possam nascer e
jorrar do nosso interior.

Maria das Graças Guedes de Carvalho – Psicologa. Ama a vida e suas dádivas como ser mãe, cuidar de pessoas e visitar o mar.

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É tempo de se viver

O relógio nos diz sobre o tempo cronológico medido por horas, dias, meses e anos. Desejo falar sobre um outro tempo, o qual podemos viajar através das memórias, pois elas nos remetem há momentos desde a infância até os dias atuais.

Neste tempo a vida pode passar como um filme e pode-se revisitar momentos de dor e alegria em alguns minutos ou horas. Quando isso ocorre fico a pensar que a vida tem a ver com intensidade e eternidade.

Ao observar a natureza notamos que a semente de uma árvore, contém em si todo o potencial necessário para que se desenvolva e torne-se uma linda árvore, todavia a árvore ao morrer deixará sementes. Fico a imaginar o movimento da vida como as ondas do mar que avançam para retornar, retornam para avançar.

Na dança da vida as vezes erramos o passo, outra vezes perdemos o ritmo e o rebolado, mas tudo faz parte do aprendizado de dançar a dois. Ao acertar o passo podemos bailar, assim como um casal de amantes com a leveza e sintonia. É sobre esse instante que pode dar sentido a uma vida que chamo de eternidade.

No filme “PERFUME DE MULHER”, há uma cena inesquecível, em que um personagem cego, vivido por Al Pacino, tira uma moça para dançar e ela responde: “Não posso, porque meu noivo vai chegar em poucos minutos…” Responde ele: “Mas em um momento se vive uma vida” conduzindo-a num passo de tango.

É sobre esse instante o qual pode dar sentido a uma vida que chamo de eternidade. Estar no fluxo da eternidade tem a ver com reconhecer a singularidade que cada um de nós somos no universo e no tempo. Logo cada um de nós expressa a diversidade da beleza que compõem a vida. Ao experimentarmos essa dimensão, tudo vai fazendo sentido e, passamos a nos implicar com cada decisão tomada durante a vida. É possível reconhecer que para cada decisão havia uma necessidade a ser atendida ou experimentada, a fim de se tornar que se é.

Movida por esse sentimento de eternidade, ao completar 60 anos, revisitei lugares onde morei especialmente da adolescência para frente, uma vez que a infância se passara em outra cidade. Foi uma experiência incrível; reviver as memórias de um tempo passado entrelaçado ao momento atual e, me reconciliar com todas as aquelas versões de mim, que me habitaram desde sempre. Reconhecer que sou somatória de todas elas, me preencheu de uma alegria, a qual fora bem descrita por Caetano, na música, Dom de Iludir: Cada um sabe a dor e a delícia. De ser quem se é.

Para terminar a minha reflexão te pergunto: E você já fez essa viagem no tempo? Sinta-se convidado.

Maria das Graças Guedes de Carvalho – Bela Urbana. Psicologa clinica. Ama a vida e suas dádivas como ser mãe, cuidar de pessoas e visitar o mar.
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Caminhos no deserto

Deserto lugar de vida em meio as impossibilidades.

A vida acontece em meio a períodos que se alternam, assim como as estações do ano. Há momentos férteis repleto de flores a desabrochar e, outros áridos como folhas secas levadas pelo vento.

É interessante observar como as coisas estão interligadas, de modo que uma dimensão da vida aponta para o seu contrário, ou seja, para haver a primavera o outono se faz necessário e vice-versa.

Não aceitar o movimento natural da vida é resistir ao desabrochar de um novo caminhar mais autêntico e potente. A natureza nos mostra esse movimento, quando o stress causado pela força das mudanças das estações que precedem a primavera, faz com que a planta aprofunde suas raízes, buscando assim nutrientes, os quais ao serem levados através da seiva, irá revitalizar e transformar todo aquele esforço em uma semente carregada de novas possibilidades.

Há caminhos aonde o deserto se coloca como única travessia possível para chegar aos vales verdejantes e, assim encontrar terras habitáveis. O deserto exige de nós coragem, resiliência, sabedoria para armazenar elementos de fé, esperança e amor a vida. Logo se tornará possível reconhecer e contemplar a grandeza de um cacto florido, bem como a beleza de um oásis.

A vida que brota no deserto nos mostra a possibilidade de transformar o pouco em suficiente, como faz os cactos e o camelo ao armazenarem a água necessária para a travessia.

Quando pôr fim ao alcançarmos o solo fértil, possivelmente seremos inundados por uma alegria tamanha, que tudo ganhará um novo colorido, cada desabrochar de uma flor se tornará em um milagre e, ao nos perceber como instrumento através do qual a vida se reproduz, passaremos a ter responsabilidade em nos tornar canal para que a vida possa fluir dentro e fora de nós.

Entendo que a felicidade tem a ver com momentos, os quais movidos por um sentido de entrega a um Amor absoluto pela vida, nós lançamos com fé e confiança na direção do desconhecido que há em nós e no mundo, transcendendo o aqui e o agora e, assim abraçando a eternidade. A partir de um novo olhar poderemos então construir uma nova rede de significados, redimindo a nossa existência tornando a uma experiência única, intrasferível e especial.

Aos adquirirmos a consciência da grandeza do que significa estar vivo, não fará sentido deixarmos para depois ou delegarmos a outros a aventura de nos reinventar na direção do universo infinito que nos habita.

Gostaria agora de falar com você que por alguma razão está lendo esse texto:   Supere o medo da angústia que o desconhecido pode provocar, pois ela é o motor de toda a criação, apenas deixe se emergir por inteiro, com seus lugares floridos e áridos. Será no encontro desses lugares aparentemente opostos, que a vida se fará, assim como o fogo que nasce entre o atrito de duas pedras.

De acordo com as escrituras sagradas, Deus, diante da falta de esperança e angústia do povo de Israel, que encontrava-se atravessando o deserto rumo à terra Prometida, diz o seguinte: Isaias 41: 18 – “Abrirei rios nas colinas estéreis e fontes nos vales. Transformarei o deserto num lago, e o chão seco em mananciais”. E assim a vida se refaz.

Maria das Graças Guedes de Carvalho – Bela Urbana. Psicologa clinica. Ama a vida e suas dádivas como ser mãe, cuidar de pessoas e visitar o mar.