Posted on 5 Comments

Relações abusivas, uma reflexão sobre autoconhecimento e autocuidado

Relações abusivas muitas vezes são acordos, permissões silenciosas, repetições de padrões inconscientes. Aquilo que em alguns momentos não percebemos ou fingimos não perceber.

Quando a permissão aparece fora pode ser que já estejamos vivendo muitas permissões dentro de nós. Platão, filósofo da Grécia antiga, chamava essa atitude de licenciosidade, o ato de permitir perder o domínio de si mesmo quando medos, frustrações, e outras sensações diminuem nossa capacidade de ser quem somos como seres dignos e valorosos. Perdemos a confiança em nós mesmos e passamos a nos apoiar e nos justificar em nossas debilidades e inconscientemente percorremos caminhos dentro de nós perdidos em um labirinto de sensações e hábitos que nos falam sobre nossa falta de valor. Assim, adoecemos e não lutamos dentro, mas em algum momento a necessidade de entrar em guerra se torna iminente quando percebemos a realidade estampada em nossa vida nos limites das relações adoecidas e sem amor! Como acabei nessa situação? Quem será o culpado? O que fazer agora? São muitas as questões que nos surgem no momento que abrimos os olhos e começamos a trilhar a senda do autoconhecimento.

Há um livro hindu chamado Bhagavad Gita que conta a história de uma guerra onde o herói, chamado Arjuna, sente o ímpeto da licenciosidade diante do seu dever como guerreiro de lutar por aquilo que é seu por direito, apenas porque seus inimigos são seus “familiares”. Este livro fala simbolicamente do homem dividido dentro de si entre o que carrega de luz e de sombra. Por um lado somos valorosos e corajosos para enfrentar as circunstâncias da vida e por outro lado temos as justificativas de nossas fragilidades para não fazer o que é preciso para garantir nossa dignidade humana. E porque Arjuna deve enfrentar seus familiares? Porque precisa matar nele mesmo as sombras que o impede de ver o que é Real, que o impede de amar.

O amor no contexto filosófico fala da capacidade humana de ver com clareza, de discernir o que é válido e agir em conformidade com a própria natureza humana, oferecendo o melhor de sua conduta nos relacionamentos. Não tem a ver com o que esperamos do outro, mas do quanto de amor podemos viver por nós mesmos utilizando nossos valores como ferramentas na ação de amar. Encontrar nossas próprias motivações, inerentes a nossa identidade para agir no mundo sem perder nossa integridade, sem nos deixar arrastar pelos apelos exteriores quando estes nos tiram o brilho de nossa vida. Por isso autoconhecimento e autocuidado são essenciais. É preciso conhecer nossas forças interiores, nossas habilidades para enfrentar os ciclos da vida, e imprescindível também, é conhecer nossas próprias armadilhas interiores: medos, fragilidades, escapismos da realidade, reatividades quando encontramos algo que nos causa contrariedades, porque talvez nos cause dor e não queremos lidar com a dor. Esse conjunto de sensações, hábitos e fenômenos afetivos são “familiares” ao nosso cotidiano, porque passamos muito tempo nos apoiando nessas características para nos proteger e nos defender, e são esses familiares que nos impedem de utilizar nossas verdadeiras armas que são as virtudes, verdadeiro exército que nos liberta dos condicionamentos e automatismos onde a consciência não está presente. Falta despertar nossas sementes latentes de coragem e amor para romper hábitos psicológicos e assumir as rédeas das nossas ações como protagonistas de uma vida iluminada por sentimentos mais elevados de confiança e vontade de ser e de agir com mais valor.

Acontece que muitos de nós vivemos relações tóxicas, onde ambos os pares são responsáveis por suas escolhas e por sua conduta. Contudo, vivemos em uma sociedade e um tempo histórico que não valoriza a educação formativa do ser humano que busca esse autoconhecimento verdadeiro para aprender a protagonizar sua história com fortaleza psicológica e a liberdade necessária para tomar decisões mais inteligentes, escolhendo atitudes que tragam equilíbrio e deixando de lado as que poderiam provocar adoecimento.

Também nossos pais, pertencentes a essa mesma sociedade, e por falta de algo melhor para nos oferecer podem ter nos levado a firmar acordos e permissões através de violência física ou psicológica e assim, o que aprendemos desde cedo através de relações adoecidas poderá ditar os acordos e permissões de nossas ações futuras se continuarmos inconscientes dos motores e gatilhos que nos conduzem. Como disse Jung em um de seus tratados, “Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamar isto de destino”.

Qual o benefício de manter uma vida inconsciente? qual será o benefício de escolher posturas que nos colocam no papel de vítima ou de predador? Pois, parece que no fim das contas todo predador é uma vítima e toda vítima é um predador em alguma circunstancia, pelo menos se olharmos essas interações na natureza, e porque formamos parte da natureza essas características também nos cabem quando nos deixamos viver sem consciência do que nos move, reagindo ao sabor das demandas cotidianas. Talvez esse lugar, esse papel, já tenha se solidificado de tal forma que nos traga o beneficio de certa comodidade, ou seja, desde esse lugar podemos justificar muitas atitudes, e o maior dos benefícios: não lutar contra nossas debilidades, buscar fora o que é apenas reflexo do que contemplamos dentro de nós. Como disse o filósofo e imperador romano Marco Aurélio, “A nossa vida é aquilo que os nossos pensamentos fizeram dela”. Porém, sabemos que muito do que pensamos vem do mundo que nos rodeia, ou das questões que fogem a nossa responsabilidade, já que foi o meio em que vivemos que causou essa distorção da realidade. Podemos assim ter argumentos para responsabilizar o mundo por nossa situação e continuarmos guiados por contratos e permissões inconscientes, e ainda nos achando conscientes disto. Porém, sempre temos como refazer contratos ou selar novos acordos conosco. Claro que não é nada fácil desapegar-se das couraças que nos protegeram até agora, nem tão fácil submergir desse caos interno as ferramentas necessárias para nossa independência e autonomia.

Mas podemos começar com um passo pequeno de cada vez, aprendendo a respirar com mais calma diante das pressões diárias, conquistando estratégias inteligentes para vencer nossas inércias, e assim aos poucos vamos tomando conta de nós. Porque o pior abuso é aquele que cometemos contra nós mesmos, quando dizemos sim aquilo que nos paralisa, quando não percebemos que nosso tempo de cura é só nosso, e quando fechamos os olhos para ver as situações em suas verdadeiras dimensões. Porque a dor sempre vai existir. Buda dizia que a dor é veículo de consciência, pois nos ajuda a tomar consciência de suas causas para conseguir assim cessar a dor.

Platão também disse em seu livro Filebo, que “a dor mal canalizada se torna ódio, e o ódio se torna vício”. A palavra ódio no contexto não é simplesmente sentir raiva de alguém, mas trata-se de aversão e desejo. Queremos afastar a dor e buscamos alívio imediato. Queremos nos entorpecer como uma fuga irracional. Não há raciocínio inteligente, apenas respostas automáticas, como quando nos queimamos em uma superfície quente e automaticamente nos afastamos por proteção. Instinto de proteção é natural, mas quando se transforma em hábitos repetidos já não sentimos a vida, não apreciamos a paisagem. E na corrida para encontrar algo fora de nós que possa amortecer a dor que queima por dentro agimos sem pensar. Instala-se o medo da dor, evitamos sentir a vida para não doer, agimos no automático para esquecer, nos permitimos ser menos do que podemos ser…

Em nosso corpo podemos perceber que a dor avisa quando algo não está equilibrado e que precisamos dar atenção, entrar em ação para reequilibrar nosso funcionamento, nosso metabolismo, nosso fluir vital. A dor psicológica também requer atenção e ação consciente, mas nem sempre percebemos esses processos sutis. Negligenciamos nossos humores, nossos incômodos, e, no fim já não sabemos onde está a raiz das reações, explosões, implosões, etc. No livro O Pequeno Príncipe há um ótimo ensinamento sobre o autocuidado e autoconhecimento onde o principezinho diz que é preciso disciplina para manter o equilíbrio e por isso ao acordar ele costumava fazer a toalete do corpo e também do planeta, que pode representar os detalhes da nossa vida. Ele tinha dois vulcões e um deles era extinto, mas por precaução revolvia os dois e dizia “nunca se sabe”. Ele também cuidava de seu jardim, onde tinha uma bela rosa que representava muito para ele, por isso retirava qualquer erva que surgia, pois tinha receio que tratasse dos baobás, árvores que se tornam enormes, e que no caso do seu planetinha podiam causar estragos catastróficos. O grande ensinamento aqui é estar atento às ervas daninhas que surgem sorrateiramente e que no início parecem pequenas e inofensivas, mas que após um longo tempo de negligência crescem e tomam proporções muitas vezes insuspeitáveis.

Cuidar é um exercício de atenção diário. A natureza, por exemplo, nos ensina que o ritmo e a constância são fundamentais para que surjam as flores e os frutos através da lei que rege a planta. Se as condições são adequadas todos os dias ela realiza a fotossíntese necessária para manter a energia que possibilitará que cumpra todo seu ciclo de vida. Não há um dia em que a planta se recuse a realizar aquilo que é sua natureza, assim como o sol não decide ser outra coisa que não seja sua natureza solar.

Ana Paixão – Bela Urbana, filosofa, pedagoga, palestrante e educadora que trabalha com treinamentos há mais de 10 anos
Posted on 2 Comments

Eu fugi com as roupas em sacos de sanito

Falar de relações abusivas não é fácil… pois, para quem as vivenciou, o colocar no papel ou falar em voz alta é reviver as situações dolorosas. Eu poderia descrever “n” situações de abuso e relações tóxicas ao longo de 40 anos. Normalmente quem passa por isso, se não se cuidar e buscar ajuda, cai novamente nas mãos de pessoas abusivas e tóxicas. Muda o nome, mas o descritivo das personagens costuma ser idêntico, já dizem os especialistas!

Os relacionamentos abusivos acontecem em várias esferas e nem sempre o abusado percebe a teia em que está se metendo até estar totalmente preso a ela. Comigo foi assim… e por algumas vezes.

Eu havia saído de um relacionamento há alguns meses. Estava literalmente curtindo a solteirice. Naquela sexta à noite, estava já na terceira programação. Fui encontrar amigos em um bar. Cheguei e dei de cara com uma mesa em que eu não conhecia praticamente ninguém. Conhecidos apenas um amigo, que cantava ao som de seu violão, e a amiga que havia convidado. Cheguei bem no meu estilo: vestido curto, cigarro (naquela época podia fumar em locais fechados), falando alto (que é o meu comum, sem beber) e bebi minhas caipirinhas habituais. Um pouco feliz demais por encontrar o amigo cantor, com que à época tinha uma grande intimidade, fizemos uma brincadeira que sempre fazíamos: enquanto ele cantava imitando diversos artistas, eu sentava em uma de suas pernas, fazendo micagens! Essa era eu: sem pudor, sem mimimi, sem me preocupar muito com o que os outros estavam pensando.

Eis que a amiga me chama de canto e me diz que um de seus amigos havia se interessado por mim. Perguntei sobre ele. Ela disse que só o conhecia do trabalho, que ele era gente boa, mas só. Ao voltar para a mesa, muitas músicas e alguns drinks e cigarros depois, ele veio puxar papo. Queria saber tudo ao meu respeito, me ouvia atentamente e concordava com quase tudo, senão com tudo que eu falava. A primeira luz vermelha acendeu e eu não vi. Querer agradar demais e esse excesso de simpatia, hoje eu sei, é sinal de alerta! Faz parte do jogo de sedução do abusador!

Trocamos telefone. Ele viajaria no dia seguinte para a praia para passar alguns dias. De lá, em épocas que não existia whatsapp, ele me mandava mensagens de texto todo os dias e mais de uma vez: “bom dia, boa tarde, boa noite. Só queria saber de você!” Achei fofo! Ele mostrando interesse de verdade, não deixando com que a viagem esfriasse o clima de paquera iniciado no dia que nos conhecemos. A segunda luz vermelha acendeu e eu não vi. Ele não estava querendo manter nada quente, estava era querendo saber o que eu fazia. De uma maneira “fofa” ele controlava meus passos, sem eu perceber.

Enfim, ele voltou. Saímos. Acabamos ficando. Naquela noite, depois de ter fumado no início do encontro (afinal ele me conheceu fumando) e de beijá-lo, fui acender meu cigarro e ele pediu educadamente: Você pode não fumar, por favor? Ok, sem problemas, afinal de contas, ele não fumava! Isso passou de boa… até que um mês depois de começarmos namorar, ele começou a implicar com o meu cigarro de maneira feroz! “Seu carro cheira cigarro, não adianta mascar chiclete, nem sinto mais o cheiro do seu perfume. Odeio esse cheiro. Você tem que parar de fumar!”

De repente, ele começou a me dar roupas de presente. Nada do que eu teria no meu armário. Mais cumpridas, menos decotadas, menos salto, menos cores. Entendam, eu não era uma dita hoje “periguete”. Eu só estava no auge dos 20 e poucos anos, magra e feliz. E me vestia assim. E isso passou a ser motivo de briga constante. Assim como o comprimento das minhas roupas, minhas relações com os amigos (inclusive com os dois que estavam na noite que nos conhecemos). “Meu amor, fala mais baixo. Passa menos maquiagem. Você já tomou duas caipirinhas”. A luz vermelha nesta época não acendia, piscava incansavelmente.

Mas passei por uma situação familiar complicada, e foi na casa dele que encontrei refúgio para fugir de tudo aquilo. Mesmo com todas as luzes piscando, eu precisava de uma rota de fuga naquele momento e escolhi a pior delas.

Com o passar dos meses, reformamos o apartamento dele, com o meu dinheiro (detalhe), mas não conseguíamos nos entender. Eu não me sentia em casa e ele não fazia questão. Prova disso, era que eu estava lá diariamente e que não tinha a minha própria chave do apartamento. Tinha que deixá-la na portaria todo santo dia.

O ser doce e fofo que amava me ver falar começou a me interromper a cada frase nas rodas com os amigos ou mesmo numa conversa a dois. Inconformados de como eu era tratada e da minha submissão, meus amigos se afastaram de mim. Logo, éramos apenas eu, ele e os amigos dele. Chegou ao cúmulo dos pequenos cuidados virarem um controle absoluto. “Onde você está? Que horas você chega? Quem está com você? Deixa eu dar oi pra ela?” Sem perceber a manipulação, troquei o meu salão de beleza que frequentava há anos, por um em frente à casa dele, para assim não perdermos tempo, pois só tínhamos os finais de semana juntos de verdade, visto que ele trabalhava alguns dias da semana em outra cidade. Íamos aos restaurantes e de repente o cardápio não passava mais pela minha mão, porque ele sempre tinha uma sugestão que eu ia adorar.

Fui minguando. Ficando calada. Chorona. Medrosa. Sem brilho nos olhos. Nem de perto a moleca que era antes. Até que a prova de fogo chegou: fui promovida no trabalho e passei a ganhar mais do que ele. E isso o afetou de uma maneira sobrenatural. De repente, não podíamos mais viajar, mesmo que eu tivesse o dinheiro para arcar com os gastos. Não íamos a restaurantes ou passeios que eu queria, porque ele não conseguia pagar e não aceitava que eu pagasse.

O meu trabalho realmente começou a irritá-lo. Eu recebia muitas ligações noturnas e de final de semana, devido ao cargo que exercia na época. Ele xingava a ponto da pessoa do outro lado da linha ouvir, se constranger de desligar. Ele começou a ficar cada vez mais agressivo com as palavras e com as cobranças. Chegou ao ponto de eu não conseguir mais comer ou dormir. Ele deitava na nossa cama e eu esperava ele dormir, para ir a um pufe do lado da cama, ligar a TV no silencioso para não acordá-lo e varar a noite.

Até que um dia, numa das crises de raiva dele por conta de um telefonema num domingo à noite, ele quebrou a casa. Literalmente. Com um murro, fez um buraco na porta do nosso quarto. Espatifou meu telefone de trabalho no chão, quebrou louças. Outra noite no pufe, chorando baixo para ele não acordar.

No dia seguinte, uma grande amiga minha, viu no meu rosto o terror que eu estava e me perguntou o que tinha acontecido. Quando eu contei, ela que conhecia a criatura, pois frequentava nossa casa e se afastou, me disse com o maior amor do mundo: “Xu, você vai esperar o quê? Ele quebrar a sua cara? A gente vai hoje tirar suas roupas da casa dele, aproveitando que ele não está”. E assim fizemos. Expediente encerrado, fomos para a casa dele. E como uma fugitiva, enfiei todas as minhas roupas em sacos de sanito e saí de lá, deixando objetos de decoração e outras coisas minhas. Não queria levar nada que me lembrasse aquele lugar, apesar de ter escolhido e comprado muitas das coisas. Mesmo eu sabendo que era impossível ele aparecer, eu tremia inteira e chorava de pavor!

Liguei para os meus pais, expliquei a situação e disse que não iria para a casa deles para não causar problemas, pois duvidava que ele iria aceitar isso de boa. Essa minha amiga me abrigou com sua família. Foram anjos na minha vida. Mas ele realmente não aceitou. Ligava, me perseguia no trabalho, fazia “tocaia” nos meus pais ou no escritório. Até que um dia, passando qualquer limite do normal, ele ligou no meu trabalho e ameaçou meu funcionário. O nosso chefe ficou sabendo e chamou a Guarda Municipal. Com a possibilidade de uma denúncia formal, ele se “contentou” em ser escoltado para fora da cidade e não me procurou mais.

Passado um mês dessa confusão, voltei a morar com meus pais. Aos poucos, minha vida voltou aos eixos. Mas me doeu por muito tempo, as pessoas falando “ele era tão bonzinho, só um pouco ciumento”. As pessoas a nossa volta, muitas vezes “desculpam” certos comportamentos por causa de outras qualidades do abusador. E externam isso exatamente para quem sofreu, como que cobrando o porque a pessoa desistiu do relacionamento “só por isso”.

Demorei mais de dois anos e muitas sessões de terapia para voltar a me relacionar com alguém. Passados mais de 20 anos, às vezes ainda me pego desconfiando das pessoas e tentando identificar os tais sinais vermelhos. Dez anos depois de terminarmos nosso relacionamento, que creiam, durou cinco anos, encontrei o tal cidadão em um restaurante com a esposa grávida. Me arrepiei. Quando ele me cumprimentou, senti um arrepio. Era a primeira vez que o via desde que havia saído fugida da casa dele, com sacos de sanito nas costas.

As lições que aprendi com ele doeram e muito, mas me abriram os olhos. Se caí em outras relações abusivas e tóxicas? Sim. Mas consegui ver o sinal vermelho antes dele piscar. Vivendo e aprendendo!

Anônimo – Mulher, brasileira,  não quis ser identificada.

SOS – ligue 180

Posted on 3 Comments

Agressões que ocultam segredos “tumulares”

O conheci numa reunião de trabalho. A bonita camisa, de manga comprida arregaçada, expunha sua virilidade masculina através da exposição daqueles punhos e mãos.

Trocas de olhares discretos e interesse mútuo o fizeram terminar um namoro de muitos anos e nos levou ao altar um ano depois, apesar de bem maduros.

Era o terceiro casamento dele, sem filhos, o que facilitava nossa relação.

Meses depois, em um desentendimento sem grande importância, ele revelou um ser irado, que eu desconhecia, gritando comigo, sem poupar os vizinhos.

Quando ‘a poeira assentou’, disse-lhe: “Eu nunca vivi situação semelhante e não a viverei. Se você não é capaz de se controlar, nosso romance termina aqui.”

Recado compreendido, ele passou a se controlar e não repetiu o espetáculo comigo, mas me era difícil ver seus tons agressivos e sórdidos com garçons, com o zelador e porteiros do prédio, com nossa auxiliar doméstica, com seus funcionários e outros.

Para amigos e familiares ele era tido como educado, gentil e muito sensível.

As agressões dele, comigo, eram outras. À cada saída de casa, ele fazia questão de testar sua virilidade, à minha frente. Trocava olhares com mulheres estranhas ou gracinhas com mulheres conhecidas, de amigas minhas a caixas de lojas e supermercados.

Eu passei a ver seus comportamentos agressivos e essas atitudes desprezíveis como expressão de sua frustração por suas dificuldades sexuais.

O recomendei a buscar um terapeuta especialista em sexualidade, cujo trabalho levou uns três anos.

Alguns anos se passaram e os problemas sexuais, de agressividade e de desrespeito continuavam vivos e fortes.

Num dado momento, uma atitude verbal e gesticular, muito agressiva, foi dirigida a mim e decidi pôr um fim àquele relacionamento, que me fazia mal e se mostrava sem conserto.

Um ano após o divórcio, ainda com grande parte dos pertences dele em casa, fui em busca de um documento e encontrei uma declaração de amor, de um amigo dele, que frequentava a nossa casa semanalmente, para ele.

Esta carta era antiga, o que indicava o tempo daquele relacionamento, e era a peça que faltava naquele enorme puzzle. Sua agressividade, dificuldades sexuais e outras atitudes disfuncionais, ganharam legitimidade, à partir daquela declaração de amor masculina, guardada cuidadosamente entre fotos e cartas significativas.

Mantive este fato comigo, pois sei que ele o pretende levá-lo para o túmulo, mas fui usada, tanto quanto sua atual mulher e todas as suas ex-esposas, que serviram de esconderijo para sua real identidade.

Muitos anos se passaram e eu ainda tento me recompor desse relacionamento abusivo, buscando compreender o porquê de incluí-lo no puzzle de minha vida.

Anônimo – Mulher, brasileira,  não quis ser identificada.

SOS – ligue 180

Posted on 3 Comments

Nasci menina

Nasci menina. Bonita, sorridente, moleca. Era menina-menino sempre correndo, pulando. E na ingenuidade das brincadeiras de crianca de 5 anos já tive que aprender a desviar de lobos. Cruzou o meu caminho um tal Sr. João, avô da minha amiguinha. Na casa onde moravam era correr em volta dos móveis da sala e esbarrar nesse obstáculo gordo de nariz vermelho esparramado no sofá. Ele sempre dava um jeito de me puxar pelo braço e me apertar contra sua barriga enorme e com suas mãos velhas e gordas me puxar entre minhas pernas. Aprendi a driblar o velho.

Crescendo me tornei bela adolescente com quem todos queriam se relacionar. Ainda lembro o calor que senti em minhas costas, algo duro, quente parado ali, ele em pé eu sentada escrevendo. Na minha ingenuidade custei a entender. Mudei de lugar, calei. Assustada passei a fugir das ciladas, andar em bando. Comecei a perceber o que queriam de mim.

Vale ressaltar que sou filha de imigrantes guerreiros mas não tive orientação sobre sexualidade, outros tempos. Fui descobrindo sozinha.

Logo cedo casei, sonhadora, iludida. Traída dentro de casa, mudei tudo. Sofri muito mas continuei no sonho de “felizes para sempre”. Fui aos trancos.

Agora a lembrança me leva a um consultório médico com fortes dores abdominais. Deitada numa maca sou demoradamente apalpada, estômago, intestino, barriga toda. Então? Nada? Sim! Sai o medico de perto meio contorcido parecia que tinha encorporado minha dor. Qual nada! Ele escondia mal uma ereção. Percebi, calei com ânsia de vômito. Sai do consultorio com mais dores do que as tinha. Agora com a auto estima doida também.

E seguindo o caminho, amores, namoros, casos à toa. Bonitos, feios, bobos, inteligentes. Eu queria um príncipe, todas queriam.

Nessa busca mais uma porrada de leve. Entre conversas e cervejas o rapaz de familia rica me levou a marina no Iate Clube para me mostrar o barco novo. Claro que achei que íamos ficar juntos, beijos, risadas, carinhos e velejar.

Nao foi bem assim. Fui virada de costas apoiada num barco e estuprada. Dolorida de todo jeito, pouco falei. Lembro de dizer: isso não e assim! Acabou, fui embora na hora arrasada.

Espanto, no dia seguinte entra pelo corredor do lugar onde eu trabalhava, o sujeito com sorrisinho no rosto e bonbons na mão. Continuei calada.

E o tempo passa na minha memória, voando. Já com filhos criados e um a criar, vou levando a vida de divorciada e super-heroína. Sou boa nisso!

Já aos quarenta e tal me deparo com mais dessa espécie comum. Um amigo/parente, me liga com voz rouca de desespero pedindo que fosse a sua casa urgente. Éramos vizinhos.

La fui eu, short , camiseta, descabelada, estava descabelada, fiquei mais ainda quando ao descer as escadas o sujeito me agarrou a força e tive que usar a minha para empurrá-lo e sair correndo. Chorei de raiva e espanto. Afinal, eu era amiga da mulher dele. Não entendi nada ou entendi tudo. Em choque ainda cruzei com o personagem dias depois e ele todo sorrisos me perguntou porque eu não falava mais com ele? Porra! Como assim?

Hoje ao 67 passando um pouco a vida a limpo, trago essas grotescas memórias a tona. Feridas curadas, não esquecidas. Ainda sinto nojo de cada uma delas.

Menina sonhadora: caíram os panos, desfizeram-se os sonhos. A super-heroína esta aqui de pé, MULHER.

E bem longe os João, Marcelo, Carlos , Vidal, Jorges que nãoo ouso chamar de HOMEM.

Maria Nazareth Dias Coelho – Bela Urbana, jornalista de formação. Mãe e avó. É chef de cozinha e faz diários, escreve crônicas. Divide seu tempo morando um pouco no Brasil e na Escócia. Viaja pra outros lugares quando consigo e sempre com pouca grana e caminhar e limpar os lugares e uma das suas missões.