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Morro do Chapéu

Era um lugar distante,
qualquer bússola não era precisa,
de tantos minérios ao redor…

Os girinos, filhotes de sapos
que ainda não eram adultos
para nos dar algum tipo de sensação esquisita,
moravam no lago, ali,
eles eram capturados em garrafas de Coca-Cola que ainda eram de vidro.
Deveriam ter cobras nesse lago,
mas éramos crianças,
tudo era permitido na nossa fantástica caixa de imaginação.
Como era boa aquela neblina,
que se confundia com nossas galochas,
aquele cheiro de orvalho da manhã,
aquela tarde de granizo nas nossas costas,
batiam com força e machucava,
mas nossa alegria era maior… só brincadeiras!
Ah, a inocência… doce inocente.

As mamonas quase assassinas
faziam parte do estilingue,
só na espera de alguém passar…
éramos sem tempo para nos definir,
éramos infantis na sua mais querida infância.

Macarena Lobos –  Bela Urbana, formada em comunicação social, fotógrafa há mais de 25 anos, já clicou muitas personalidades, trabalhos publicitários e muitas coberturas jornalísticas. Trabalha com marketing digital e gerencia o coworking Redes. De natureza apaixonada e vibrante, se arrisca e segue em frente. Uma grande paixão é sua filha.

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Com ela aprendi…

Ela tinha cabelos longos e grisalhos. Andava com dificuldade. Acordávamos cedo para acender o fogão à lenha. Eu ía à horta para trazer salsinha, cebola, cenoura, tomate… com meus quatro anos admirava cada movimento seu. Ela cortava o tomate e me dava um pedacinho na boca. Me pedia então para trazer mais lenha. Eu a rodeava por toda a manhã. Hora do almoço, muitos vinham e voltavam. Permanecíamos só nós duas. Cuidávamos de colocar tudo no lugar. E então eu a ajudava a preparar o jantar. À tardinha, com tudo pronto, após o banho, nos sentávamos, admirando violetas e comendo mingau de polvilho e maracujá. No dia seguinte do meu aniversário de cinco anos, ela partiu. Penso hoje que com ela aprendi as coisas mais importantes da vida. Acorde cedo, preste atenção ao que está fazendo, faça devagar. Preste atenção a quem está ao seu lado. Silencie sua mente. Observe. Não precisa aparecer. A faculdade da vida.

Dedicado à minha querida “abuelita” (avó): Mercedes.

Beatriz Salek Fiad – Pediatra, Médica do Trabalho, Sanitarista, Administradora Hospitalar, Terapeuta de Família e Casais. Formação em Dança Circular Sagrada. Formação em Meditação. Carioca. Mãe e Avó.
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Relato Póstumo

Em meados de Novembro Ana galgou o muro da casa de Fernanda, ou melhor dizendo, antiga casa de Fernanda. Não fora uma tarefa branda, mas ao finalizá-la repousando o olhar no quintal de Fer sentiu-se triunfante; satisfeita.

Neste dia em questão completava-se seis meses que Fer já não morava mais nessa cidade, nem país; e muito menos mundo. Essa lembrança tornou a deixar as bochechas de Ana quentes e úmidas pelas lágrimas, fizeram as beiradas de sua boca repuxarem em um sorriso nostálgico e álgico. Ah, Fernanda. Este nome sempre ecoava na mente de Ana de maneira poética e delirante.

Tocada pelo ambiente, Ana cambaleou aproximando-se da piscina que se localizava no centro do quintal de Fernanda. A água e estrutura pareciam devastadas pelo tempo; sujeitada ao abandono, exatamente como Ana estava. Com os pés tocou a borda da piscina enquanto fitava o vazio daquele quintal e respirou fundo. O ar era característico ao ambiente; era úmido e refrescante, levava notas de solidão e nostalgia.

Sentou-se na beirada da piscina e repousou a mão sobre a água suja pelas desastrosas 8 semanas sem um dono e sem amparo. A família de Fernanda mudou de cidade e não haverá mais quem cuide dela. A piscina não terá mais aquela família para atenção aos seus cuidados e Ana não será agraciada com a presença de Fernanda nunca mais. As lágrimas quentes persistiam em escorrer pela face da jovem e os soluços escaparam faceiros por sua garganta má.

Ela não terá mais natais com Fer. Nem tão pouco passará as viradas de ano com ela. Não teria mais aquela companhia gostosa durante a noite. Não encontraria mais ao chegar em casa a pessoa a quem se entregaria em beijos. Não teria mais aquele amor correspondido que ardia em chamas por todo o seu ser. Ana não teria mais Fernanda; E não lhe restava mais nada.

Rolou da beirada à piscina, caiu em escuridão azul, em turbulência; em si. Não queria cair assim. Ana queria Fernandinha com seu cheiro amadeirado e olhar carinhoso; com seus muxoxos doces que acalentavam seu dia e incendiavam a sua existência. Ah, a realidade lhe sufocou tanto quanto a água ao adentrar seus pulmões.

Ana desejava sumir. Sumir junto de Fernanda e ir para o mundo que antes dominava. Oh, como parecia certo… Como foi certo. Pois Ele ouviu suas preces.

O corpo de Ana foi achado duas semanas depois inexplicavelmente conservado na piscina de seu primeiro beijo com Fernanda.

Marisabel Cruz Bela Urbana, enfermeira pós graduanda em docência, finalizando o curso de consultora em amamentação e doula/educadora perinatal. Apaixonada em desbravar novos idiomas, atualmente aprendendo Libras e refinando o inglês. Gosta de rock, MPB e está retomando a paixão e habito pela leitura. Tem 24 anos e signo de touro com ascendente em sagitário. Deleita-se com apresentações de novas culturas e crenças em sua vida, estando sempre em busca de experiências reconfortantes e renovadoras.

NOTA: Memória criada aos 14 anos; retomei e a revisei aos 24 anos)

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Viajo no tempo

Viajo no tempo e me vejo na primeira infância falando pelo telefone preto, pesado – grande para aquela mãozinha –, com a Carminha Lucia, a amiga imaginária. Lembro-me do avô Julio querendo me levar para a casa dela, sorrio ao lembrar. Será que ele era um provocador?

Viajo um pouco mais no tempo e lá estou eu sentada ao lado desse avô na sua casa, eu ouvindo-o me contar sobre seu pai quando veio para o Brasil brigado com o pai dele (meu trisavô), que iria se casar de novo.

Viajo mais um pouco no tempo, mas para uma época perto daquela, e lá estou de novo com meu avô analisando a grafologia das amigas do colégio: “essa é burra, a letra é assim…”, “essa é íntegra…”, aprendendo sobre numerologia, linhas da mão, e sem perceber nascia ali a Madame Zoraide.

Viajo de novo e vou para o carnaval da infância, matinê no clube, vestida de baiana, o colar da prima Gi arrebentou antes de irmos… o choro…, mas no final nos divertimos com muitos confetes e serpentinas no salão, tudo certo, brincar sempre foi bom.

Viajo novamente e lá estou com a amiga Kátia, fazendo aulas de direção juntas, fazíamos muitas coisas juntas, o instrutor desesperado, que as alunas saíram sozinhas com o carro. Lembro-me dos olhos verdes do instrutor.

Na esquina do tempo, me vejo prestes a entrar na igreja com meu pai ao lado, escuto de uma futura (ex) cunhada que nunca viu uma noiva tão calma. A frase ficou na cabeça, contei para a Gi e ela disse: “é porque fizemos teatro, já conhecemos um palco”.

Viajo para a infância, acordo na sala, desesperada, achando que iria morrer porque algo dentro de mim fazia barulho, e a Vó Gisa a me dizer que aquilo era o coração que batia. Fazia barulho porque eu estava viva, “se parar, morre”. Quantas vezes coloquei a mão no peito só para sentir o coração bater e saber que estava viva.

Viajei de novo no tempo e fui para o começo da Modo na casa da Vó Luiza, tempo bom, muitas lembranças, bilhetinhos, fax, paradas para fazer o almoço, hortinha no quintal, máquina elétrica de escrever e um telefone preto que enfeita hoje a minha casa, 23560, era esse o número, depois entrou um 3 na frente e da minha casa foram 87054, 516529, 32516529, tivemos também o 32542001 e depois tive o 32130585 – será que este era o da minha casa ou da Modo? Neste momento não sei mais.

Viajo no tempo e estou no sofá passando a mão na barriga, sentindo o bebê mexer, e digo: “oi, filho”, ele acalma, quando nasce chora, vem para perto do meu rosto e eu digo: “oi, filho” e ele para de chorar na hora, Bruno, o meu mais velho.

Com cada filho, uma lembrança no nascimento. Pedro com o choro forte e voz grossa, até as enfermeiras falaram, e com a Carol chorei muito entrando no centro cirúrgico, medo de morrer e deixar os três, mas foi tudo bem e ela nasceu linda, forte e saudável.

E que mãe sou eu, afinal? Prefiro não responder, deixo a pergunta para meus filhos.

Na esquina do tempo, lembro do bolo de formiguinha da minha mãe e de tantos outros sabores que já experimentei.

Pés na areia, água salgada, montanha, escola de samba, danceteria, festival de violão, balé, teatro, comemorando a entrada na faculdade. A sensação boa ao descobrir como é bom abraçar e ser abraçada pelo namorado. Andar de bicicleta…

As memórias são tão ricas que nem cabem em um só sonho ou texto. Fico com elas dentro de mim, construindo todo dia novas.

Às vezes os dias são quentes, mas tem lágrimas. Às vezes os pés doem. Às vezes o carro para. Às vezes eu viro a esquina errada e mudo o caminho, e, nesse caminho, afetos. Sim, encontro muitos afetos e alguns poucos desafetos.

A vida é ida!

Adriana Chebabi  – Bela Urbana, sócia-fundadora e editora-chefe do Belas Urbanas, desde 2014. Publicitária. Roteirista. Escritora. Curiosa por natureza.  Divide seu tempo entre seu trabalho de comunicação e mkt e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa.

 

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Memórias

Eu e uns amigos e colegas de trabalho criamos o hábito de uma vez por ano, sempre no mês de fevereiro ou março, fazermos um peixe na brasa regado a vinho (bem, o vinho a gente bebe) aqui em casa. Devido à pandemia, não fizemos em 2020 e 2021, mas fizemos em 2023. Desta vez estava somente dois amigos e familiares. Apesar de ser verão, não estava tão quente, a chuva deu uma trégua e tivemos um dia muito agradável.

Gostamos de filosofar sobre a vida, sobre o “ser” Humano e andando pelo gramado, tivemos uma conversa até que calorosa sobre… memórias. O que são memórias? Para que servem? Se vivemos de memórias, vivemos no presente ou do passado que se faz presente? E o futuro, criamos ou repetimos conforme as memórias?

Pois bem, memórias! Memórias são nossas experiências, positivas ou negativas, armazenadas em nosso corpo. A ciência diz que a memória celular, biológica, é feita somente em torno dos nossos dois anos de idade e que antes não é possível. Mas não fomos gestados na barriga de nossas mães? E até os dois anos, as experiências não se tornam memórias? Aí os cientistas denominam como memórias de consciência (sensorial, que faz parte das memórias implícitas ou inconscientes) e elas determinam muito dos nossos padrões comportamentais como adultos.

Uma amiga de longa data falou da sua preocupação e dificuldade com o seu filho Gabriel, de quase dois anos, em não deixar escovar os dentes e que já faziam cinco dias que não escovava. Ela o levou em dois especialistas que disseram que é mimo, que ele é manhoso. Ela em tom de desespero: O que fazer? Eu disse que achava que não seria manha não e aí eu perguntei: Mas ele não teve dificuldade em pegar o peito e a mamadeira? Ele não teve que fazer uma pequena intervenção (cirurgia) na língua? Ela respondeu: verdade, e com 25 dias após o nascimento. Bingo! Por isso não deixa ninguém mexer na boca dele. Qualquer pessoa que pense em mexer na boca dele, ele percebe como uma ameaça, um perigo e agora um pouco maior e com mais habilidades corporais aprendidas, se defende.

Essa memória do Gabriel o faz se defender do que tanto, uma vez foi invasivo, o agrediu. Ele ainda tem desenvolvido o cognitivo. Ele não consegue explicar, é impossível, só que o corpo sabe. E foi uma agressão para a mãe e o pai também. Eles disseram: Como que não dissemos isso para os médicos? Expliquei que tinha sido traumático para os dois também e que dores assim a guardamos para poder suportar e sobreviver. Eles sentiram, de imediato, um alívio e que agora (o que era Implícito, se tornou explícito) o Gabriel pode ser devidamente cuidado e o trauma, curado.

Todos nós temos memórias de rejeição, abandono, humilhação, traição, injustiça, desvalorização, assim como temos memórias de conquistas, experiências gostosas (comidas também, hum!), ainda mais quando nos sentimos seguros, amados, momentos prazerosos e de muita alegria com familiares e amigos. Quando faço café, ao sentir o seu cheiro, memórias sensoriais e emocionais de acolhimento, relaxamento e desfrute são ativadas. Quando bem criança, tive estas experiências positivas na casa de uma avó.

Hoje mesmo vi fotos e vídeos de Malta e Itália, viagem que um casal de amigos fizeram no mês passado. UAU! Que delícia foi vivenciar as experiências positivas, agradáveis que tiveram. E que agora, as memórias deles fazem parte das minhas. E essas memórias me fez relembrar a viagem que eu e minha família fizemos para a Itália, dez anos atrás. Momentos deliciosos. Lembro que em Siena, minha filha mais nova, com 07 anos, na Piazza del Campo corria por toda a praça, brincava feliz, livre, leve e solta e perguntamos para ela: Maria, como se sente? Ela respondeu: em casa, já conhecia este lugar! Pois bem…memórias precedentes.

Que futuro é possível criarmos? Depende das memórias que mais vivemos no presente. São mais as positivas ou negativas? Todos queremos a felicidade, amar e sermos amados e ninguém gosta de sentir dor, medo, culpa, sofrer e aí as afastamos, as deixamos guardadas (inconscientes) em nossos corpos, só que ao fazermos isso, o que acontece? Atraímos as pessoas e as situações não resolvidas que se repetem por meio dos relacionamentos abusivos, perdas, doenças físicas, mentais e emocionais.

E se ativarmos as memórias do amor e segurança, podemos aceitar e acolher as dores em nós, transmutá-las e vivermos um futuro com mais leveza e com mais momentos de alegria e felicidade.

Wlamir Stervid – Trabalha como Coach Somático e desenvolvimento de Liderança. Um dos coautores do Livro Precisamos falar sobre relacionamentos abusivos aqui do Belas Urbanas e adora atividades com amigos e familiares na natureza como caminhada, pedalar, fogueira e por aí vai.
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Sensorial

Brisa gelada
Redondo caminho
Algodão doce, maresia

Heidi na tela
Mar pacífico,
Gaivota no ninho
Carioca no carteado
Minha vó,
Com sorriso do lado

Melancia e um bom vinho.
Partiu? Pra onde?
Quintero, los enamorados
Pinheiros cercados
Vista à vista,
Um barco, o oceano…
Sempre…as memórias
Um bom ano
Cheio de histórias.

Macarena Lobos –  Bela Urbana, formada em comunicação social, fotógrafa há mais de 25 anos, já clicou muitas personalidades, trabalhos publicitários e muitas coberturas jornalísticas. Trabalha com marketing digital e gerencia o coworking Redes. De natureza apaixonada e vibrante, se arrisca e segue em frente. Uma grande paixão é sua filha.
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Meu relicário

Quando não sei o nome de algo, sofro para entender o que está acontecendo e a partir
daí construir sentidos. Não soube nomear muitas situações ao longo da minha vida,
nessas horas deixei que as emoções e sensações falassem por si só. Aos poucos, fui
conseguindo expressar melhor os sentimentos para assimilar melhor algumas percepções.

Tento, sempre que possível, fazer uma autoanálise para encontrar palavras escondidas
aqui e ali, e assim, entender melhor as experiências que vivencio no dia a dia.

Nas experiências da morte e do luto, busco recolher sentidos para compor meu relicário.
Para nomear as experiências, vou lembrando de histórias e assim, garimpando
preciosidades para guardar…

Minha bisavó dizia que eu nasceria no mesmo dia e mês que ela. Essa conjunção astral na
verdade não ocorreu. Escorreguei pelo ventre da minha mãe um dia antes da profecia da
bisa e um mês depois da sua morte. Esse fato marcou minha chegada ao mundo.

Quando eu nasci, fiquei sem nome por uma semana. Como meus irmãos tinham nomes
que iniciavam com a letra T, foram sete dias para encontrar algo que se encaixasse com
essa tradição familiar. Gosto, pois, silabicamente, é quase o mesmo nome de frente para
trás e vice-versa: Thalita – Talitha. Nunca entendi o efeito da letra H, mas compreendi um
elemento de força nele, por isso mesmo, vinte e quatro anos depois, repeti este enigma do
agá no nome do meu filho, Arthur.

Assim como o nome nos marca em nossa existência, compreender a vida pela imposição
da morte tornou-se um processo contínuo para mim. Minha lembrança mais marcante da
sensação de morrer foi quando vi minha avó pegar um cabo de vassoura e ir decidida até
o galinheiro no fundo do quintal. Estranhei ela pegar uma galinha pelos pés e, agilmente,
prender seu pescoço no cabo de vassoura sobre o chão. A asfixia reverberou em batidas
de asas desesperadas e, ao fim, ouvi um som estridente e estranho. Um assassinato
acabava de acontecer! Eu senti um vazio no estômago e uma ânsia, fiquei zonza como se
me faltasse ar. Após isso, o corpo da ave foi levado de ponta cabeça para um panelão de
água fervente. Depenamos a defunta e depois, abrimos sua barriga e separamos os
órgãos. “Cuidado com o fel”, disse a minha avó, “pode azedar a carne e estragar tudo”. Essa
rotina era, para ela, algo mecânico e necessário para a rotina do lar. Minha avó diz com
orgulho que foi a primeira mulher a vender frango limpo em sua cidade e me mostrou que
canja com pés de galinha é a melhor alimentação quando alguém está doente. Com o
episódio da galinha, entendi melhor quando as pessoas diziam que “perdiam o chão” com
a morte de alguém.

Em meu relicário, guardei uma pena.

Certa vez, numa aula de matemática onde reinava um silêncio amedrontador, bateram na
porta, era a diretora que, com os olhos preocupados, sussurrou algumas palavras no
ouvido esquerdo da professora que, aos poucos, foi ficando estarrecida até que pôs as
mãos na boca. Percebi que algo não estava bem. A diretora chamou a minha melhor amiga
e pediu para ela pegar o seu material e ir se encontrar com a mãe que a esperava em sua
sala, lá embaixo. Minha amiga saiu da sala sem entender nada. Na porta, vimos que
começou a chorar e foi abraçada pela diretora. Soubemos depois que seu pai tinha
morrido. Pouco falamos sobre isso. Quando ela retornou, dias depois, percebemos que
Ponto Final
evitava conversar sobre o assunto e nós fingíamos que nada tinha acontecido.

Em meu relicário, guardei uma folha de caderno em branco.

Quando meu pai fez quarenta anos, eu achei que ele ia morrer. Estava com nove anos e,
não sei bem o porquê, quarenta representava, para mim, o final da linha. Durante a sua
festa de aniversário eu ficava pelos cantos chorando, olhava para ele e achava que não o
teria por muito tempo. Minha mãe percebeu minha desgraça e conversou comigo. Ele
sobreviveu, passa bem e está hoje com sessenta e quatro anos. Exatamente dez anos a
menos do que a idade que meu avô tinha quando almoçou, foi dormir e morreu. Foi minha
irmã quem me avisou. Tinha acabado de voltar da escola, era final de tarde, ela olhou para
mim e, como se fosse um comunicado oficial, anunciou “o vô morreu, o pai e a mãe foram
lá para resolver as coisas”. Acho que sua confusão também era tão grande que ela soube
apenas voltar ao que estava fazendo e eu mergulhei à deriva em pensamentos confusos e
muitas lembranças. Perder alguém bem próximo é assim, acontece em um dia comum,
daqueles que você acorda, toma café, organiza a casa, vai para a escola ou para o trabalho,
volta e descobre que terá um velório naquela mesma noite.

Em meu relicário, guardei a lembrança de um pôr do sol.

Depois aconteceu com a Madonna, minha cachorra. Ao que parece o rim foi perdendo a
vitalidade. Pouco se falou da história. Ela foi levada ao veterinário e não voltou mais. Só fui
sentir o vazio dessa perda um tempo depois, ao rever uma foto dela, em que tive a
consciência de que nunca mais me aninharia em seus pelos ou dormiria aconchegada em
sua barriga. Não pude ritualizar uma despedida, talvez nem saberia o que fazer ou talvez
teria medo ou vergonha de expressar o que sentia.

Em meu relicário, guardei uma loba.

Ainda criança, minha avó sempre me levava ao cemitério. Quinzenalmente ela limpava os
túmulos dos conhecidos e levava flores frescas. Lembro dela praguejar àqueles que
deixavam flores de plástico por ali e me advertia que se fizessem isso com ela viria puxar
os nossos pés à noite. Me impressionava com o silêncio do lugar, com as fotos
descoloridas, os nomes e as datas. Exercitava os cálculos matemáticos para saber o tempo
de vida daquelas pessoas. Quando calculava uma existência com menos de cinco anos,
sentia um frio na nuca e uma tristeza desoladora. Acho que minha avó percebia e, para me
tirar do torpor, me perguntava se eu lembrava onde meu avô estava enterrado.

Em meu relicário, guardei mensagens de esperança.

Vinte e três de agosto é, para mim, uma data marcante. Foi quando meu tio/irmão morreu
de leucemia. O tratamento disponível possibilitou dezesseis dias para uma despedida que
jamais imaginaríamos fazer. Foi algo brusco! Ele fez parte daquela baixa porcentagem de
pessoas que apresentaram reações adversas por uma medicação. Tinha trinta e três anos.
Nesse dia, os médicos ligaram e pediram para a família ir até o hospital, minha mãe ficou
tão desolada que eu senti que precisava segurar a onda. Essa tensão gerou um epicentro
emocional e o tsunami me devastou, mas deixou o essencial para que permanecesse em
pé. Enquanto recolhia os cacos aqui e ali, me sentia navegando num singelo barco num
mar de águas profundas como se algo e não eu, controlasse meu percurso. Em pouco
tempo me casei, tive meu primeiro filho e um dia sonhei com meu tio/irmão onde me
abraçou e desejou paz, amor e luz. Foi muito bom!

Em meu relicário, guardei sonhos.

O tempo passou, mudei de cidade e sofri um aborto espontâneo. Perdi uma vida
intrauterina de dez semanas. Chamei-a de Catarina. Seu coração não bateu. Em meio ao
sangue e a dor das contrações de expulsão, fui arrumar o guarda-roupa e no silêncio
desse momento, encontrei apoio em meu companheiro e ao meu filho. Senti vergonha,
não sei por quê. Parecia que as pessoas próximas tinham medo de conversar comigo e o
que eu mais precisava naquele momento era de colo, de carinho e só fui conseguir
quando minhas avós me acolheram certo dia e narraram sobre suas experiências
abortivas. Com elas, eu pude entender que situações ruins acontecem e não temos
controle algum sobre elas, simplesmente fazem parte da Vida.

Em meu relicário, guardei o símbolo do infinito.

Como diz meu pai, coisas boas e ruins acontecem com todos. A cada nova experiência de
entrada ao mundo de Perséfone, a deusa grega do submundo e das estações, uma nova
marca na minha alma. Como tatuagens, tornam-se rituais de passagens que me ensinam a
estar à altura nesse momento tão misterioso.

Dizem que luto envolve luta. Mas quem, nesses momentos, tem forças? Para mim, tem
sido experiência solitária. Uma travessia constante por entendimento, uma jornada
noturna pelo silêncio.

Aos poucos encontro meu bando: pessoas que escolho compartilhar vivências e que me
acolhem como se estivessem bebendo água fresca com a mão em formato de conchinha.
Com respeito, me escutam sem julgar e me presenteiam, numa troca sincera, com as suas
histórias. Formamos círculos. Essas pessoas me apoiam e me fortalecem de tal forma que
me sinto aconchegada em uma colcha de retalhos macia e protetora.

Em busca de um santuário, vou para baixo de uma árvore. É ali que sinto saudades dos
que já se foram. Observo o farfalhar das folhas, sinto a textura do tronco e a magnitude
das raízes. O vento no rosto reverbera o voo dos pássaros… Esse relaxamento me conduz
para uma conexão profunda com a natureza, e ela me conduz ao encontro do infinito
daqueles que não estão mais aqui. Nessas horas, tenho a sensação de que as coisas
continuam e que a eternidade está na transformação. Vida e morte são apenas um “até
logo”.

Diante dessas e outras histórias, estou aprendendo a nomear minhas emoções. Quando
não consigo, empresto palavras dos outros. No mastro do meu barco imaginário, que faz o
percurso pelas águas da Vida, tem uma bandeira onde bordei uma provocação do
Nietzsche “Você vive hoje uma vida que gostaria de viver por toda a eternidade?”. Levo
também um diário de bordo, nele escrevo recadinhos, frases, pensamentos e sonhos. Um
amuleto que me lembra sempre de ir dormir em paz e de bem com as pessoas ao meu
redor, falar e expressar verdadeiramente o que sinto e estar presente nas coisas que faço.
E assim, vou compondo meu relicário da vida.

Thalita Jordão – Bela Urbana, é também professora e peregrina pelo mundo da leitura, arte e reinação. Gosta das paisagens geograficas, café com conversa fiada e sente uma atração imensurável pelos silêncios e mistérios da vida. Dizem que é estranha, mas ela se orgulha de ser amiga das bruxas.
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Memórias de um verão

Na correria dos dias de um ano intenso que estava quase terminando, os compromissos se acumulavam na mesma velocidade que os meses são contados em semanas, dias e horas.

Eram muitos detalhes importantes (paradoxo, eu sei) e uma lista quase infinita de pessoas que deveriam ser informadas sobre o acontecimento que se anunciava. Muita gente já aguardava, mas, para outros seria uma grande surpresa.

Para que nada desse errado, contratei uma cozinheira para comidinhas frugais, dessas de comer com as mãos e pedi à equipe de buffet para providenciar guardanapos floridos que deveriam ser espalhados pela recepção, evitando digitais engorduradas sobre o verniz natural. O cuidado é o pai da paz e o estresse não é camarada, por isso, tais observações foram anotadas numa lousa, em letras legíveis.

Comprei as bebidas com antecedência e deixei para gelar para que ninguém reclamasse da temperatura. Afinal, refrescar renova as boas energias e rejuvenesce até o céu.

Uma confeiteira foi trazida das Minas Gerais para que a doçura marcasse as bocas e as almas dos presentes.

Recomendei que a música fosse alegre e constante, mas que tocasse baixo, para que conversas melodiosas fossem as verdadeiras donas daquela festa.

Cada canto da sala deveria ter flores mistas e muita folhagem de alecrim e manjericão para que o visual enchesse os olhos enquanto o vento se incumbiria das profundas inspirações olfativas que aguçam os desejos e a fome.

Pedi que na porta dos banheiros houvesse bacias com toalhas quentes, para desinfetar as pontas dos dedos como se faz nos eventos orientais e, ao lado das bacias, tinas vazias para se depositar as toalhas usadas. Simbolicamente, a ideia era preservar o essencial e descartar o que arrisca a nos contaminar. Mas, sei que é uma interpretação sofisticada para a maioria das pessoas. Talvez seja o caso de repensar este conceito.

O salão foi projetado para parecer movimentado, com luz neutra, vários sofás redondos e mesas desiguais, de madeira verde, sem toalhas, nem vidros; mesas cruas e cadeiras fofas para os corpos cansados numa tentativa de mostrar um ambiente em construção, assim, toda a magia seria compartilhada com as pessoas.

Tudo aritmeticamente preparado para o clima de verão de um ano nem muito quente, nem muito frio, que jamais combinaria com algo morno. A intensidade deveria ser sentida visceralmente.

Uma ideia extravagante surgiu de última hora, provocando as mentes organizadoras, que, se fosse possível, atingiria o ponto alto do impacto que se desejava causar. Imaginei que no fundo da casa, numa edícula pintada de amarelo e lilás, ficariam duas tatuadoras à disposição dos que quisessem carregar uma memória vitalícia daquele dia ou daquela noite, conforme o momento da visita. Um longo estudo e muitas objeções.

Por fim, eu mesma deveria me aprontar para ser vista. Fiz questão de seguir a longa agenda feminina de cabelo ao natural, maquiagem bem leve em tons de saúde, unhas feitas sem nenhuma cor, apenas o básico de apresentação.

O traje não foi uma escolha minha, mas fiquei satisfeita com a elegância que o ofereceram a mim. Uma camisola branca, de cambraia finíssima, com pespontos em vermelho e roxo, adornada por xale vermelho de tricô de linha. Uma combinação de conforto e delicadeza que me identifiquei por definição.

Antes, porém, de ver a engrenagem desta celebração em funcionamento, eu resolvi me presentear com minutos de relaxamento que duraram horas. Cochilei com os pés imersos numa banheira fria que fez meu corpo se ajustar ao colchão afetivo que me envolvia. Como costumam dizer: “tempo de sono dos justos”.

Às dez horas, sem despertador ou aflição, eu me lembrei de nascer.

Rompi a bolsa d´água, desci por um corredor úmido e estreito e respirei de uma vez só todo o ar do mundo. Chorei o mais alto que pude para sinalizar minha forte presença nua.

Enquanto isso, pessoas riam, conversavam, brindavam e davam boas-vindas à mulher que eu, um dia, haveria de me tornar.

Poucos segundos de olhares fixos em mim e uma eternidade de promessas e expectativas criadas por quem passou pela vida festejada recém parida na memória de um verão qualquer.

Dany Cais – Bela Urbana, fonoaudióloga por formação, comunicóloga por vocação e gentóloga por paixão. Colecionadora de histórias, experimenta a vida cultivando hábitos simples, flores e amigos. Iinstagram @daniela.cais
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Terra molhada

Se tem um gatilho universal para a memória, é o cheiro de terra molhada.

Feche os olhos por um instante e imagine esse cheiro. Onde você foi parar? Vou falar por mim.

Uma janela, a luz difusa do sol promete um lindo dia, o sabiá cantando, a sombra das folhas e galhos na parede. Cheiro de terra molhada denuncia a chuva da noite. Fico deitada, só mais um pouquinho, ouvindo os sons, enebriada pelas sensações.

Um pomar, a liberdade de correr, sem medo de se molhar na chuva quente do verão. Ou pelas ruas do bairro, poças que refletem o céu.

À entrada da casa um tapete ou paninho, pois aos pés descalços só resta tentar limpar o quanto der.

Ainda chove? Talvez. O cheiro de terra molhada persiste ainda.

Um outro dia, a terra molhada, cadernos e apostilas, que desperdício de tempo. Uma pausa, cheirinho de café e pão de queijo e volta para os estudos. O diploma prova um tempo bem gasto.

Cheiro de terra molhada, uma taça de vinho para celebrar. Um toque macio, o cheiro de outra pessoa a me amar.

Terra molhada. Os filhos correm lá fora, foram ensinados a também reverenciar as dádivas da natureza. A vó acha que podem ficar gripadas, mas não, mãe, deixe que aproveitem.

A vó é tão divertida, gritam os netos – a vó agora sou eu – que comigo correm na terra molhada. Na entrada da casa do rancho, um pano, pois nossos pés descalços precisam limpar a terra e a grama neles grudados. O vô traz o pão de queijo e o suco para as crianças e, para mim, café com beijo quentes.

Uma luz difusa entra pela janela, a sombra de galhos e folhas na brisa, o sabiá está cantando e o cheiro da chuva que passou, terra molhada, anunciam um belo dia pela frente, com as memórias daquele lugar especial. Todo dia é especial, mas alguns são mais que outros.

Synnöve Dahlström Hilkner – Bela Urbana, é artista visual, cartunista e ilustradora. Nasceu na Finlândia e mora no Brasil desde pequena. Formada em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela PUCC. Desde 1992, atua nas áreas de marketing e comunicação, tendo trabalhado também como tradutora e professora de inglês. Participa de exposições individuais e coletivas, como artista e curadora, além de salões de humor, especialmente o Salão de HumBelor de Piracicaba, também faz ilustrações para livros. É do signo de Touro, no horóscopo chinês é do signo do Coelho e não acredita em horóscopo.
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É tempo de se viver

O relógio nos diz sobre o tempo cronológico medido por horas, dias, meses e anos. Desejo falar sobre um outro tempo, o qual podemos viajar através das memórias, pois elas nos remetem há momentos desde a infância até os dias atuais.

Neste tempo a vida pode passar como um filme e pode-se revisitar momentos de dor e alegria em alguns minutos ou horas. Quando isso ocorre fico a pensar que a vida tem a ver com intensidade e eternidade.

Ao observar a natureza notamos que a semente de uma árvore, contém em si todo o potencial necessário para que se desenvolva e torne-se uma linda árvore, todavia a árvore ao morrer deixará sementes. Fico a imaginar o movimento da vida como as ondas do mar que avançam para retornar, retornam para avançar.

Na dança da vida as vezes erramos o passo, outra vezes perdemos o ritmo e o rebolado, mas tudo faz parte do aprendizado de dançar a dois. Ao acertar o passo podemos bailar, assim como um casal de amantes com a leveza e sintonia. É sobre esse instante que pode dar sentido a uma vida que chamo de eternidade.

No filme “PERFUME DE MULHER”, há uma cena inesquecível, em que um personagem cego, vivido por Al Pacino, tira uma moça para dançar e ela responde: “Não posso, porque meu noivo vai chegar em poucos minutos…” Responde ele: “Mas em um momento se vive uma vida” conduzindo-a num passo de tango.

É sobre esse instante o qual pode dar sentido a uma vida que chamo de eternidade. Estar no fluxo da eternidade tem a ver com reconhecer a singularidade que cada um de nós somos no universo e no tempo. Logo cada um de nós expressa a diversidade da beleza que compõem a vida. Ao experimentarmos essa dimensão, tudo vai fazendo sentido e, passamos a nos implicar com cada decisão tomada durante a vida. É possível reconhecer que para cada decisão havia uma necessidade a ser atendida ou experimentada, a fim de se tornar que se é.

Movida por esse sentimento de eternidade, ao completar 60 anos, revisitei lugares onde morei especialmente da adolescência para frente, uma vez que a infância se passara em outra cidade. Foi uma experiência incrível; reviver as memórias de um tempo passado entrelaçado ao momento atual e, me reconciliar com todas as aquelas versões de mim, que me habitaram desde sempre. Reconhecer que sou somatória de todas elas, me preencheu de uma alegria, a qual fora bem descrita por Caetano, na música, Dom de Iludir: Cada um sabe a dor e a delícia. De ser quem se é.

Para terminar a minha reflexão te pergunto: E você já fez essa viagem no tempo? Sinta-se convidado.

Maria das Graças Guedes de Carvalho – Bela Urbana. Psicologa clinica. Ama a vida e suas dádivas como ser mãe, cuidar de pessoas e visitar o mar.