Muitas pessoas me perguntam em silêncio como pude permanecer numa relação abusiva… Poucos realmente têm empatia pelo que passei e tentam se colocar em meu lugar…. alguns se voluntariam a psicólogos repletos de conselhos “certeiros”…. umas duas ou três tentam entender a fundo as situações pelas quais vivi… ninguém sabe na verdade o que eu senti ou sinto até hoje…. eu mesma procuro diariamente validar meu passado, entender, ressignificar dentro de mim pra então, seguir adiante…. absolutamente ninguém compreende as dores de se viver uma relação abusiva e a dificuldade que é sair dela, só eu e você, que eventualmente passou por isso também… No início tudo parece que vai passar, você se enche de esperança e coragem achando que pode mudar a pessoa que está com você… mas ninguém muda ninguém… as pessoas são o que são… o que muda é a nossa capacidade de enxergar… viver na pele o abuso é uma tortura sem data pra acabar… teve um momento em minha vida que não havia um dia que fosse em que eu não chorava… vivia triste, com medo e ainda assim me achava corajosa… não gostava de me colocar no papel de vítima, então de certa forma eu tentava “mascarar” as situações… eu mesma me enganava… tinha um véu em meus olhos e nada via além… perdi meu amor próprio, minha liberdade, meu direito de ir e vir… vivi presa numa vida, em ciclos eternos… e com isso a coragem vai sumindo, não tinha forças pra sair daquela relação… só sabia ter medo… e foi em um Natal, 25 de dezembro, que com a presença da minha mãe em casa, tive coragem para tomar as rédeas da minha vida de volta…. mas não pensem que foi fácil, não foi nada fácil… vivi dois anos de medos e perseguições de um homem que não aceitava o fim da relação… abri mão de bens materiais, eu achava que estaria “comprando” a minha paz, mas a paz não tem preço… então mudei… larguei emprego, casa, uma vida estável e vim para longe… perto da minha família, perto dos meus…. a cada página virada nessa minha história, sinto mais orgulho de mim… por quem eu fui, por que eu sou e principalmente, por quem estou me tornando…. estou me resgatando, pedaços meus espalhados com o passar do tempo… resgato o que eu era para construir quem eu sou… hoje sim, tenho as rédeas da minha vida em minhas mãos e não permito que ninguém tente tomá-la novamente de mim…
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Luz sobre as oprimidas
Desperta-me atenção tudo o que está por trás dos relacionamentos abusivos. A lista é certamente finita, mas penso que o tema daria um livro, tamanha a quantidade, diversidade e amplitude de detalhes sórdidos.
Ousaria dizer, antes mesmo de refletir, que tudo gira em torno de poder. Poder de status social, midiático, cultural, político, financeiro, de gênero sexual, de raça e cor, étnico e tantos outros, incluindo alguns fantasiosos.
Esse poder carrega uma mensagem subliminar: “Se sou ‘superior’, tenho ‘direitos’ sobre você, o que faz de você ‘meu súdito’, portanto ‘submeta-se’.”
Retomando o aspecto do poder, gostaria de jogar luz sobre a ausência dele, quando olhamos para a figura feminina, no processo de relacionamento abusivo. Esta é vítima, interesseira ou ‘vagabunda’, na conotação sexual, infelizmente, aos olhos da sociedade ainda “machista”.
Assisti ao documentário Johnny Depp X Amber Heard, na Netflix, e os absurdos do caso me deixaram enojada.
Não vou julgar, aqui, as partes e sequer emitir opinião sobre o veredicto ou sobre as agressões verbais ou físicas, do casal. Agora…, um homem famoso, bonito, com enorme fã clube, bilionário, de fama mundial (Johnny Depp) leva a júri sua ex-esposa, por difamá-lo.
A Corte ‘decide’ filmar todo o julgamento e colocá-lo, em tempo real, na internet.
O grande e maciço público fã de Johnny Depp é feminino, o que fez com que mulheres do mundo todo gritassem a seu favor, durante as audiências, à porta do fórum, em vídeos pelo tiktok e em diversas redes sociais, sem se importarem com as verdades e mentiras, do caso.
Em suma, o mundo feminino massivamente apoiou e favoreceu a opinião do júri popular, que defendeu Johnny Depp, contra uma mulher, apequenada por todo aquele “circo de poderosos”.
Posteriormente, levantou-se informações que ficaram protegidas no processo, pela juíza, consideradas como “irrelevantes” no caso, como o fato de ela ter sido agredida por ele, num vôo particular, cujo testemunha mentiu, jurando falso testemunho.
Causam-me estranheza todas as atitudes da juíza. Além da exposição “ao vivo”, ocultar diversas informações que colocaram a vítima no papel de mentirosa, favorecendo o agressor em todas as situações.
Gostaria de conseguir avaliar o efeito deletério de todo esse desastre público sobre os homens agressores e as mulheres por eles oprimidas. Qual foi a autorização subliminar que tantas mulheres, ao redor do mundo, deixaram aos opressores?
Fico imaginando quantas daquelas mulheres que apoiaram e gritaram a favor de “Depp”, não foram oprimidas e abusadas nos últimos 12 meses…
E a maior reflexão que fica, para nós, mulheres, é: Apontar o dedo para os opressores é o único e o primeiro caminho?
Será que não devemos começar por olhar para a nossa base familiar e nossa base de amor, como fazemos nossas escolhas e como agimos diante de atitudes indevidas? Olhar com carinho para a nossa força interior, nosso valor e para o prazer de uma relação equilibrada, para sairmos do papel de oprimidas?
Marisa da Camara – Bela Urbana, Administradora aposentada, que hoje atua em suas paixões: a escrita e a radiestesia. Crê nas energias da natureza e é amante da vida, dos seres humanos e ‘doidinha’ por seus 4 netos.
Bem que se quis
No início dos anos 90 ele passou por mim. Era meio enigmático. Feio, sem nada que justificasse uma atração física. “Mas, quem irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?”
Meses depois, nos reencontramos na contramão e a paixão explodiu.
Olhando agora, com distância e maturidade, não era para ter acontecido se tanto eu quanto ele soubéssemos respeitar nossas vulnerabilidades. Limites desconhecidos, tragédias anunciadas.
Ele era um cara mais velho, recém-formado, machista, inseguro e que pela primeira vez na vida tinha um salário digno que lhe proporcionava o contato com lugares e pessoas mais sofisticadas do que o habitual.
Eu, bem nova, carente, baixa autoestima, inexperiente, criada sob a crença das mulheres abnegadas, que não expressam descontentamento, nem interesse, mesmo em crise de dor.
Nossa primeira noite juntos foi num dia em que eu bebi até desacordar e quando acordei sabia que já não era a mesma, nem sei dizer o que senti.
Lembro de voltar a pé para minha casa, numa distância de uns dois quilômetros, com a sensação de que todos os maus julgamentos eram para mim.
Doeu muito, mas, ao mesmo tempo, me veio a satisfação ilusória de que talvez fosse o começo de uma relação que eu desejava tanto.
O namoro era escondido. Ele ia à minha casa e lá era o cara carinhoso, divertido e protetor que eu imaginava querer. Da porta para fora, ele me ignorava, ficava com outras na minha presença e adotava um comportamento que me fazia parecer louca.
Os nossos amigos eram comuns. Para eles, o nosso envolvimento era casual ou só existia na minha cabeça ou pior, só acontecia quando eu forçava a barra.
Eu me tornei a menina da janela, que esperava, esperava, esperava, para de vez em quando sorrir.
Cansada, pedi que ele tomasse uma decisão e foi então que ele se foi, sem caminhos para voltar. Eventualmente me ligava e se masturbava ao telefone. Me constrangia. Eu nunca contei para ninguém.
Foram meses de muito sofrimento e solidão. Eu definhei física e socialmente. Tive anorexia nervosa, não conseguia comer e, enquanto isso, os amigos se afastavam porque achavam o meu sofrimento exagerado.
Me humilhei algumas vezes na tentativa de reatar o que nasceu desatado, solto e incompatível.
Cheguei a pensar em desistir da vida. Por milésimos de segundos, mudei de ideia e fui lentamente, muito lentamente mesmo, me recuperando do luto de mim mesma.
Não foi o fim de um amor, foi a revelação de um caso de desamor que me marcou profunda e dolorosamente, afetando as minhas relações posteriores. Todas as relações: com minha família, com meus amigos, com namorados e, até hoje, 30 anos depois, casada e com filhos, sinto o peso dessa rejeição em meu coração.
Claro, tive tempo e terapia para ressignificar os abusos que me aconteceram. É como uma cicatriz que já não dói, pouco aparece, mas quando você olha sabe o tombo que a causou. É isso, uma cicatriz.
Sinceramente, não sei se ele sabe o mal que me causou. Na época era um comportamento muito comum entre os homens que precisavam se firmar como tais. A sensibilidade masculina era subjugada e a métrica da virilidade era a cafajestagem.
Hoje, se eu pudesse aconselhar a menina da janela, diria a ela para alimentar a coragem de dizer o que sente e não condicionar sua felicidade à chegada de alguém.
Porque para ser feliz depois de tudo eu descobri que amar-me é o meu superpoder!
Anônimo – Mulher, brasileira, mais de 50 ano, não quis ser identificada.
SOS – ligue 180
Pessoas, instituições e mensagens abusivas
Temos cada vez mais discutido as relações abusivas sempre dentro das relações entre sujeitos da relação, tanto aspectos dos abusadores quanto das vítimas, um debate urgente e extremamente necessário. Nesse sentido, observamos, discutimos e disseminamos características que nos alertam sobre como identificar, evitar, combater e denunciar atitudes abusivas que aparecem no abusador, perpassam a relação, atingindo o abusado, provocando toda sorte de traumas, prejuízos e sofrimento.
A questão que coloco aqui é adicional a esse debate. Quando não há um sujeito no lugar do abusador, mas sim uma instituição ou mesmo uma mensagem abusiva, o que devemos fazer? A ideia aqui é pensar: quando essa entidade que abusa não é um indivíduo, como devemos proceder?
Podemos usar exemplo claro: O corpo de discussão em torno da violência domésticas moveu e move a sociedade a compreender os sinais precoces dessa ocorrência, ajudando pessoas a evitar situações e pessoas, a buscar ajuda e, em última instância, debater ferramentas sociais que possam tipificar criminalmente esse tipo de violência, coibindo e punindo os abusadores. Assim, surgiu, por exemplo, a lei Maria da Penha, que por sinal homenageia a cidadã que militou fortemente nesse debate, após ser vitimada por esse crime.
Mas quando o abusador não tem cara definida, perdemos o referencial e a potência dessas ferramentas sociais de informação e justiça. Quando instituições ou uma enxurrada de conteúdo informativo surge, congregando indivíduos com comportamentos abusivos validados por esses conteúdos e instituições, temos condição de punir pontualmente individuo por individuo ou devemos agir contra essas instituições e mensagens nefastas?
É importante aqui definir o que são mensagens e instituições: Mensagens são ideias traduzidas em discurso, em texto, voz, ações, imagens, vídeos e qualquer suporte que possam disseminar e defender um comportamento abusivo de forma impessoal. Mensagens são construídas por pessoas que, muitas vezes fazem parte de instituições organizadas. Já as instituições são grupos de pessoas que se organizam formalmente em torno de algum objetivo em comum e que, por algum interesse particular, disseminam e validam atitudes abusivas.
Instituições usam de mensagens para disseminar seus ideais, objetivos e ações numa relação umbilical e, por não serem sujeitos passiveis de punição direta pelo ato, podemos responsabilizar seus autores ou líderes, as mensagens e instituições ainda podem continuar agindo.
Um meme, um vídeo, uma montagem ou postagem podem conter uma mensagem abusiva. Um grupo político, religioso, de assistência social pode validar ações coletivas de caráter abusivo. Mesmo um arranjo familiar é uma instituição, onde mensagens podem circular com a validação moral necessária para abusos injustificados. Mensagens e instituições são complexas, podem ser ambíguas, confusas e contraditórias, mesmo que, em seu discurso e atuação, demonstrem coerência e até boas intenções.
O objetivo desse ensaio reflexivo é colaborar com o debate sobre relações abusivas, extrapolando a análise dos indivíduos que compõe a relação abusador-vítima, entendendo que também nos relacionamos com instituições, mensagens, ideias e outras entidades que não personificam da mesma forma as estruturas abusivas que formam nossa sociedade, merecendo atenções específicas, combates específicos e ferramentas de identificação e coerção desses abusos, buscando, um efetivo progresso que garanta uma evolução social para todos.
Crido Santos – Belo urbano, designer e professor. Acredita que o saber e o sorriso são como um mel mágico que se multiplica ao se dividir, que adoça os sentidos e a vida. Adora a liberdade, a amizade, a gentileza, as viagens, os sabores, a música e o novo. Autor do blog Os Piores Poemas do Mundo e co-autor do livro O Corrosivo Coletivo.
Sobre Manu, vejam só.
Dia Internacional de combate à violência contra a mulher (que deveria ser todo dia!).
Alerta de possível gatilho gatilho. Aborda violência.
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“No Dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num ato totalmente desumano.”
Há quem diga ainda que se trata de lenda. Vou então dividir uma verossímil “historinha”:
Era uma vez uma Mulher, só mais uma entre tantas que tem por aí. Não fora carbonizada no referido incêndio que fez da cor lilás (a mesma do tecido que estava na linha de produção por ocasião da barbárie) o símbolo de uma luta sem fim. A luta por visibilidade livre de falsas validações. Vamos chamá-la de Manu.
Manu era assim, feita de paradoxos humanos. Feita de doçura e um tanto de fúria também, adicionado ao medo, que mesmo estando ali, não a impedia de avançar em seus sonhos. Manu gostava de Arte, Manu gostava de dançar, Manu gostava de pintar, bordar e comer mousse de chocolate. Manu gostava de trapezistas, sempre torcia para que asas brotassem no instante final. Gostava de leões e pequenos insetos, principalmente aqueles vermelhinhos com bolinhas pretas. Manu gostava de crianças e de contar histórias (para crianças e adultos). Manu sonhava de olhos abertos e por vezes vivia de olhos fechados quando o medo vinha lhe visitar… depois abria esses mesmos olhos e continuava a andar.
Um dia Manu resolveu ser mãe. Manu nunca trabalhara em uma fábrica. Minto: Trabalhara uma vez numa fabriqueta de pizzas onde a meta era congelar mil disquetes de mussarela por dia. Tinha como companhia seu constante Sonhar. Sonhava com família, mesa posta, janela em forma de arco, amor e comunhão. Sonhava em ser mãe. Era quase ingênua, afogada em um pueril romantismo.
Um dia, se descobriu grávida. Como grávida? Oras, como engravidam a maioria das mulheres… contou a novidade ao então “companheiro”.
“Manu, tem certeza de que quer ter esse filho?”
“Claro, querido.”
“Não vai ser fácil.”
“Não conto que seja fácil.”
“Ok”.
Esse “ok” lacônico foi o anúncio de tempos de guerra. Enquanto a barriga de Manu crescia, rumo ao nascimento de uma “Manu-mãe” e sua menina (havia uma garotinha dentro dela), seu companheiro enlouquecia. Parecia vibrar com a gravidez, mas não raro, era tomado de acessos de ódio.
“Manu, você não é a mãe certa pra um filho meu. Você sonha demais, Manu, o que você vai ensinar pra essa criança? Arte?”
“Vou ensiná-la a ser feliz”, respondia Manu entre enjoos, vômitos e sorrisos a cada pontapé da criança.
“Ok”.
O “companheiro” começou a enlouquecer mais. Primeiro, botou-a na rua com uma barriga de quase seis meses:
“Vá embora, Manu, senão te encho de porrada. Não estou preparado.”
“Estou grávida…”
“Problema seu”.
E lá se foi Manu, sem lar nem lastro, uma mochila nas costas e a certeza de que seu bebê veria a luz. Dormiu em bancos de postos de gasolina, tentou fugir para outro estado, voltou, dormiu sobre nacos de papelão e sob o frio de chuvas finas. E a barriga teimava em crescer, protegidas pelas mãos de uma Manu em constante estado de prece.
Um dia, o “companheiro”, movido pela vergonha(?), chamou-a de volta “pra casa”.
“Manu, aqui é seu lugar.”
A assustada Manu voltou.
“Manu”- ele começou -“agora que você vai ser mãe, tente ser mais discreta… mãe cuida de criança. Mãe não faz arte”.
Olívia nasceu. Dezoito horas depois de a bolsa estourar. Entre estagiários que dividiam uma pizza na sala do pré-parto, bem na Praça Mauá. Sem analgesia, veio alegria à vida de Manu.
Manu deu peito ainda na mesa de parto. Manu nasceu “Mãe” junto com sua menininha de olhos vivos e muita fome de leite. Olívia era sua Arte maior.
Manu espalhou arte por toda parte: Tons lilases, amarelos e rosas no quarto da menininha. Músicas de ninar em várias línguas de um cd encontrado no Centro: até em iídiche. Havia uma atmosfera de sonho na nova realidade.
Manu voltou a trabalhar aos nove meses de Olivia. Era cenógrafa. Quando não estocava o próprio leite, levava sua pequena para as coxias de teatro. Não tinha babá e queria ver a filha crescer sob seus olhos.
Um dia, chegou em casa e botou a pequena já adormecida no berço. Tomou de seu companheiro o primeiro grande tapa na cara: “Isso não é um jeito certo de ser mãe”.
Manu se recolheu ao quarto, onde trancou-se com a filha enquanto seu companheiro rumava porta a fora para tomar “uns tragos”. Era muito difícil ser pai…
Após sucessivos tapas na cara, Manu foi evitando o espelho. Deprimiu, parou de trabalhar, foi vista como inútil por parentes distantes.
“Meu projeto foi aprovado… aquele roteiro de cinema”… disse um dia Manu, Olívia já com um ano e meio.
A resposta veio em forma de soco. Depois vários, seguidos de chutes. Um dente a menos. Uma lesão no crânio feita a pontapé que não chegou a atingir a meninge. Cusparadas sobre todo o corpo. Ofensas rebuscadas, de “puta” à “louca”. Havia sangue em todo o assoalho. Uma vizinha entrou na sala que não estava trancada.
“Corre, Manu! Pra minha casa!”.
Manu pegou a chorosa Olívia e ganhou a rua. Teve medo de ir à polícia e nunca mais voltou. Demorou a voltar até para si mesma. Também nunca separou-se da filha. Era seu vínculo com a Vida. A Arte foi voltando aos poucos e a Coragem também. Conquistou uma casa com janela em forma de arco, que se não tinha príncipe, ao menos não era proibido sonhar. Por muito pouco, não fora carbonizada. E nunca mais se deixou “apanhar”.
Em um eventual encontro com seu ex-companheiro, não teve dúvidas ao ser ameaçada: polícia e medida protetiva. Não acabaria em brasa nem carvão. Tampouco seria reduzida à mais uma história silenciada em tantas paredes protegidas por hipocrisias. Agora, só lhe interessava Vida.
[Não é mais necessário o consentimento da vítima, muitas vezes paralisadas pelo medo, para denunciar todo tipo de violência contra a mulher. Silêncio pode matar. Denuncie: Disque 180. Quantas “Manus” existem por aí?]
Eu escrevi este texto há dez anos atrás. E hoje posso dizer que a Manu sou eu e potencialmente, qualquer uma de nós.
Claudia Tonelli . – Bela Urbana, gosta de desenhar e escrever compulsivamente, contar boas histórias e maternar plantas e gatos, que a ajudam a lidar com o ninho vazio. Curte queijos: quanto mais “fedidos e mofados”, mais gostosos.
Precisamos falar sobre relacionamentos abusivos sempre
Começamos hoje uma nova série aqui no Belas Urbanas, uma série que já foi feita, uma série que virou um livro, uma série que virou várias rodas de conversas e palestras, mas continuamos a precisar falar sempre sobre relacionamentos abusivos. Não é necessário dizer o motivo de continuarmos a falar, está nos noticiários diariamente o aumento das violências domésticas e de tantas outras.
Violências armadas, criminosas, feminicídios, estupros, assassinatos de crianças, casos de pedofilia… um show de horrores que, de tão frequentes e comuns, vão endurecendo corações e, por endurecem, sendo normalizados.
Como assim? Que sociedade é essa que se coloca de forma tão negligente contra essas agressões?
Com certeza, uma sociedade omissa, calada, apagada, onde as pessoas lutam pela sua sobrevivência diária e não sobra tempo e ânimo para mais nada. Sim, isso pode ser uma das respostas, mas não é só a única, é também a cultura do silêncio, do dito popular “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Há algumas décadas, aqui no Brasil, fomos silenciados, por medo, por repressão, tempos de ditadura e isso foi calando as vozes, fomos emburrecendo como sociedade… porque conversa e debate geram crescimento, compreensão… ideias contrárias debatidas enriquecem as mentes para a abertura de novos caminhos e para consensos democráticos, mas, quando tudo isso vai ficando à margem, empobrecemos o todo, a sobrevivência e a força do egoísmo imperam.
O que é um abuso, afinal? São tantos e em tantos graus e esferas de relacionamentos que caberia em diversas séries fragmentadas. Por enquanto e agora, falaremos de várias, sem especificar somente uma única.
Sempre digo, saber é poder, poder para fazer boas escolhas, poder para se defender, poder para ser usado em prol de todos, e só quando esse todo estiver equilibrado é que as coisas serão diferentes e melhores. Pode ter certeza, é preciso um coletivo mais saudável, pacífico, aberto a diálogos, culturalmente próspero.
A série está sendo construída. Deixo o convite para quem quiser participar e escrever sua história. Deixo também o convite para empresas que queiram disseminar o conhecimento e levar esse tema para ser trabalhado ou mesmo para apoiar nosso projeto, podem entrar em contato comigo pelo e-mail: adriana@belasurbanas.com.br.
Termino com uma frase de John Lennon, mas mudei para o feminino. “Você pode dizer que sou uma sonhadora, mas eu não sou a única”.
Vem comigo, podemos plantar boas sementes.
Adriana Chebabi – Bela Urbana, sócia-fundadora e editora-chefe do Belas Urbanas, desde 2014. Publicitária. Roteirista. Escritora. Curiosa por natureza. Divide seu tempo entre seu trabalho de comunicação e mkt e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa.
O melhor do caminho é caminhar por ele
Direta, esquerta. Para.
Atravessa, segue em frente, contorna, marcha a ré, esquerda de novo. Para.
Meia-volta, deixa passar, subida, prova de morro.
Rua sem saída. Volta.
Descida íngreme. Pneu furado. Troca.
Estrada de terra. Asfalto.
Coloca primeira não deixa morrer. Segunda, terceira, quarta, quinta.
Radar. Vai com calma. Dá tempo.
Gasolina ou álcool? Dúvida cruel. Qual é a melhor escolha? Decide.
Segue em frente. Congestionamento. Faz parte.
Cabe mais um?
Derrapa, roda, “ta tudo sob controle”.
Atenção.
Bebida e direção não combinam. Acidente ao lado.
Paralelepípedo. Buracos na pista.
Animais na pista. Cuidado.
Ao lado, as paisagens diversas.
A trilha sonora é diversa também.
Chegou. Desliga.
O melhor do caminho é caminhar por ele.
Adriana Chebabi – Bela Urbana, sócia-fundadora e editora-chefe do Belas Urbanas, desde 2014. Publicitária. Roteirista. Escritora. Curiosa por natureza. Divide seu tempo entre seu trabalho de comunicação e mkt e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa.
Mais vida no caminho
Hoje despertei reflexiva sobre a finitude da vida.
Não necessariamente da minha, mas de tudo o que há.
Fixo o olhar sobre um sofá que em família abastada já teria sido devorado por uma caçamba, mas por sua boa estrutura me empenho em dar-lhe novas cores e novas casas.
Observo em meu entorno cadeiras revestidas, poltronas em capas novas, o antigo carrinho de chá restaurado e tantas outras peças cheias de ‘vida’.
Certa vez, deixei escapar um pires de um lindo jogo de café, pintado à mão, que se espatifou no chão, reduzindo-se a minúsculos cacos. Uma fatalidade que chegou a ser-me dolorida.
Hoje peguei a manga de um vestido que reformei e, dela, fiz um joguinho das 5 Marias, para levá-lo à minha neta de 4 anos.
Vez ou outra deparo-me com um objeto ‘novo em folha’, contrapondo com os antigos e restaurados, e o associo aos bebês de filhos e sobrinhos que vão renovando a linhagem familiar, em meio a tios e avós.
Nesse estado reflexivo, observo que a finitude da vida está fortemente ligada à manutenção, renovação e cuidados. Exceto em casos de fatalidades, claro!
Tenho um bom zelo por minha vida e talvez isto explique o gosto por repaginar e reformar coisas.
Devolver vida e utilidade aos objetos é como olhar para o meu interior, me reconstruir e dar mais vida ao meu caminho.
Marisa da Camara – Bela Urbana, Administradora aposentada, que hoje atua em suas paixões: a escrita e a radiestesia. Crê nas energias da natureza e é amante da vida, dos seres humanos e ‘doidinha’ por seus 4 netos.
Traque, treco, triqui , troco, truco
Viver é sonoro, faz Traque, Treco, Triqui, Troco, Truco, a vida não é de nenhuma forma silenciosa, ela é barulhenta, cheia de ruídos ensurdecedores e silêncios constrangedores.
Esta história é sobre sobre uma pessoa linda que teve sua vida mesclada com outros universos, leitora voraz, via e ouvia os personagens de seus livros, escutava cada palavra, cada ideia, sentia a brisa e viajava por entre cidades, países e reinos encantados, mundos fantásticos e seus personagens, aventuras e desventuras, acompanhou suas provações, amizades e amores avassaladores. Fez tudo que se pode fazer junto a literatura.
No cotidiano real foi esposa, mãe e vó, falava baixo, tinha voz suave e melodiosa que nunca proferia palavrões; teve uma vida humilde, honesta e correta, não conheceu tantos lugares, não teve o amor avassalador dos livros, seu homem abusou da regra três e partiu; mas ela veio nesta vida pra amar e o fez com maestria, construiu amizades sólidas e sinceras, e amou os filhos que a vida lhe deu.
Sua saúde não era das melhores, tinha um Triqui Triqui uma tal de bronquite, que a presenteou com seu gatinho interior que miava em certas estações e silenciava com as inalações; com o tempo, o Triqui Triqui virou um Treco chamado asma, e, como a vida e um agregar de experiências, após seis décadas convivendo e recebendo passivamente o Troco de fumaça dos homens de sua vida (seu pai e um marido eram tabagistas), foi quando em certo ano, o Triqui, o Treco e o Troco unidos, se tornaram ruidosos demais, deram seu golpe de Truco, e ela foi internada com diagnóstico de D.P.O.C. Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica.
No Hospital, neste ano, pela primeira vez foi apresentada a Traque, devido uma longa permanência entubada na UTI precisou ser submetida a uma Traqueostomia , e após longos 50 dias pode se libertar da Traque e voltar pra casa pra conviver apenas com o seu trio da Triqui, do Treco e do Troco unidos , e claro , com seu gatinho interior que agora não se limitava a algumas estações, e vinha miar e ronronar diariamente, requisitando banhos de inalações e determinando que o ritmo da vida agora seria de Tartaruga, tudo bem lento, pra não chiar, pra não miar, pra não cansar.
Graças ao universos dos livros, a “Tartarugues” da vida real não a limitou, voltou a voar, amar, viajar e aventurar-se por mundos sem fim, a sua voz ecoava e fazia barulho e manifestava o infinito universo que havia dentro de si. Contou suas histórias, deu sua opinião, defendeu posições e declarou seu imenso amor. Amiga verdadeira, não desamparou em conselhos e afeto aqueles que a cercam.
Mas, apesar dos cuidados realizados, o seu trio da Triqui, do Treco e do Troco unidos deram um novo golpe de Truco e determinaram que voltasse ao hospital, onde junto com seus filhos completou seus 80 anos. Novamente o Truco trouxe a Traque de volta, aparentemente de forma definitiva, desvelou-se uma estenose de traqueia e um bócio mergulhante que tirou a luz de sua traqueia em 90 por cento , sendo agora a Traque vital pra sua vida.
A Traque veio pra casa e agora temos os novos ruídos provenientes desta união “ traque, treco, triqui, troco e truco”, com experiências sonoras de secreções que se movimentam e das técnicas de aspirações protetivas, sua voz melodiosa não está mais presente aos ouvidos de quem a conhece, surgiram novas formas de comunicação, uma campainha sonora que chama ao longe, o dedilhar das unhas , o estalado da língua como que um cavalinho a galope e os beijinhos estralados que nos chama o olhar pro seu lindo sorriso. Agora sua voz é silenciosa, que fala sem som, a nossa capacidade de fazer leitura labial preservou sua voz, ela fala em silêncio e nós lemos sua voz, seus lábios, seu olhar, seu sorriso e ela irradia amor.
Saibam e aproveitem ! O Viver é sonoro ! Traque, Treco, Triqui, Troco, Truco, serão sempre desafios; mas a vida não é de nenhuma forma silenciosa, ela é barulhenta, cheia de ruídos ensurdecedores e silêncios já não mais constrangedores. Amar faz muito muito barulho! Te Amo!
Thelma Carlsen Fontefria – Bela Urbana, psicóloga, mãe de Isabella, 2 cães, 1 gata, 1 afilhada, 2 gerbils netos, mora em Santos, tentando manter a sanidade neste tempos de um Brasil tão distópico.
Aquele medo inventado
Tenho feito um caminho de volta à tudo aquilo que arrancaram de mim sem piedade, de
maneira brutal. Tenho lido minha história, arremessada em meus olhos, como se fossem
lanças que se perderam em algum lugar. Um retorno certo e nada frágil. Quero saber de mim.
Lembro muito bem de ouvir, diversas, inúmeras vezes, quando criança, que eu morria de
medo do mar, que me afastava dele e me virava para não vê-lo, em todas as viagens à praia.
Existem fotos antigas em que estou sentada de costas para o mar, brincando sozinha com
meus castelos na areia. E isso me bastou para acreditar que era um temor, sem nenhuma
explicação. Cresci acreditando em algo que nem me pertencia, e durante outras visitas à
praia, me colocava na defensiva, na imagem autoritária de que eu precisava evitá-lo a todos
custo, afinal, era como uma ordem não poder admirá-lo.
Nesse percurso de tirar todas as vendas que foram colocadas, algo apertava o meu peito e
me dizia:”vá ao encontro dele”. E eu fui, no final do ano passado. Fui diferente de tudo que
havia em mim, sem as ordens dadas, sem os comandos estabelecidos e cruéis. Fui livre!
Tenho estado livre! As mordaças estão ficando para trás.
Queria poder descrever em palavras o encontro que teve início com o som arrebatador das
ondas numa noite quente…Um som de monstro alinhando os pulmões e jorrando sangue de
águas. Pensei ficar surda por alguns instantes, mas fechei os olhos para ouvir aquela
imensidão adentrando os meus desejos mais indiscretos. Aquele som era meu, me pertencia,
cada gesto da sua onda aterrorizante e bela. Era eu, alí…inteira…
Ofegante, fui me aproximando e admirando cada detalhe. Deitei na areia, de roupa mesmo,
até sujar cada fio dos cabelos. Fiquei entorpecida, alucinada, estendida, embriagada do álcool
que não bebo. Que visão era aquela? Orfeu materializado no mar.
Quem foi o estúpido que me tirou o direito de amá-lo, perdidamente?
Algumas pessoas se autorizam a serem cruéis e fazem dos nossos melhores sonhos as suas
certezas mesquinhas e perversas. Eu sei quem foi, e nem caberia aqui dizer, pois o que me
importa é a verdade que existe em meu âmago e entre os meus ossos. O caminho agora é
todo meu.
Após a visita, tive que deixá-lo…trazendo cada quebra de sigilo das ondas entre as minhas
pernas e o ventre. Eu nasci naquele momento, eu pari meu amor secreto.
Trouxe a certeza de que um dia eu volto para ficar, coloco uma cadeira bem de frente para
ele, no escuro de qualquer noite quente ou fria, isso não importa, e fico olhando sem
descansar, fico ouvindo seu temor em meu silêncio de não morte, permaneço pálida de tanto
querer, me alinho como um colo, me entrego como eu posso. Afinal, somos amantes.
Vontade de olhar para o mar e dizer:”eu não sei nada sobre você, mas entendo a sua
imensidão”.
Vou morar no horizonte dos meus olhos.
Aquele medo inventado foi para judiar dos meus sonhos.
Hoje, ninguém tira mais nada de mim, muito menos me dopa de incoerências e flagelos. Só
a gente sabe o que carrega, ninguém mais.
Há mar dentro do meu coração machucado, um mar que me leva, me busca e me lava. Ando
lavando as feridas que nunca foram minhas…Ando ao contrário, na contramão.