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Acordei, outubro rosa!

Hoje acordei um pouco desatenta, com a cabeça pesada e uma vontade de não fazer nada. Levantei-me assim mesmo, escovei os dentes, tomei banho e passei meu creme. Não estava feliz como nos outros dias. Algo em mim doía, um aperto no coração, uma agonia.

Coloquei um vestido simples, afinal, estava indo ao médico para saber o que realmente estava acontecendo.

Entrei na clínica e vi vários rostos de mulheres. Algumas sozinhas, outras acompanhadas, todas com a mesma expressão de preocupação. Eu, sozinha, sentei no canto do sofá. Era uma sala comum de consultório, e não havia muito o que dizer. Sentada ali, com uma revista de fofocas nas mãos, vi chamarem a primeira paciente. Alguns minutos depois, ela saiu. Seus olhos estavam marejados; visivelmente, o diagnóstico não havia sido bom. Foi até a recepção para marcar o tratamento. Que dor, que lamento.

Meu coração apertou de tal forma que achei que iria desmaiar. Assim foi com a segunda paciente. A terceira saiu sem remarcar nada. A quarta mal conseguia andar. Meu coração batia tão forte que comecei a pensar em tudo o que não fiz. Pensei que não me casei, que escolhi a carreira ao invés de ter filhos. Pensei nas besteiras que priorizei, e agora, ali estava eu, uma mulher jovem, com tanto medo.

Foi então que, de súbito, ouvi meu nome. Coração na mão, mãos geladas, achei que iria desmaiar. Levantei-me e entrei na sala. Atrás da escrivaninha, uma mulher de branco, com seus 50 anos, me cumprimentou com um olhar tranquilo.

Sentada, ainda apavorada, comecei a falar: “Foi tomando banho, doutora, que toquei meu seio esquerdo e senti um caroço. Dói um pouco, fiquei com medo e preferi vir aqui ver o que era.”
“Claro”, respondeu a médica. “Abra o vestido, vamos examinar.”
Minhas mãos trêmulas mal conseguiam obedecer. Meu coração palpitante doía, e minha cabeça parecia prestes a explodir. A médica, gentilmente, começou a examinar. Apertou minha mama esquerda com delicadeza, depois a direita, e então pediu que eu me vestisse.

Sentada à minha frente, disse que não deveria me preocupar. “É apenas um nódulo de gordura que precisaremos retirar.”

Senti um alívio imediato, e ela continuou explicando: “Se autoexaminar e tirar todas as dúvidas é a melhor coisa que você pode fazer. Muitas pessoas são negligentes. Não fazem o autoexame e, quando descobrem, têm um problema maior para resolver.”

Ela continuou: “Não é brincadeira o que sentimos ao receber uma notícia dessas. Parece que nossa vida desmorona, destrói nossos sonhos, acaba com a alegria. Mas o câncer de mama não é o fim. O autoexame pode te ajudar a prevenir. Não seja negligente, não se permita sofrer. Esteja no grupo que busca o problema para resolver.”

André Araújo – Belo Urbano. Homem em construção. Romântico por natureza e apaixonado por Belas Urbanas. Formado em Sistemas, mas que tem a poesia no coração e com um sorriso de menino. Sempre irá encher os olhos de água ao ver uma Bela mulher sorrindo.
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Relato Póstumo

Em meados de Novembro Ana galgou o muro da casa de Fernanda, ou melhor dizendo, antiga casa de Fernanda. Não fora uma tarefa branda, mas ao finalizá-la repousando o olhar no quintal de Fer sentiu-se triunfante; satisfeita.

Neste dia em questão completava-se seis meses que Fer já não morava mais nessa cidade, nem país; e muito menos mundo. Essa lembrança tornou a deixar as bochechas de Ana quentes e úmidas pelas lágrimas, fizeram as beiradas de sua boca repuxarem em um sorriso nostálgico e álgico. Ah, Fernanda. Este nome sempre ecoava na mente de Ana de maneira poética e delirante.

Tocada pelo ambiente, Ana cambaleou aproximando-se da piscina que se localizava no centro do quintal de Fernanda. A água e estrutura pareciam devastadas pelo tempo; sujeitada ao abandono, exatamente como Ana estava. Com os pés tocou a borda da piscina enquanto fitava o vazio daquele quintal e respirou fundo. O ar era característico ao ambiente; era úmido e refrescante, levava notas de solidão e nostalgia.

Sentou-se na beirada da piscina e repousou a mão sobre a água suja pelas desastrosas 8 semanas sem um dono e sem amparo. A família de Fernanda mudou de cidade e não haverá mais quem cuide dela. A piscina não terá mais aquela família para atenção aos seus cuidados e Ana não será agraciada com a presença de Fernanda nunca mais. As lágrimas quentes persistiam em escorrer pela face da jovem e os soluços escaparam faceiros por sua garganta má.

Ela não terá mais natais com Fer. Nem tão pouco passará as viradas de ano com ela. Não teria mais aquela companhia gostosa durante a noite. Não encontraria mais ao chegar em casa a pessoa a quem se entregaria em beijos. Não teria mais aquele amor correspondido que ardia em chamas por todo o seu ser. Ana não teria mais Fernanda; E não lhe restava mais nada.

Rolou da beirada à piscina, caiu em escuridão azul, em turbulência; em si. Não queria cair assim. Ana queria Fernandinha com seu cheiro amadeirado e olhar carinhoso; com seus muxoxos doces que acalentavam seu dia e incendiavam a sua existência. Ah, a realidade lhe sufocou tanto quanto a água ao adentrar seus pulmões.

Ana desejava sumir. Sumir junto de Fernanda e ir para o mundo que antes dominava. Oh, como parecia certo… Como foi certo. Pois Ele ouviu suas preces.

O corpo de Ana foi achado duas semanas depois inexplicavelmente conservado na piscina de seu primeiro beijo com Fernanda.

Marisabel Cruz Bela Urbana, enfermeira pós graduanda em docência, finalizando o curso de consultora em amamentação e doula/educadora perinatal. Apaixonada em desbravar novos idiomas, atualmente aprendendo Libras e refinando o inglês. Gosta de rock, MPB e está retomando a paixão e habito pela leitura. Tem 24 anos e signo de touro com ascendente em sagitário. Deleita-se com apresentações de novas culturas e crenças em sua vida, estando sempre em busca de experiências reconfortantes e renovadoras.

NOTA: Memória criada aos 14 anos; retomei e a revisei aos 24 anos)

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Sonhos esmagados pela dor

Chegou calada na escola, fazia tempo que não se via o seu sorriso.
No canto da boca ensaiava um riso, mas a memória tirava o ensaio e trazia carregada uma lágrima.
Não interagia, fingia, temia, chorava escondida esperando ninguém ver, mas os olhos inchados denunciavam o que ela queria esconder.
Mas não importava, a vida continuava sem ela, continuavam as risadas e as resenhas, continuava a dor que ninguém sabia e que ela procurava esconder.

Em casa, o quarto impecável, as roupas dobradas e arrumadas cor por cor, a dor expressa em uma organização que não tem valor.
Nas noites o medo reinava, o ranger dos tacos ou a porta que se abria e tudo recomeçava novamente, ele não tinha dó.
Entrava sorrateiro, calado, colocava a mão nos cabelos dela e fazia ela tremer de medo, as lágrimas corriam caladas no canto do rosto, desgosto, esgotamento, não estava certo, se a vida era assim, não queria mais viver.
Na manhã a apatia, a mãe que fingia não saber, o cinismo de que nada tinha acontecido estampado nos olhos de quem vê e a pergunta que cravava a raiva em seu peito, “está tudo bem com você?”

Mais um dia, tudo igual, as resenhas, a escola e a dor que parecia permanente, a mente já cansada, dormente, triste, insolente, demente, escrota, pungente, morte indefinida, distante de ser gente, destrói a vida.
Tantos sonhos esmagados pela dor que não tem tamanho, não tenho esconderijo onde ele não possa me ver, não tenho mais sonhos, desisti de crescer.
Nos cadernos as notas que caíam, no comportamento a dor que não sumia escondia cada vez mais a beleza que era destruída nas noites que não dormia.
Encontrada por quem espreita, o giz que desfaz a dor, cai como uma luva, tudo fica colorido, ela tem mais força, nada mais é impossível.

E mais giz e mais força, agora não fazia diferença se a crença de quem estava à volta era duvidosa do que sentia, sentia que tinha encontrado um novo quarto na mente que o escroto pungente não poderia entrar.
Mas não bastava essa fortaleza, tenha que ter certeza de que ele irá desaparecer, desaparecer para o mundo, desaparecer para você.
Pega o cachorro do amigo que entrega o giz, vai para casa aprender a desaprender, giz, cachorro, choro e certeza, já sabe o que vai fazer.
A noite chega, o giz acaba, o cachorro na mão e a certeza, hoje isso termina, não vai mais ter volta, a porta abre silenciosamente e fecha, a tranca indica privacidade, um estampido forte e um pequeno sussurro, um cheiro de ferro no ar, um minuto de silêncio, e agora é minha vez, antes do bater na porta, outro estampido, tudo termina de vez.

André Araújo – Belo Urbano. Homem em construção. Romântico por natureza e apaixonado por Belas Urbanas. Formado em Sistemas, mas que tem a poesia no coração e com um sorriso de menino. Sempre irá encher os olhos de água ao ver uma Bela mulher sorrindo.

LIGUE 180 ao ouvir ou ver sinais de violência

 

 

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VAZIO infinito

Ele perdeu a noção do tempo. Não sabia qual era o dia da semana, o mês, o horário. Tudo isso deixou em uma outra vida, em um certo dia.

O dia que uma dor tão profunda apertou seu peito, maior do que todas as outras que já tinha sentido. Ele sempre sentiu dores fortes, desde criança. A dor de um vazio, como se fosse a queda em um buraco, ele sempre se sentia caindo. As vezes parava e se agarrava em algo, mas não conseguia segurar por muito tempo, logo caia de novo.

Em cada queda a dor aumentava, foi ficando tão grande, mas tão grande, assim como o vazio que sentia. Vazio infinito. Dor crescente.

Tinha sorte, mas não a percebia. Perdia, sempre perdia, não pela falta de sorte, mas pela confusão mental que o VAZIO lhe causava.

Tentou o suicídio três vezes em épocas diferentes, mas não morreu, foi salvo.

Salvo? Ele nunca viu assim, preferia ter ido, mas se achava incompetente até para isso.

Em uma tarde de inverno resolver largar tudo, a madrasta, a namorada, a irmã, o cachorro. Saiu pela porta, não deixou bilhete, não levou roupas, não levou comidas, não levou telefone, nem carteira, nem cartões, nada. Foi embora somente com o VAZIO.

Quanto tempo faz? Ele não sabe, Não sabe mais quem era. Sabe quem é, sabe que vive nas ruas, sabe que mendiga, nem sabe se está na sua cidade ou em outras, já andou tanto, que não sabe nem se já voltou.

A dor acalmou, se sente anestesiado. Nunca mais amou, amar machucava. Nunca mais quis se matar. Nunca mais quis nada. Não sentia nem dor, nem amor.

Uma noite bem tarde, ruas vazias, estava na frente de uma uma loja, com televisores que começaram a acender e mostravam um show de rock de uma banda que ele ouvia e gostava.

Uma lágrima escorreu de seus olhos. Ficou olhando aquilo. Lembrou da dor, lembrou do amor. Lembrou de si. Do vazio. Da queda. Fechou os olhos, pediu perdão. Foi embora, era melhor ser invisível. Não queria ascender.

Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde faz curadoria dos textos e também escreve. Publicitária. Curiosa por natureza.  Divide seu tempo entre as consultorias de comunicação e marketing e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa :)

Foto Adriana: Gilguzzo/Ofotografico.

 

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SEGUNDA FEIRA

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Toda segunda promete.

Promete mais que qualquer outro dia.

Promete não só o dia. Promete pela semana toda.

Toda segunda é assim, mas é melhor quando o final de semana foi divertido e bem vivido.

Segunda renova os desejos, de que o trabalho seja próspero, de que a prova seja boa, de que a aliança seja aceita, de que as notícias sejam positivas, de que os sonhos se concretizem.

Segunda é um dia novinho. Folha branca, alma nova, esperança.

Toda segunda é dia de NASCER de novo.

Adriana Chebabi

Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde é a responsável pela autoria de todas as histórias do projeto. Publicitária, empresária, poeta e contadora de histórias. Divide seu tempo entre sua agência  Modo Comunicação e Marketing  www.modo.com.br, suas poesias, histórias e as diversas funções que toda mãe tem com seus filhos. Gosta das segundas e de todos os outros dias da semana 🙂

 

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Bosta por bosta: Beto Arnaldo Costa

editada shutterstock#E65207 (2) foto Belas - Beto Arnaldo Costa

Lucia passou a faculdade inteira ouvindo Silvia, sua melhor amiga, falar: – Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa.

A prova era difícil? E já ouvia Silvia: – Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa.

A carona furou para a faculdade e só sobrava ir de ônibus, lá vinha Silvia: – Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa.

Até em festa, quando seu paquera resolvia beijar outra menina, ela olhava para a amiga, mostrava outro rapaz e soltava: – Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa.

Lucia achava aquilo engraçado e diferente e começou a repetir a tão profunda frase em qualquer situação que não fosse a sua primeira opção, assim como sua amiga Silvia fazia.

Lucia, que até então nunca tinha questionado, perguntou para Silvia: – Quem é afinal esse tal de Beto Arnaldo Costa?

E Silvia: – Beto Arnaldo Costa foi um candidato a político na região da minha cidade que na última eleição foi para a TV e falava: “Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa”.

Lucia achou aquilo deprimente e pela primeira vez já não achou engraçada essa frase. Como a maioria dos jovens, Lucia era idealista, acreditava que poderiam existir bons governantes. Achou aquilo ridículo e quis dialogar com a amiga a respeito. Silvia, que tinha outros interesses, achou aquela falação uma chatice e disse:

– Que bobagem, Lucia, é engraçado!

Silvia, que de alguma forma ganhou fama com a fama da frase, não queria abandonar isso agora.

Lucia percebeu naquele dia que via o mundo de uma forma diferente de Silvia, mas, como eram ainda tão jovens, essas diferenças ainda eram pequenas e toleráveis.

Os anos passaram rápido. Lucia foi estudar no exterior, morou anos fora, conheceu novas culturas, novas pessoas, resolveu fazer uma segunda faculdade e depois ainda uma terceira, de jornalismo e sociologia. Fez muitos cursos, deu também muitos cursos, virou correspondente internacional de uma grande emissora de TV, virou editora-geral de um grande jornal. Na vida pessoal, alguns namorados, um quase marido – quase porque Lucia desistiu de tudo quando tudo já estava marcado. Quanto mais crescia na vida profissional, mais achava os homens sem graça. Ninguém já há um bom tempo despertava seu interesse.

E Silvia? Lucia perdeu o contato com Silvia logo após a formatura. Teve notícias de que ela voltou para sua cidade no interior, mas cada uma seguiu seu rumo e naquela época, sem celular, internet, perder o contato das pessoas era realmente fácil.

Lucia até tentou há alguns anos achar Silvia pela internet, mas sem nenhum sucesso.

Eis que um dia, no jornal em que trabalha, um dois mais importantes do País, Lucia foi convocada para uma reunião com a diretoria e recebeu a missão pessoal de entrevistar o Sr. Beto Arnaldo Costa.

– Como assim? – perguntava ela, toda surpresa. – Quem? O bosta por bosta?

– O que é isso, Lucia, está delirando? Contenha-se – disse o superintendente do jornal. – O Sr. Beto Arnaldo Costa tem feito um trabalho muito interessante e revolucionário com o lixo reciclável e por isso estamos querendo fazer uma série de reportagens sobre o assunto. E o Sr. Beto Arnaldo Costa será o primeiro entrevistado; o jornal tem interesse particular nesse caso e por isso estamos designando você para fazer isso pessoalmente.

Lucia achou aquilo estranho. Não que não pudesse acompanhar e entrevistar pessoalmente alguém, na verdade gostava de fazer isso, mas justamente o “bosta por bosta”, pensava ela. Foi quando se deu conta de que nunca soube mais nada sobre essa história, nem se era verdade e o que era verdade. Como toda boa jornalista, resolveu investigar, mas não teve sucesso, pois essa história era do começo dos anos 80 e Lucia agora tinha acabado de virar o século, ou seja, ainda existia muito a ser digitalizado, principalmente nos pequenos jornais das pequenas cidades.

Chegou o grande dia da entrevista. Haviam marcado em um restaurante chique de São Paulo. Lucia já estava impaciente, o tal Beto Arnaldo Costa estava atrasado 30 minutos e ela não aguentava mais tomar suco de laranja e comer os pães. A imaginação corria a mil, pensava em como ele seria. Já tinha em mente que seria um homem chato, grosseiro, sabia que tinha 52 anos e já imaginava um homem careca, gordo, muito gordo e de pé pequeno.

– Por que estou pensando no pé desse homem? Dizem que o pé tem o mesmo tamanho de um outro órgão masculino – talvez na verdade fosse nisso que ela pensasse.

Virou-se para a bolsa para atender ao telefone e já ia dizendo alô, quando uma voz grave disse:

– Você é Lucia?

Ela se virou rapidamente e por uns instantes ficou boquiaberta, com o pão na boca e o celular no ouvido, quase engasgou, fechou a boca e ainda ouviu:

– Desculpe o atraso, o piloto do helicóptero foi avisado que se tornou pai no meio do voo. Fiz questão de que voltássemos para que ele pudesse estar com o filho e tive que pedir outro piloto. Eu estava sem seu celular, pedi que meus assessores avisassem o jornal, você recebeu o recado?

Lucia estava zonza e, ainda com o celular no ouvido, disse no aparelho: – Depois te ligo.

E, ainda em susto, dirigiu-se ao elegantérrimo senhor, nada barrigudo, nada careca (só ainda não tinha visto seus pés), e perguntou: – Você é o Beto Arnaldo Bosta? Quer dizer, Costa.

Ele sorriu e, muito fino, fez que não escutou o trocadilho com seu sobrenome e disse: – Sim, sou eu.

O almoço foi ótimo, conversaram por mais de 3 horas sobre o lixo reciclável, sobre o projeto com a periferia da cidade de Arinápolis, interior da Bahia, sobre educação, sobre cultura, sobre, sobre, sobre… Lucia estava encantada como há muito não ficava com alguém. Mas a pergunta não saía da sua cabeça: – Será ele o tal Beto Arnaldo Costa, que é o bosta por bosta?

Às 17h ele pediu desculpas e disse que tinha uma outra reunião de trabalho e que precisava ir, mas perguntou se ela poderia jantar com ele, assim continuariam a conversa. Ela aceitou e ele disse que às 21h30 o motorista a apanharia na sua casa. Ela disse que não era preciso, mas ele fez questão, e ela aceitou.

Voltou para a redação encantada e encucada: – Seria ele (aquilo não saía da sua cabeça)?

Pensou em Silvia, mas não tinha mais nenhum contato com ela e lembrou-se do nome da cidade da amiga, era do interior de São Paulo. Procurou pelo sobrenome Knoschi. Como era um sobrenome incomum, talvez fosse possível achá-la ou então algum parente, mas nada, ninguém com aquele sobrenome nas listas. Com seu espírito investigativo, resolveu ligar para uma pessoa aleatória da cidade e perguntou se conhecia Silvia Knoschi ou alguém da família Knoschi. A pessoa até que teve boa vontade – pequenas cidades do interior ainda preservam esse espírito cooperativo nas pessoas –, e Lucia deu sorte, a senhora que atendeu ao telefone conhecia Inês, a mãe de Silvia, e disse que Inês tinha morrido há mais de 15 anos, e Silvia, como não tinha parentes na cidade, mudou-se e nunca mais apareceu por lá. A mulher disse:

– Só sei que ela enricou, casou e mudou. Não sei se a ordem é essa, talvez seja casou, enricou e mudou, mas por que você está procurando por ela? Ela sempre foi muito antipática, por aqui ninguém gosta dela nem daquele marido… Agora tenho que desligar, meu bolo vai queimar.

– Tudo bem… Muito obrigada…

Sem pistas, Lucia foi se arrumar para o jantar.

Às 21h30 pontualmente estava o chofer, ela estava elegante. O restaurante japonês era o melhor e o mais caro da cidade. Beto Arnaldo Costa já estava a sua espera, elegante, gentil, sorridente, e ela: – Oi, Bos… Costa.

A conversa foi perfeita, já tinha material para o artigo, mas o jantar se estendeu para outros assuntos. Por mais incrível que possa parecer, ela desandou a falar de vários assuntos pessoais. Ele, já mais reservado, falou somente sobre seu sucesso no projeto de reciclagem.

– Como ele é interessante – ela pensava, mas também se pegou pensando: – “Será ele?”, “Não é possível, ele é tão educado, culto, fino, mas e esse nome igual?”.

O jantar foi maravilhoso. Ele, com seu chofer, a deixou em casa, despediram-se com um beijo no rosto e ele disse que na próxima semana estaria em São Paulo e perguntou se podia ligar para ela.

– Claro que sim – disse ela prontamente.

A entrevista ficou ótima. O superintendente deu parabéns e ela sugeriu um artigo mais detalhado sobre o projeto da reciclagem e das famílias envolvidas, e a ideia foi aprovada. Lucia estava muito empolgada, encantada, sorria à toa, não tirava da cabeça Beto Arnaldo Costa. Parecia uma adolescente apaixonada… Ele enviou flores e uma corrente de ouro com uma ametista quando a matéria saiu, foi um sucesso, a mídia começou a falar bem desse homem.

Na semana seguinte estava ele em São Paulo e convidou-a para ir com ele para Paris, assim ela acompanharia mais sua vida e teria mais subsídios para continuar a matéria. Ela, que sempre foi tão sensata, aceitou assim de imediato, tudo pago por ele, primeira classe. Lucia já conhecia Paris, mas desta vez a ideia de Paris lhe pareceu a mais perfeita possível.

Para quem achava todos os homens a seu redor tremendos bobos, Lucia surpreendia a si mesma de tão sem críticas que estava para Beto Arnaldo Costa. Foram juntos no avião. Descobriu que ele tinha interesse em associar-se ao jornal em que ela trabalhava, lembrando que era um dos maiores jornais do País. Descobriu também que ele tinha sido pastor de uma igreja. Em outros tempos isso já seria motivo de cartão vermelho, desta vez nem amarelo. Ela não se reconhecia.

Costa, como era mais conhecido pelos aliados, era sorridente, elegante e político. Sim, ele era político, mas ela já tinha até esquecido a história do “bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa” e quando lembrava já tinha certeza que não tinha nada a ver, que era só uma coincidência de nomes. Estava convencida de que ele era um grande homem, quase convencida de que ele estava interessado nela. Ele de fato se insinuava para ela, mas não passava disso.

Chegando ao hotel, ainda na recepção, o celular dele tocou. Com uma voz melosa, amoroso, dizia: – Tudo bem, amor, será breve, pode me esperar. Desligou, olhou para Lucia e disse: – Vovó – ela achou lindo esse carinho com a avó, nossa, ele ainda tinha avó.

Lucia era só elogios para Beto Arnaldo Costa. Jantaram juntos e ela achou que seria uma noite mais profunda. Pensava no pé, que ainda não conhecia, mas nada! Beto Arnaldo Costa deu aquele lindo e branco sorriso de propaganda de creme dental e se recolheu ao seu quarto. Ela não aguentou e pensou: – “Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa”. É isso, ele era o cara. Ela decidiu: daria um jeito nessa timidez, só podia ser isso e nem combinava com ele, afinal.

No dia seguinte, um imprevisto e Lucia não pôde acompanhar Beto em um compromisso. Ele deixou um bilhete embaixo da porta escrito à mão: “Querida, tenho que ir às pressas para uma reunião, mas volto para jantarmos juntos, te chamo na sua suíte às 22h”.

Seu coração disparou, ela sentiu-se como Julia Roberts em Uma Linda Mulher e aproveitou o dia para comprar um lindo vestido vermelho decotado de Paris. O relógio andava devagar. Lucia foi fazer massagem, drenagem, depilação, escova, banho de espuma e às 22h estava pronta com seu lindo vestido vermelho decotado e sexy, sim, muito sexy. Recebeu um telefonema da recepção que era para ela descer direto para o restaurante do hotel. Fez isso e se dirigiu em câmera lenta, só faltava a música de fundo para parecer filme, mas ela sentia a linda música de fundo. O vestido, para ser bem sincera, não fazia nada seu estilo, até incomodava um pouco, um super decote na frente e um super/hiper decote nas costas até quase o rego, além da fenda na perna esquerda até a coxa. Era bem incômodo e nada a ver com seu estilo. Vocês não têm noção de quanto equilíbrio ela teve que fazer para que nada saísse do lugar, mas pensava: – “Valeria a pena”.

Mas a música suave e romântica que seus ouvidos ouviam no trajeto até o restaurante se tornou música de terror, pois ela, assim que pisou no restaurante, viu de longe Beto Arnaldo Costa, mas quem veio direto ao seu encontro foi ninguém menos que Silvia, sim, Silvia, sua amiga dos tempos da faculdade. Um pouco diferente do que era, é certo, mas sorridente, com os dentes muito brancos – eles não eram tão brancos assim; muito loira, com um cabelão, um bundão e, além de tudo, simpática, e ela nem era simpática.

– Lucia, minha querida, que saudades!!

– Você aqui, Silvia… – Lucia respondeu em estado de choque.

– Quis fazer uma surpresa para você, por isso não pedi para o Beto…

– Arnaldo Bosta, ops, Costa.

– Isso mesmo, para ele não contar nada para você.

– A vó era você?

– Claro, meu bem, sempre atenta, Lucia, por isso se deu bem como jornalista. Já eu, já sabia que a salvação seria um bom casamento. Quando voltei para minha cidade, fui trabalhar na prefeitura e o conheci, virei sua assessora e depois você sabe, né, ele é tão charmoso…

– Mas e a história do bosta por bosta?

– Querida, pelo visto você continua a mesma idealista de sempre. Bostas todos são… então bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa – e ria.

Lucia, pela primeira vez, se sentiu muito ridícula, envergonhada, aquela roupa parecia chumbo, pesava horrores; o encontro com a velha amiga não poderia ter sido em pior momento. Queria fugir dali, tirar aquela fantasia de mulher ultra super sexy que nada tinha a ver com ela, como se sentiu mal… Chegou a ter ânsia – “Que vontade de vomitar naquilo tudo, naquelas pessoas vazias, naquela fútil e egoísta da Silvia, ela sempre foi assim, como consegui ser amiga dela na faculdade? E esse Bosta… pastor de igreja, político que usa esse refrão… E o jornal? Tudo interesse político, que coisa feia, suja”.

Lembrou-se da mulher do telefone falando da Silvia e do marido. Com certeza aquele projeto de reciclagem tinha mais interesses por trás, além da compra de um percentual do jornal. E ela, que sempre foi tão boa repórter, como não percebeu nada? – se perguntava em seus pensamentos, sem parar. Sabia que no fundo seu encantamento cegou seus olhos. Como se sentiu tola, frágil! A ânsia de vômito veio tão forte, que não conseguiu segurar. Vomitou tudo, um grande e nojento vômito em cima de todos eles. O silêncio se fez. Todos imóveis. Paris depois desse dia nunca mais foi a mesma.

Os meses passaram e a segunda matéria não ficou boa, muito abaixo do grande talento de Lucia.

Então, ela tomou duas resoluções.

Deu o tal vestido vermelho para Isaura, a diarista, que ficou muito alegre com o presente e disse que a noite seria quente com o Carlão: – Ele diz que sou sua “piriguete”. Lucia riu e disse:

– Aproveita bem porque o estilo é “piriguete” mesmo – pensou que Carlão devia ter um pé interessante, mas isso ela não disse, é claro.

A segunda resolução foi tirar longas férias e conhecer o Japão, e foi para lá que foi, com foto do vestido vermelho em seu celular, que tirou antes de dá-lo. Estranho? Sim, mas nem tanto, era para nunca mais esquecer de como se sentiu por querer ser o que não era e para sempre lembrar que a vida precisa dos dois lados, o pessoal e o profissional. E se isso não acontece a contento, podemos ficar muito vulneráveis e nos apaixonar por qualquer bosta. Mas estranho mesmo era não perder a curiosidade sobre o pé do Costa, ops, do Bosta. Foi a única coisa dessa história que não ficou clara para ela, mas ela lembrava e ria olhando a paisagem pela janela do avião.

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Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde é a responsável pela autoria de todas as histórias do projeto. Publicitária, empresária, poeta e contadora de histórias. Divide seu tempo entre sua agência  Modo Comunicação e Marketing  www.modo.com.br, suas poesias, histórias e as diversas funções que toda mãe tem com seus filhos. 

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COITADINHA E A JANELA DA VIZINHA

shutterstock_155363555 - mulher e janela

Coitadinha tinha uma janela

marrom

A tinta não durava

descascava

Tinta de má qualidade

baratinha

 

Coitadinha se achava esperta

Adorava coisas baratinhas

Comprava MUITO

coisas baratinhas

INÚTEIS

feias

quinquilharias, muitas

mas, esperta que se achava,

baratinhas.

 

A tinta da janela descascava

A tinta do cabelo desbotava

A roupa não tinha caída

Os livros não importavam

 

Coitadinha tinha

03 “amigas”

01 “marido”

01 vizinha – sem aspas

 

A janela da VIZINHA não descascava

A janela da vizinha vivia ABERTA

A JANELA da vizinha era amarela

A janela da vizinha era maior que a dela

 

Coitadinha fofocava

Olhava a janela da vizinha

e fofocava

e procurava

lascas que não encontrava

 

Coitadinha se incomodava

Coitadinha sozinha chorava

10959308_10203700598545176_5268303932415920241_n Dri perfil

Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde é a responsável pela autoria de todas as histórias do projeto. Publicitária, empresária, poeta e contadora de histórias. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing www.modo.com.br, suas poesias, histórias e as diversas funções que toda mãe tem com seus filhos. Está feliz com suas janelas 🙂

 

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CONVERSA DEFINITIVA

shutterstock_8176741 Conversa definitiva

Oi, tudo bem com você?

(silêncio)

Acho que sim, não dizem que quem cala consente? Então entendo que tá tudo bem.

Voltando àquele assunto de ontem, eu já disse que essa textura me arranha, eu sei que você vai dizer que eu já disse isso, mas você ainda não fez nada, continua tudo igual, foi por isso que voltei no assunto e quero saber se você pensou, se refletiu, se pode mudar… sei lá, poxa, me fale alto.

(silêncio).

Continua sem dizer nada, imóvel, podia pelo menos argumentar, discordar que fosse, dizer qualquer coisa, mas não, fica aí com essa cara.

Não adianta, assim vai rachar, não vale ter somente cimentos e tijolos, no meu corpo tem sangue que corre nas veias, meu coração acelera, minha voz embarga, berro, falo baixo também, mas não deixo os anos me endurecerem como você.

Porra, fala alguma coisa… NADA, sempre NADA.

Imóvel, é assim que sempre fica, que é.

Continua aí com essa textura ridícula. Me agride, é fato, mas é fato também que te agride mais, um dia talvez você compreenda, mas pode ser tarde demais.

Acho que não irá compreender nunca, é mais seu estilo. Não vai falar nada?

(silêncio)

É, tô vendo que não tem conversa mesmo, é melhor eu seguir meu rumo, mas eu gostaria de dizer só mais uma coisinha.

Essa cor de gelo é deprimente, não lhe cai bem, não é atraente, sempre achei tão difícil te dizer isso, mas agora é hora, pelo menos você fica com a verdade.

Sim, essa é a minha verdade, o meu ponto de vista. Faça o que quiser com a informação, mas, se bem te conheço e acho que sim, nada fará com essa informação, continuará cor de gelo, que saudades tenho quando era amarelo vibrante.

Adeus.

Depois dessa conversa eu vou, alguém já tinha me dito que parede não responde e que também não corresponde.

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Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde é a responsável pela autoria de todas as histórias do projeto. Publicitária, empresária, poeta e contadora de histórias. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing www.modo.com.br, suas poesias, histórias e as diversas funções que toda mãe tem com seus filhos. Adora boas conversas 🙂

 

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A árvore, o tempo e ela.

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No meio da correria daquele dia, ela sempre estava correndo, contando o tempo para não perdê-lo. Sempre pensando no depois, se preocupava com tudo, para não faltar para ninguém que amava, mas naquele dia resolveu mudar o caminho…

O caminho no meio da tarde corrida.

Ela evitava passar por ali, a dor ainda era grande, mesmo depois de alguns anos. Fugia daquele percurso, mas ontem não, entrou naquela rua, parou na frente da casa que não existia mais – ela já sabia –, mas desta vez estava sem os portões.

Olhou o terreno de dentro do seu carro, caía uma chuva fina e o dia estava cinza. A árvore continuava firme, linda, no fundo do terreno.

Tão contida era ela, mas ali não se conteve, saiu do carro, pediu para o moço que limpava o terreno do lado – que agora eram um só – se podia ir até a árvore.

Andou devagar, o salto afundava na lama, aquela cena era incomum, ela sabia, cenas únicas, vividas em câmera lenta. Ela era a protagonista e naquele momento não quis saber do próximo instante, esqueceu de contar o tempo, esqueceu do que iria preparar para o jantar, dos óculos que tinha que levar para arrumar, do horário que marcou com a gerente. Só fez o trajeto devagar, sabia que era raro.

Chegou na árvore que continuava viva, rica, nascendo frutos. Encostou sua mão, fez uma prece. Chorou, de saudade, de emoção, nostálgica de algo que não existe mais. A árvore permaneceu, continuava forte. Os frutos estavam brotando, que emoção ver aquilo. Arrancou um galho, foi embora devagar, iria plantar.

O chuvisco bem fraquinho continuava, o moço, intrigado, perguntou:

– Acerola?

Ela olhou com lágrimas que teimavam em cair e só conseguiu dizer:

– Obrigada.

Entrou no seu carro, colocou o galho no banco do passageiro, respirou fundo, ligou o para-brisa.

Acelerou para o banco, tinha que pegar seu novo cartão, de novo voltou a pensar no que fazer para o jantar e em tudo que ainda tinha que fazer, mas o salto alto com terra denunciava algo sui generis.

Entendeu o tempo de uma forma muito clara, e ali, naquele instante, com aquela consciência, cara a cara com o singular, descobriu e entendeu o que significa quando dizem que novos dias nascem.

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Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde é a responsável pela autoria de todas as histórias do projeto. Publicitária, empresária, poeta e contadora de histórias. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing www.modo.com.br, suas poesias, histórias e as diversas funções que toda mãe tem com seus filhos.

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CONFISSÕES “DA ÚLTIMA BOLACHA DO PACOTE”

Sim, sou a última bolacha do pacote e preciso urgente fazer minhas confissões, estou cansada de ser tão malvista, preciso me confessar, todos confessam, tem confissão para tudo. Confissões de adolescente, de mulheres de 30, de homens, tem até confissão de órgão íntimo, então nada mais justo que eu – a última bolacha do pacote – me confessar.

Sim, preciso urgente fazer essas minhas confissões, afinal a minha imagem, essa que está na boca do povo, não é justa, ninguém está vendo meu lado.

Confesso que, por causa de toda essa falação, fui fazer análise. A fama por um lado é boa, mas ser taxada de forma tão antipática me incomoda profundamente. Confesso que estou tentando entender de onde esse boato surgiu, mas não achei explicação para isso.

Vou compartilhar meu doce coração com vocês. Sim, sou a última bolacha do pacote, é certo que sou gostosa, chego a dar água na boca de alguns, tenho recheio, aliás, tenho dois, morango e chocolate. Melhor ainda, sou waffer, não é pouco, não, não sou qualquer uma, sinceramente sou uma delícia, mas é só dessa forma que os outros me veem, ninguém vê meu lado sensível, ninguém vê o conteúdo do meu recheio, todo este meu sofrimento. Incomodo porque sou gostosa?

Sim, eu sofro, e aposto que ninguém imagina o porquê. Alguém se atreve? Sofro porque sobrei. Sobrei, sou a última. Estou sozinha e não sei para onde vou, minhas colegas, todas elas já foram para sua nova vida, já se renovaram, transmutaram, já experimentaram a delícia de serem saboreadas até o fim, mas eu não, ainda continuo por aqui, somente sendo desejada.

Pode ser que ninguém me queira e que eu vá parar em um lixo qualquer. Discuto muito isso na análise, meu analista me incentiva a ter o foco mais voltado para minhas qualidades, para eu ser autossuficiente e esquecer esta necessidade urgente que sinto de ser saboreada, pois ninguém quer uma bolacha, por mais gostosa que seja, desesperada. Meu Deus, o que faço então? Finjo? Porque confesso que ainda não aprendi essa lição e espero urgentemente ser devorada.

A questão de ser a última bolacha do pacote nunca foi fácil, fui a primeira a ser embalada, só tive uma vizinha a vida inteira e – pior – era chatésima, se achava a mais gostosa do pacote. Exatamente vivendo como eu, só a primeira bolacha, mas nunca conseguimos ser próximas e falar dos assuntos em comum, porém a situação dela ainda era melhor, foi embora logo, foi a primeira, penso que deve ser uma grande sensação ser a primeira… E as outras? Todas tinham mais companhia que eu, sempre duas vizinhas… Quantas vezes chorei olhando para a minha embalagem, só isso me sobrava.

Essa fama que roda o país me deixa péssima, mas confesso aqui, bem baixinho, que também me ajuda no ego ferido, de alguma forma parece que sou eu que não quero nada e prefiro continuar nessa situação, escolhendo quem vai me levar, mas a verdade não é essa, confesso aqui agora, abertamente, para vocês, não é nada disso.

Pareço inatingível porque sei que sou “bonita e gostosa” e meu lema é “sei que você me olha e me quer”. Meu analista diz que tenho que parar de me inspirar na letra das Frenéticas, mas ele não entende que frenética estou eu, que preciso urgente de uma boca loca que me queira devorar, cansei de ter somente que me achar.

Confesso, por fim, e no mais alto e bom som, cansei de ser metida, preciso mesmo é ser comida.

Então serei direta. Que tal você aí? Não quer experimentar?

Da gostosa e última bolacha de waffer recheada de morango e chocolate do pacote.

 

Adriana Chebabi

Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do Belas Urbanas onde é a responsável pela autoria de todos os contos do projeto. Publicitária, empresária, poeta e contadora de histórias. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing www.modo.com.br, suas poesias, histórias e as diversas funções que toda mãe tem com seus filhos.

Desenho bolacha: Synnöve Dahlström Hilkner