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Associação livre: o tempo da sessão de terapia das 20h.

 

Boa tarde, como está?

– Passei bem essa se semana, e você?

– Também. O que traz você aqui hoje?

– Bem, estive pensando sobre o tempo que gasto com o trabalho. Sabe, meu contrato diz que trabalho 44 horas, mas para me manter empregado, trabalho bem mais. Mas acontece que ninguem me pediu que fizesse serão.

– Interessante, me diga mais sobre isso.

– … é como se um medo tomasse conta de mim e eu, automaticamente, meio que inconscientemente, passasse a antecipar demandas, assumir responsabilidades e me empenhasse além do que meu cargo exige para aplacar esse medo.

– Você sente que isso o torna alguem notável na equipe? Alguem produtivo? Como você percebe o resultado desse investimento pessoal?

– Sim e não. Porque ninguem me parabeniza ou me compensa por esse esforço. Da mesma forma com que ninguem me pede que fique até mais tarde ou assuma demandas que não são minhas, ninguem me compensa por esse fato. Sinto que faço isso por medo de ser demitido…

– Mas sua empresa está promovendo cortes, ou ocorreu algum fato que abalou sua estabilidade em particular?

– Pelo contrário, tudo está estável. Parece que não há risco, mas eu sinto medo.

– Vamos suspender um pouco a ideia do trabalho, e vamos pensar no tempo isoladamente. Se você não estivesse mais tempo no trabalho, o que você poderia fazer com esse tempo?

– Ficar no trânsito é uma resposta? (risos) Falando sério, se sair no horário, provavelmente ficaria preso mais tempo no trânsito, mas…

– Mas?

– Mas chegaria mais cedo em casa.

– E como soa isso para você?

– Chegaria em casa e ficaria sozinho. Meu companheiro trabalha até tarde sempre. Ele sente o mesmo que eu. Teria que pactuar isso com ele. Meus filhos estariam em seus computadores jogando… sinto que ficaria com as paredes.

– As paredes não te agradam, não é? E amigos, você não gostaria de estar com eles?

– Não os tenho mais. Só tenho contato por redes, eles estão trabalhando, sendo produtivos, diferenciais em suas carreiras e vidas. Vejo que suas vidas são perfeitas nas postagens, mas quando falamos, reclamam das mesmas coisas que eu em relação ao tempo.

– Sim, não fazem diferença. De fato, a vida é meio indiferente. Todos estão ocupando seu tempo com alguma tarefa que não é delas e ao mesmo tempo não é nossa.

– Diga mais sobre.

– Parece que perseguimos uma imagem que vemos dos outros, competindo para sermos melhores. Parece que precisamos de sucesso, iminente e total, a todo momento e assim, ao mesmo tempo que postamos as coisas bonitas que fazemos, não usufruímos delas para além da própria postagem, porque no momento seguinte, temos que dar conta de pagar as parcelas.

– Diga mais sobre…

– Parece que essa opressão invisível pega a gente por dentro e nos força a sermos produtivos, disruptivos, criativos, bem-vestidos e exemplares, enquanto não damos conta nem de preparar um almoço saudável.

– Interessante, diga algo mais.

– Sabe, sinto que o fruto do meu trabalho não chega para mim. Não digo o trabalho na empresa, mas o trabalho mesmo, o meu esforço de vida. Porque ele atende a imagem social que sinto que devo emitir, e as inseguranças que tenho em atendê-la.

– Agora não estamos falando de trabalho, nem de tempo. Estamos falando sobre autoimagem e medos, correto?

– Acho que sim. Me parece que todos são melhores que eu. Não convivo pessoalmente com eles, apenas pelas redes. Mas me parecem. E isso me soa ameaçador.

– Agora estamos falando de sociabilidade e da vida reduzida ao digital…

– Verdade. Alguem posta algo, aquele post fica gravado por anos. Aquele foi só um segundo de sucesso daquele pessoal. Mas toda vez que acesso seu perfil, só encontro esses segundos de sucesso e nenhum de fracasso. Sinto que tenho que fazer o mesmo. Porém, pensando bem, se todas as pessoas deixam gravadas e publicadas os segundo se sucessos escondendo as horas de fracasso, isso cria um mundo visível extremamente opressor, já que não conseguimos viver pessoalmente, presenciando as nuances de suas vidas. Se eu pudesse presenciar de fato que todos temos momentos de vacilação, me sentiria melhor com meus vacilos… pena que não tenho mais tempo para conviver.

– É interessante o que você traz. Começamos a falar do seu trabalho, passamos pelo tempo, pela autoimagem e pela imagem do outro, pelas questões da vida social precarizada e voltamos ao fator tempo. Não que estamos em uma conversa circular, mas sim, constatando a complexidade desse fenômeno que não é apenas seu, mas coletivo. O que você pensa sobre isso?

– O que penso sobre isso? Penso que infelizmente, de todos os pontos que falamos hoje, o único fator que não possui alternativa é o tempo. Quando perdido, não se recupera.

Ao meu trabalho, posso em algum ponto negociar. Autoimagem, preciso mediar frente a imagem do outro, me perdoar mais. Preciso investir mais na minha vida social real, com quem amo, repensando minha relação com as redes. Mas o tempo, o tempo não para.

– Pois é, a sessão foi muito boa, mas infelizmente já são 20h50. A sessões passam muito rápido, não?

– Se sinto que meus 42 anos voaram… quiçá 50 minutos. Mas foram proveitosos como em meses não sentia. Posso fazer uma última pergunta?

– Sim claro…

– Seria o tempo é relativo?

– Talvez… relativo ao que fazemos dele? Precisamos testar essa hipótese. Inclusive, hoje atendo até as 23h. Talvez eu precise pensar nisso também.

– Caramba… É… Até a próxima semana.

– Até.

Crido Santos – Professor, Arte educador e Psicanalista. De tudo que fez na vida, o que faz a mais tempo é respirar e pensar o mundo a partir do jogo de palavras e imagens, buscando o que é coletivo, belo, justo e solidário. As vezes falha nessa tarefa, mas insiste, buscando deixar um registro poético de uma tentativa de sobrepor o individualismo competitivo que traz tanta danação as gentes desse mundo.
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Pessoas, instituições e mensagens abusivas

Temos cada vez mais discutido as relações abusivas sempre dentro das relações entre sujeitos da relação, tanto aspectos dos abusadores quanto das vítimas, um debate urgente e extremamente necessário. Nesse sentido, observamos, discutimos e disseminamos características que nos alertam sobre como identificar, evitar, combater e denunciar atitudes abusivas que aparecem no abusador, perpassam a relação, atingindo o abusado, provocando toda sorte de traumas, prejuízos e sofrimento.

A questão que coloco aqui é adicional a esse debate. Quando não há um sujeito no lugar do abusador, mas sim uma instituição ou mesmo uma mensagem abusiva, o que devemos fazer? A ideia aqui é pensar: quando essa entidade que abusa não é um indivíduo, como devemos proceder?
Podemos usar exemplo claro: O corpo de discussão em torno da violência domésticas moveu e move a sociedade a compreender os sinais precoces dessa ocorrência, ajudando pessoas a evitar situações e pessoas, a buscar ajuda e, em última instância, debater ferramentas sociais que possam tipificar criminalmente esse tipo de violência, coibindo e punindo os abusadores. Assim, surgiu, por exemplo, a lei Maria da Penha, que por sinal homenageia a cidadã que militou fortemente nesse debate, após ser vitimada por esse crime.

Mas quando o abusador não tem cara definida, perdemos o referencial e a potência dessas ferramentas sociais de informação e justiça. Quando instituições ou uma enxurrada de conteúdo informativo surge, congregando indivíduos com comportamentos abusivos validados por esses conteúdos e instituições, temos condição de punir pontualmente individuo por individuo ou devemos agir contra essas instituições e mensagens nefastas?

É importante aqui definir o que são mensagens e instituições: Mensagens são ideias traduzidas em discurso, em texto, voz, ações, imagens, vídeos e qualquer suporte que possam disseminar e defender um comportamento abusivo de forma impessoal. Mensagens são construídas por pessoas que, muitas vezes fazem parte de instituições organizadas. Já as instituições são grupos de pessoas que se organizam formalmente em torno de algum objetivo em comum e que, por algum interesse particular, disseminam e validam atitudes abusivas.

Instituições usam de mensagens para disseminar seus ideais, objetivos e ações numa relação umbilical e, por não serem sujeitos passiveis de punição direta pelo ato, podemos responsabilizar seus autores ou líderes, as mensagens e instituições ainda podem continuar agindo.

Um meme, um vídeo, uma montagem ou postagem podem conter uma mensagem abusiva. Um grupo político, religioso, de assistência social pode validar ações coletivas de caráter abusivo. Mesmo um arranjo familiar é uma instituição, onde mensagens podem circular com a validação moral necessária para abusos injustificados. Mensagens e instituições são complexas, podem ser ambíguas, confusas e contraditórias, mesmo que, em seu discurso e atuação, demonstrem coerência e até boas intenções.

O objetivo desse ensaio reflexivo é colaborar com o debate sobre relações abusivas, extrapolando a análise dos indivíduos que compõe a relação abusador-vítima, entendendo que também nos relacionamos com instituições, mensagens, ideias e outras entidades que não personificam da mesma forma as estruturas abusivas que formam nossa sociedade, merecendo atenções específicas, combates específicos e ferramentas de identificação e coerção desses abusos, buscando, um efetivo progresso que garanta uma evolução social para todos.

Crido Santos – Belo urbano, designer e professor. Acredita que o saber e o sorriso são como um mel mágico que se multiplica ao se dividir, que adoça os sentidos e a vida. Adora a liberdade, a amizade, a gentileza, as viagens, os sabores, a música e o novo. Autor do blog Os Piores Poemas do Mundo e co-autor do livro O Corrosivo Coletivo.
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A palavra da vez é Rizoma

Substantivo masculino. 1. MORFOLOGIA BOTÂNICA: caule subterrâneo e rico em reservas, comum em plantas vivazes, caracterizado pela presença de escamas e gemas, capaz de emitir ramos folíferos, floríferos e raízes; 2. FIGURADO: base sólida que legitima ou autoriza alguma coisa; fundamento, raiz.

Essa é a resposta que o Google trás quando perguntado. Essa palavra, de dois significados possíveis, dentro da acepção digital desse oráculo, é usada por muitos dentro do campo filosófico dos botecos como algo que lembra a forma da raiz (cheia de ramificações e distribuições ao redor do solo) e, por isso serve de metáfora a vários sentidos possíveis de reflexão.

A vida não tem uma linearidade. Não é reta, previsível ou facilmente plano-execução. Ela tem seus percalços, que por nós são desviados. Nossa vida, e nossa história, são cheias de ramificações, seja por mudanças simples de rotas ou por desvios em eventuais problemas, dilemas, dialéticas. A vida é, portanto, um rizoma.

O Google, como vimos, apresenta duas possibilidades de interpretação para essa palavra: Raiz rica em reservas e comum às plantas muito vivas, ou base sólida, legitimadora. A vida, por ser cheia de desvios de rota, vai criando no solo de nossa história um conjunto de caminhos por onde busca seu alimento e se abastece de nutrientes. A vida, portanto, a cada desvio de rota, consolida mais nossa estrutura, nossa firmeza. A vida, como rizoma, é rica.

Por muito tempo, pensei que os desvios de rota em meus sonhos seriam fraquezas. Por muito tempo, esses desvios criavam em mim uma sensação de fracasso. Desde que entendi essa palavrinha, tenho me botado a pensar: o que me fez desviar de uma rota senão a necessidade de encontrar soluções para problemas da própria rota, me tornando capaz de continuar. Seria isso menos legítimo? Talvez não.

Renunciar à história de nossas vidas, dentro dessa pequena reflexão, é renunciar a beleza da flor que, sustentada por mil platôs de caminhos desviados por debaixo da terra, encontra alimento para alcançar os céus. Imaginei minha flor vermelha, pois ela se tornou amarela. Encontrou outros nutrientes e se fez assim, bela. Não pela beleza que quis, mas pela beleza que a vida, em seus descaminhos proporcionou.

Que meu olhar veja na flor de cada um, não a beleza que ele aparenta ter desenvolvido, mas os nutrientes escondidos de uma vida de raízes lutadoras e vencedoras. Que assim seja.

Crido Santos – Belo urbano, designer e professor. Acredita que o saber e o sorriso são como um mel mágico que se multiplica ao se dividir, que adoça os sentidos e a vida. Adora a liberdade, a amizade, a gentileza, as viagens, os sabores, a música e o novo. Autor do blog Os Piores Poemas do Mundo e co-autor do livro O Corrosivo Coletivo.