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Relações abusivas, uma reflexão sobre autoconhecimento e autocuidado

Relações abusivas muitas vezes são acordos, permissões silenciosas, repetições de padrões inconscientes. Aquilo que em alguns momentos não percebemos ou fingimos não perceber.

Quando a permissão aparece fora pode ser que já estejamos vivendo muitas permissões dentro de nós. Platão, filósofo da Grécia antiga, chamava essa atitude de licenciosidade, o ato de permitir perder o domínio de si mesmo quando medos, frustrações, e outras sensações diminuem nossa capacidade de ser quem somos como seres dignos e valorosos. Perdemos a confiança em nós mesmos e passamos a nos apoiar e nos justificar em nossas debilidades e inconscientemente percorremos caminhos dentro de nós perdidos em um labirinto de sensações e hábitos que nos falam sobre nossa falta de valor. Assim, adoecemos e não lutamos dentro, mas em algum momento a necessidade de entrar em guerra se torna iminente quando percebemos a realidade estampada em nossa vida nos limites das relações adoecidas e sem amor! Como acabei nessa situação? Quem será o culpado? O que fazer agora? São muitas as questões que nos surgem no momento que abrimos os olhos e começamos a trilhar a senda do autoconhecimento.

Há um livro hindu chamado Bhagavad Gita que conta a história de uma guerra onde o herói, chamado Arjuna, sente o ímpeto da licenciosidade diante do seu dever como guerreiro de lutar por aquilo que é seu por direito, apenas porque seus inimigos são seus “familiares”. Este livro fala simbolicamente do homem dividido dentro de si entre o que carrega de luz e de sombra. Por um lado somos valorosos e corajosos para enfrentar as circunstâncias da vida e por outro lado temos as justificativas de nossas fragilidades para não fazer o que é preciso para garantir nossa dignidade humana. E porque Arjuna deve enfrentar seus familiares? Porque precisa matar nele mesmo as sombras que o impede de ver o que é Real, que o impede de amar.

O amor no contexto filosófico fala da capacidade humana de ver com clareza, de discernir o que é válido e agir em conformidade com a própria natureza humana, oferecendo o melhor de sua conduta nos relacionamentos. Não tem a ver com o que esperamos do outro, mas do quanto de amor podemos viver por nós mesmos utilizando nossos valores como ferramentas na ação de amar. Encontrar nossas próprias motivações, inerentes a nossa identidade para agir no mundo sem perder nossa integridade, sem nos deixar arrastar pelos apelos exteriores quando estes nos tiram o brilho de nossa vida. Por isso autoconhecimento e autocuidado são essenciais. É preciso conhecer nossas forças interiores, nossas habilidades para enfrentar os ciclos da vida, e imprescindível também, é conhecer nossas próprias armadilhas interiores: medos, fragilidades, escapismos da realidade, reatividades quando encontramos algo que nos causa contrariedades, porque talvez nos cause dor e não queremos lidar com a dor. Esse conjunto de sensações, hábitos e fenômenos afetivos são “familiares” ao nosso cotidiano, porque passamos muito tempo nos apoiando nessas características para nos proteger e nos defender, e são esses familiares que nos impedem de utilizar nossas verdadeiras armas que são as virtudes, verdadeiro exército que nos liberta dos condicionamentos e automatismos onde a consciência não está presente. Falta despertar nossas sementes latentes de coragem e amor para romper hábitos psicológicos e assumir as rédeas das nossas ações como protagonistas de uma vida iluminada por sentimentos mais elevados de confiança e vontade de ser e de agir com mais valor.

Acontece que muitos de nós vivemos relações tóxicas, onde ambos os pares são responsáveis por suas escolhas e por sua conduta. Contudo, vivemos em uma sociedade e um tempo histórico que não valoriza a educação formativa do ser humano que busca esse autoconhecimento verdadeiro para aprender a protagonizar sua história com fortaleza psicológica e a liberdade necessária para tomar decisões mais inteligentes, escolhendo atitudes que tragam equilíbrio e deixando de lado as que poderiam provocar adoecimento.

Também nossos pais, pertencentes a essa mesma sociedade, e por falta de algo melhor para nos oferecer podem ter nos levado a firmar acordos e permissões através de violência física ou psicológica e assim, o que aprendemos desde cedo através de relações adoecidas poderá ditar os acordos e permissões de nossas ações futuras se continuarmos inconscientes dos motores e gatilhos que nos conduzem. Como disse Jung em um de seus tratados, “Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamar isto de destino”.

Qual o benefício de manter uma vida inconsciente? qual será o benefício de escolher posturas que nos colocam no papel de vítima ou de predador? Pois, parece que no fim das contas todo predador é uma vítima e toda vítima é um predador em alguma circunstancia, pelo menos se olharmos essas interações na natureza, e porque formamos parte da natureza essas características também nos cabem quando nos deixamos viver sem consciência do que nos move, reagindo ao sabor das demandas cotidianas. Talvez esse lugar, esse papel, já tenha se solidificado de tal forma que nos traga o beneficio de certa comodidade, ou seja, desde esse lugar podemos justificar muitas atitudes, e o maior dos benefícios: não lutar contra nossas debilidades, buscar fora o que é apenas reflexo do que contemplamos dentro de nós. Como disse o filósofo e imperador romano Marco Aurélio, “A nossa vida é aquilo que os nossos pensamentos fizeram dela”. Porém, sabemos que muito do que pensamos vem do mundo que nos rodeia, ou das questões que fogem a nossa responsabilidade, já que foi o meio em que vivemos que causou essa distorção da realidade. Podemos assim ter argumentos para responsabilizar o mundo por nossa situação e continuarmos guiados por contratos e permissões inconscientes, e ainda nos achando conscientes disto. Porém, sempre temos como refazer contratos ou selar novos acordos conosco. Claro que não é nada fácil desapegar-se das couraças que nos protegeram até agora, nem tão fácil submergir desse caos interno as ferramentas necessárias para nossa independência e autonomia.

Mas podemos começar com um passo pequeno de cada vez, aprendendo a respirar com mais calma diante das pressões diárias, conquistando estratégias inteligentes para vencer nossas inércias, e assim aos poucos vamos tomando conta de nós. Porque o pior abuso é aquele que cometemos contra nós mesmos, quando dizemos sim aquilo que nos paralisa, quando não percebemos que nosso tempo de cura é só nosso, e quando fechamos os olhos para ver as situações em suas verdadeiras dimensões. Porque a dor sempre vai existir. Buda dizia que a dor é veículo de consciência, pois nos ajuda a tomar consciência de suas causas para conseguir assim cessar a dor.

Platão também disse em seu livro Filebo, que “a dor mal canalizada se torna ódio, e o ódio se torna vício”. A palavra ódio no contexto não é simplesmente sentir raiva de alguém, mas trata-se de aversão e desejo. Queremos afastar a dor e buscamos alívio imediato. Queremos nos entorpecer como uma fuga irracional. Não há raciocínio inteligente, apenas respostas automáticas, como quando nos queimamos em uma superfície quente e automaticamente nos afastamos por proteção. Instinto de proteção é natural, mas quando se transforma em hábitos repetidos já não sentimos a vida, não apreciamos a paisagem. E na corrida para encontrar algo fora de nós que possa amortecer a dor que queima por dentro agimos sem pensar. Instala-se o medo da dor, evitamos sentir a vida para não doer, agimos no automático para esquecer, nos permitimos ser menos do que podemos ser…

Em nosso corpo podemos perceber que a dor avisa quando algo não está equilibrado e que precisamos dar atenção, entrar em ação para reequilibrar nosso funcionamento, nosso metabolismo, nosso fluir vital. A dor psicológica também requer atenção e ação consciente, mas nem sempre percebemos esses processos sutis. Negligenciamos nossos humores, nossos incômodos, e, no fim já não sabemos onde está a raiz das reações, explosões, implosões, etc. No livro O Pequeno Príncipe há um ótimo ensinamento sobre o autocuidado e autoconhecimento onde o principezinho diz que é preciso disciplina para manter o equilíbrio e por isso ao acordar ele costumava fazer a toalete do corpo e também do planeta, que pode representar os detalhes da nossa vida. Ele tinha dois vulcões e um deles era extinto, mas por precaução revolvia os dois e dizia “nunca se sabe”. Ele também cuidava de seu jardim, onde tinha uma bela rosa que representava muito para ele, por isso retirava qualquer erva que surgia, pois tinha receio que tratasse dos baobás, árvores que se tornam enormes, e que no caso do seu planetinha podiam causar estragos catastróficos. O grande ensinamento aqui é estar atento às ervas daninhas que surgem sorrateiramente e que no início parecem pequenas e inofensivas, mas que após um longo tempo de negligência crescem e tomam proporções muitas vezes insuspeitáveis.

Cuidar é um exercício de atenção diário. A natureza, por exemplo, nos ensina que o ritmo e a constância são fundamentais para que surjam as flores e os frutos através da lei que rege a planta. Se as condições são adequadas todos os dias ela realiza a fotossíntese necessária para manter a energia que possibilitará que cumpra todo seu ciclo de vida. Não há um dia em que a planta se recuse a realizar aquilo que é sua natureza, assim como o sol não decide ser outra coisa que não seja sua natureza solar.

Ana Paixão – Bela Urbana, filosofa, pedagoga, palestrante e educadora que trabalha com treinamentos há mais de 10 anos
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Grupos reflexivos para homens autores de violência contra a mulher

O trabalho com grupos reflexivos para homens autores de violência contra a mulher é uma abordagem sócio educacional que visa promover a responsabilização, a mudança de comportamento e a prevenção da violência de gênero. Essa metodologia busca proporcionar um espaço seguro para que os autores de violência possam compartilhar suas experiências, refletir sobre seus padrões de comportamentos e aprender estratégias para lidar com conflitos e relações interpessoais não abusivas.

É um espaço sem julgamentos. Nem condenações, mas, sobretudo, é um espaço de responsabilização. Quando os participantes tentam colocar as responsabilidades de suas ações em outras pessoas, justamente é invertida essa lógica. O abuso praticado por esses homens não é destino. É uma escolha. Errada. É fato que muitos homens viveram em ambiente abusivos, foram abusados, ou vivenciaram agressões em seus lares na infância. Mas isso nunca pode justificar ou atenuar a repetição de determinado comportamento.

Vivemos uma fase extremamente perigosa em terceirizar a perpetuação do abuso sofrido para a próxima geração, assim, simplificando as atitudes abusivas praticadas como uma reação ao abuso sofrido. É necessário considerar isso. Mas não podemos e devemos ter como justificativa. A perpetuação do abuso e do papel do abusador se deve ao patriarcado, ao machismo e ao exercício de uma masculinidade viciada em virilidade, poder e controle.

O grupo reflexivo para homens autores de violência contra a mulher é realizado em um ambiente sócio educativo, acolhedor, composto por um facilitador, que geralmente é um profissional experiente e capacitado em questões de gênero, masculinidades e violência, e um grupo de homens que tenham histórico de agressão física, verbal, psicológica, abuso sexual contra mulheres. Esses grupos são baseados nos princípios de igualdade, equidade, não-violência, respeito mútuo e confidencialidade.

O grupo reflexivo vem quebrando esse padrão de respostas automatizadas. Essa normatização de atitudes abusivas, controladoras e castradoras.
A metodologia do trabalho com grupos reflexivos geralmente envolve uma fase inicial de estabelecimento de normas e regras, onde são definidas expectativas de comportamento e respeito durante as sessões. Em seguida, os participantes são encorajados a compartilhar suas experiências de violência, explorando as dinâmicas de poder e controle presentes em suas relações.

Os encontros em grupo permitem que os homens compartilhem suas experiências pessoais, escutem as histórias de outros participantes e sejam desafiados a questionar suas visões de masculinidade, poder e controle. O objetivo do projeto é incentivar a empatia e a responsabilidade pelos próprios atos, além de ajudar os homens a desenvolverem habilidades de comunicação saudáveis, resolução de conflitos e respeito mútuo.

Esse projeto é fundamental para trabalhar a prevenção e a redução da violência contra as mulheres, proporcionando uma oportunidade de aprendizado e crescimento pessoal para os homens envolvidos. Além disso, ele também pode oferecer suporte psicológico, afetivo e encaminhamento para outros serviços, como terapia individual, quando necessário.
Alguns aprendizados e resultados:

  • Identificação de padrões de comportamento violento entre os abusadores, relacionados à sua história pessoal, percepções equivocadas sobre a masculinidade e dificuldades de controle emocional;
  • Aumento da percepção de responsabilidade pelos atos cometidos e reconhecimento dos danos causados às vítimas;
  • Ampliação da compreensão sobre as questões de gênero e a desigualdade entre homens e mulheres na sociedade;
  • Adolescência de habilidades de comunicação assertiva e resolução de conflitos de forma não violenta;
  • Reorientação dos abusadores para práticas não violentas, através da mentalização e da construção de uma nova identidade masculina;

Concluo que seja necessário investir em políticas públicas de prevenção, que incluam ações educativas e de conscientização sobre a violência doméstica e familiar desde a infância, adolescência e fase adulta, visando evitar a perpetuação desse ciclo. Além disso, é necessário ampliar o acesso a essas intervenções por meio de parcerias com secretarias de ensino, empresas, secretarias de saúde e segurança pública, e a criação de centros especializados, que ofereçam suporte integral a esses homens, incluindo programas de educação em gênero e ressocialização.

A intervenção com homens abusadores é um passo importante para enfrentar a violência doméstica, violência de gênero e contra a mulher, mas precisa ser acompanhada de outras medidas que atuem na raiz do problema. A conscientização, a educação e o suporte integral são fundamentais para romper com esse ciclo de violência e promover relações familiares saudáveis e igualitárias.

É necessário produzir intervenções educativas, nesses casos geralmente visam oferecer apoio emocional, conscientização sobre questões de gênero e violência doméstica, desenvolvimento de habilidades de comunicação saudáveis e educação sobre resolução pacífica de conflitos.

Eu, homem cruel.
Fui marcado pelo meu passado.
Aqui onde me ergo, 
me dispo do meu orgulho.
Envergonhado pelos atos insanos,
com humildade, refaço o meu traço.
Sim, abusador, dominador do poder,
Cego pelo egocentrismo cruel.
Cravei mágoas e cicatrizes na alma de outros.
Um homem monstro disfarçado de homem cordial.
Fácil papel.
Reflito sobre as dores que causei.
Só agora percebo também as dores que não senti.
Ouvir a mim mesmo.
A minha voz silenciada, calada, vazia.
Entendendo o valor da empatia.
Compreendo o poder do respeito.
Desaprendo a arrogância e semeio humildade no meu coração.
E, com gestos, ações, e dores,  reconstruo meu coração desfeito.
A violência que aflige minha história,
Não será mais causa do sofrer alheio.

Sergio Barbosa – Professor de Filosofia. Co fundador da Campanha Laco Branco. Gestor de projetos voltados para homens autores de violência contra a mulher. Pai de três pessoas maravilhosas. Adora plantas e verde.

 

 

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Luz sobre as oprimidas

Desperta-me atenção tudo o que está por trás dos relacionamentos abusivos. A lista é certamente finita, mas penso que o tema daria um livro, tamanha a quantidade, diversidade e amplitude de detalhes sórdidos.

Ousaria dizer, antes mesmo de refletir, que tudo gira em torno de poder. Poder de status social, midiático, cultural, político, financeiro, de gênero sexual, de raça e cor, étnico e tantos outros, incluindo alguns fantasiosos.

Esse poder carrega uma mensagem subliminar: “Se sou ‘superior’, tenho ‘direitos’ sobre você, o que faz de você ‘meu súdito’, portanto ‘submeta-se’.”

Retomando o aspecto do poder, gostaria de jogar luz sobre a ausência dele, quando olhamos para a figura feminina, no processo de relacionamento abusivo. Esta é vítima, interesseira ou ‘vagabunda’, na conotação sexual, infelizmente, aos olhos da sociedade ainda “machista”.

Assisti ao documentário Johnny Depp X Amber Heard, na Netflix, e os absurdos do caso me deixaram enojada.

Não vou julgar, aqui, as partes e sequer emitir opinião sobre o veredicto ou sobre as agressões verbais ou físicas, do casal. Agora…, um homem famoso, bonito, com enorme fã clube, bilionário, de fama mundial (Johnny Depp) leva a júri sua ex-esposa, por difamá-lo.

A Corte ‘decide’ filmar todo o julgamento e colocá-lo, em tempo real, na internet.

O grande e maciço público fã de Johnny Depp é feminino, o que fez com que mulheres do mundo todo gritassem a seu favor, durante as audiências, à porta do fórum, em vídeos pelo tiktok e em diversas redes sociais, sem se importarem com as verdades e mentiras, do caso.

Em suma, o mundo feminino massivamente apoiou e favoreceu a opinião do júri popular, que defendeu Johnny Depp, contra uma mulher, apequenada por todo aquele “circo de poderosos”.

Posteriormente, levantou-se informações que ficaram protegidas no processo, pela juíza, consideradas como “irrelevantes” no caso, como o fato de ela ter sido agredida por ele, num vôo particular, cujo testemunha mentiu, jurando falso testemunho.

Causam-me estranheza todas as atitudes da juíza. Além da exposição “ao vivo”, ocultar diversas informações que colocaram a vítima no papel de mentirosa, favorecendo o agressor em todas as situações.

Gostaria de conseguir avaliar o efeito deletério de todo esse desastre público sobre os homens agressores e as mulheres por eles oprimidas. Qual foi a autorização subliminar que tantas mulheres, ao redor do mundo, deixaram aos opressores?

Fico imaginando quantas daquelas mulheres que apoiaram e gritaram a favor de “Depp”, não foram oprimidas e abusadas nos últimos 12 meses…

E a maior reflexão que fica, para nós, mulheres, é: Apontar o dedo para os opressores é o único e o primeiro caminho?

Será que não devemos começar por olhar para a nossa base familiar e nossa base de amor, como fazemos nossas escolhas e como agimos diante de atitudes indevidas? Olhar com carinho para a nossa força interior, nosso valor e para o prazer de uma relação equilibrada, para sairmos do papel de oprimidas?

Marisa da Camara – Bela Urbana, Administradora aposentada, que hoje atua em suas paixões: a escrita e a radiestesia. Crê nas energias da natureza e é amante da vida, dos seres humanos e ‘doidinha’ por seus 4 netos.
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Pessoas, instituições e mensagens abusivas

Temos cada vez mais discutido as relações abusivas sempre dentro das relações entre sujeitos da relação, tanto aspectos dos abusadores quanto das vítimas, um debate urgente e extremamente necessário. Nesse sentido, observamos, discutimos e disseminamos características que nos alertam sobre como identificar, evitar, combater e denunciar atitudes abusivas que aparecem no abusador, perpassam a relação, atingindo o abusado, provocando toda sorte de traumas, prejuízos e sofrimento.

A questão que coloco aqui é adicional a esse debate. Quando não há um sujeito no lugar do abusador, mas sim uma instituição ou mesmo uma mensagem abusiva, o que devemos fazer? A ideia aqui é pensar: quando essa entidade que abusa não é um indivíduo, como devemos proceder?
Podemos usar exemplo claro: O corpo de discussão em torno da violência domésticas moveu e move a sociedade a compreender os sinais precoces dessa ocorrência, ajudando pessoas a evitar situações e pessoas, a buscar ajuda e, em última instância, debater ferramentas sociais que possam tipificar criminalmente esse tipo de violência, coibindo e punindo os abusadores. Assim, surgiu, por exemplo, a lei Maria da Penha, que por sinal homenageia a cidadã que militou fortemente nesse debate, após ser vitimada por esse crime.

Mas quando o abusador não tem cara definida, perdemos o referencial e a potência dessas ferramentas sociais de informação e justiça. Quando instituições ou uma enxurrada de conteúdo informativo surge, congregando indivíduos com comportamentos abusivos validados por esses conteúdos e instituições, temos condição de punir pontualmente individuo por individuo ou devemos agir contra essas instituições e mensagens nefastas?

É importante aqui definir o que são mensagens e instituições: Mensagens são ideias traduzidas em discurso, em texto, voz, ações, imagens, vídeos e qualquer suporte que possam disseminar e defender um comportamento abusivo de forma impessoal. Mensagens são construídas por pessoas que, muitas vezes fazem parte de instituições organizadas. Já as instituições são grupos de pessoas que se organizam formalmente em torno de algum objetivo em comum e que, por algum interesse particular, disseminam e validam atitudes abusivas.

Instituições usam de mensagens para disseminar seus ideais, objetivos e ações numa relação umbilical e, por não serem sujeitos passiveis de punição direta pelo ato, podemos responsabilizar seus autores ou líderes, as mensagens e instituições ainda podem continuar agindo.

Um meme, um vídeo, uma montagem ou postagem podem conter uma mensagem abusiva. Um grupo político, religioso, de assistência social pode validar ações coletivas de caráter abusivo. Mesmo um arranjo familiar é uma instituição, onde mensagens podem circular com a validação moral necessária para abusos injustificados. Mensagens e instituições são complexas, podem ser ambíguas, confusas e contraditórias, mesmo que, em seu discurso e atuação, demonstrem coerência e até boas intenções.

O objetivo desse ensaio reflexivo é colaborar com o debate sobre relações abusivas, extrapolando a análise dos indivíduos que compõe a relação abusador-vítima, entendendo que também nos relacionamos com instituições, mensagens, ideias e outras entidades que não personificam da mesma forma as estruturas abusivas que formam nossa sociedade, merecendo atenções específicas, combates específicos e ferramentas de identificação e coerção desses abusos, buscando, um efetivo progresso que garanta uma evolução social para todos.

Crido Santos – Belo urbano, designer e professor. Acredita que o saber e o sorriso são como um mel mágico que se multiplica ao se dividir, que adoça os sentidos e a vida. Adora a liberdade, a amizade, a gentileza, as viagens, os sabores, a música e o novo. Autor do blog Os Piores Poemas do Mundo e co-autor do livro O Corrosivo Coletivo.
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O melhor do caminho é caminhar por ele

Direta, esquerta. Para.

Atravessa, segue em frente, contorna, marcha a ré, esquerda de novo. Para.

Meia-volta, deixa passar, subida, prova de morro.

Rua sem saída. Volta.

Descida íngreme. Pneu furado. Troca.

Estrada de terra. Asfalto.

Coloca primeira não deixa morrer. Segunda, terceira, quarta, quinta.

Radar. Vai com calma. Dá tempo.

Gasolina ou álcool? Dúvida cruel. Qual é a melhor escolha? Decide.

Segue em frente. Congestionamento. Faz parte.

Cabe mais um?

Derrapa, roda, “ta tudo sob controle”.

Atenção.

Bebida e direção não combinam. Acidente ao lado.

Paralelepípedo. Buracos na pista.

Animais na pista. Cuidado.

Ao lado, as paisagens diversas.

A trilha sonora é diversa também.

Chegou. Desliga.

O melhor do caminho é caminhar por ele.

Adriana Chebabi  – Bela Urbana, sócia-fundadora e editora-chefe do Belas Urbanas, desde 2014. Publicitária. Roteirista. Escritora. Curiosa por natureza.  Divide seu tempo entre seu trabalho de comunicação e mkt e as diversas funções que toda mulher contemporânea tem que conciliar, especialmente quando tem filhos. É do signo de Leão, ascendente em Virgem e no horóscopo chinês Macaco. Isso explica muita coisa.

 

 

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Mais vida no caminho

Hoje despertei reflexiva sobre a finitude da vida.

Não necessariamente da minha, mas de tudo o que há.

Fixo o olhar sobre um sofá que em família abastada já teria sido devorado por uma caçamba, mas por sua boa estrutura me empenho em dar-lhe novas cores e novas casas.

Observo em meu entorno cadeiras revestidas, poltronas em capas novas, o antigo carrinho de chá restaurado e tantas outras peças cheias de ‘vida’.

Certa vez, deixei escapar um pires de um lindo jogo de café, pintado à mão, que se espatifou no chão, reduzindo-se a minúsculos cacos. Uma fatalidade que chegou a ser-me dolorida.

Hoje peguei a manga de um vestido que reformei e, dela, fiz um joguinho das 5 Marias, para levá-lo à minha neta de 4 anos.

Vez ou outra deparo-me com um objeto ‘novo em folha’, contrapondo com os antigos e restaurados, e o associo aos bebês de filhos e sobrinhos que vão renovando a linhagem familiar, em meio a tios e avós.

Nesse estado reflexivo, observo que a finitude da vida está fortemente ligada à manutenção, renovação e cuidados. Exceto em casos de fatalidades, claro!

Tenho um bom zelo por minha vida e talvez isto explique o gosto por repaginar e reformar coisas.

Devolver vida e utilidade aos objetos é como olhar para o meu interior, me reconstruir e dar mais vida ao meu caminho.

Marisa da Camara – Bela Urbana, Administradora aposentada, que hoje atua em suas paixões: a escrita e a radiestesia. Crê nas energias da natureza e é amante da vida, dos seres humanos e ‘doidinha’ por seus 4 netos.
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Aquele medo inventado

Tenho feito um caminho de volta à tudo aquilo que arrancaram de mim sem piedade, de
maneira brutal. Tenho lido minha história, arremessada em meus olhos, como se fossem
lanças que se perderam em algum lugar. Um retorno certo e nada frágil. Quero saber de mim.
Lembro muito bem de ouvir, diversas, inúmeras vezes, quando criança, que eu morria de
medo do mar, que me afastava dele e me virava para não vê-lo, em todas as viagens à praia.

Existem fotos antigas em que estou sentada de costas para o mar, brincando sozinha com
meus castelos na areia. E isso me bastou para acreditar que era um temor, sem nenhuma
explicação. Cresci acreditando em algo que nem me pertencia, e durante outras visitas à
praia, me colocava na defensiva, na imagem autoritária de que eu precisava evitá-lo a todos
custo, afinal, era como uma ordem não poder admirá-lo.

Nesse percurso de tirar todas as vendas que foram colocadas, algo apertava o meu peito e
me dizia:”vá ao encontro dele”. E eu fui, no final do ano passado. Fui diferente de tudo que
havia em mim, sem as ordens dadas, sem os comandos estabelecidos e cruéis. Fui livre!
Tenho estado livre! As mordaças estão ficando para trás.

Queria poder descrever em palavras o encontro que teve início com o som arrebatador das
ondas numa noite quente…Um som de monstro alinhando os pulmões e jorrando sangue de
águas. Pensei ficar surda por alguns instantes, mas fechei os olhos para ouvir aquela
imensidão adentrando os meus desejos mais indiscretos. Aquele som era meu, me pertencia,
cada gesto da sua onda aterrorizante e bela. Era eu, alí…inteira…

Ofegante, fui me aproximando e admirando cada detalhe. Deitei na areia, de roupa mesmo,
até sujar cada fio dos cabelos. Fiquei entorpecida, alucinada, estendida, embriagada do álcool
que não bebo. Que visão era aquela? Orfeu materializado no mar.

Quem foi o estúpido que me tirou o direito de amá-lo, perdidamente?

Algumas pessoas se autorizam a serem cruéis e fazem dos nossos melhores sonhos as suas
certezas mesquinhas e perversas. Eu sei quem foi, e nem caberia aqui dizer, pois o que me
importa é a verdade que existe em meu âmago e entre os meus ossos. O caminho agora é
todo meu.

Após a visita, tive que deixá-lo…trazendo cada quebra de sigilo das ondas entre as minhas
pernas e o ventre. Eu nasci naquele momento, eu pari meu amor secreto.

Trouxe a certeza de que um dia eu volto para ficar, coloco uma cadeira bem de frente para
ele, no escuro de qualquer noite quente ou fria, isso não importa, e fico olhando sem
descansar, fico ouvindo seu temor em meu silêncio de não morte, permaneço pálida de tanto
querer, me alinho como um colo, me entrego como eu posso. Afinal, somos amantes.
Vontade de olhar para o mar e dizer:”eu não sei nada sobre você, mas entendo a sua
imensidão”.

Vou morar no horizonte dos meus olhos.

Aquele medo inventado foi para judiar dos meus sonhos.

Hoje, ninguém tira mais nada de mim, muito menos me dopa de incoerências e flagelos. Só
a gente sabe o que carrega, ninguém mais.

Há mar dentro do meu coração machucado, um mar que me leva, me busca e me lava. Ando
lavando as feridas que nunca foram minhas…Ando ao contrário, na contramão.

Siomara Carlson – Bela Urbana. Arte Educadora e Assistente Social. Pós-graduada em Arteterapia e Políticas Públicas. Ama cachorros, poesia e chocolate. @poesia.de.si
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Se conseguisse ver o seu destino

Tem caminhos que são meus e eu não abro mão, a frase de uma música que traz a reflexão, nenhum caminho é meu, eu, as vezes estou lá, tão distante de decidir onde irei chegar.

Tem caminhos que percorri e que pensei ser diferente, que no caminho me perdi, mas cheguei até aqui e se mudasse este caminho, onde estaria? Melhor ou pior? Talvez nem te conheceria.

Se o caminho não é seu, se temos que aceitar, nenhum caminho é errado, só basta caminhar, seguir em frente com um norte que determinamos, mas no coração da gente, saber que o resultado nunca poderá  ser diferente.

Não há tempo de voltar neste caminho, sigo sempre em frente, as vezes sinto um vazio, de quem caminha sozinho, mas tudo muda de repente, como se este caminho se formasse ponto a ponto na sua frente.

Vejo a grandeza do universo e tenho a certeza de que não estamos sozinhos caminhando neste grão de arroz que é a terra neste imenso vazio, percebo que meu tempo, nem começou, já se perdeu e hoje estou sozinho.

Ah… se houvesse certeza neste caminho, se conseguisse ver o seu destino, talvez não me sentisse tão perdido, talvez tivesse muito mais medo,  aprendi com o caminho que ler através do tempo mostra que não aprendi nada e que preciso ser coeso.

André Araújo – Belo Urbano. Homem em construção. Romântico por natureza e apaixonado por Belas Urbanas. Formado em Sistemas, mas que tem a poesia no coração e com um sorriso de menino. Sempre irá encher os olhos de água ao ver uma Bela mulher sorrindo.
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Crônica sobre os prédios do centro da cidade

Pedaço 1
Hoje eu tive um sonho. Era um pedaço de caminho nebuloso. Em meio à névoa, como num filme do Fellini, surgiu a imagem de um touro numa intensidade do presente. O presente é futuro. Sempre converso com pessoas que acham que o pretérito é mais que perfeito, mas o sonho sempre é imperfeito. Imagens esparsas vão se tornando nítidas conforme se desenrola nas telas da madrugada bem dormida.

Pedaço 2
Ao volante do meu carro pela rua que leva à cidade, ao sol e aos devaneios vejo um jabuti atropelado no meio da pista. Estaciono, defronte ao cinema central. Caminho até o jabuti para observar a maldade que atropela animais pelo caminho. O jabuti imaginado não passava de uma luva largada no meio do caminho assim… como as latas e outras embalagens atiradas pelas janelas dos automóveis que transitam por aquela via.
De volta ao volante do carro a caminho do centro da cidade vejo os muros cinzas dos condomínios fechados e os cartazes que vendem liberdade aos moradores que habitam ali. À esquerda os bois e vacas andam uniformemente, brancos e prontos para o abate.

Pedaço 3
Agora vou falar a sério; vou falar umas verdades dos prédios vazios no centro da cidade. Fui fazer uma caminhada pela região central da cidade. Um deserto incontornável atrás da “Última Crônica” do Fernando Sabino. Entrei em algumas livrarias e sebos procurando alguma leitura para além da minha zona de conforto: a representação da vida em movimento na época contemporânea. Em algumas das prateleiras percebi que os livros não se encontravam organizados pelos critérios tradicionais por temas e ordem alfabética de autores e nomes de livros, mas pela vizinhança, meio que se encostando um nos outros pela sincronia de sua diversidade. Não encontrei o livro de crônicas que procurava.
Depois, andei pela rua vazia, ao longo de um novo muro cinza. Na praça, as crianças jogavam bola. Sentei para descansar perto das dúvidas dos sem-teto que estavam almoçando linguiça, arroz e rúcula e descobri que eles se organizavam para saber aonde iriam passar a noite, sem atrapalhar o público.

Parte 4 ou (Guisado de considerações)
Unificar aspectos humanos em si, independentemente do instante de seu acontecimento. Mas se tudo era um sonho bom sobre o tempo que lento, não diz nada a ninguém, nem mais ilude a alma batida como as roupas que os moradores da rua lavam e estendem ali mesmo na grama da praça. Nada mais do que o ciclo dos dias em sua velocidade que roda nos raios da bicicleta e o sol que a segue mais uma vez completa seu arco e dá lugar a uma lua acompanhada de estrelas que mais uma vez vão se embora e vem o sol e vai-se embora.
Assim eu gostaria que fosse a crônica: um apanhado dos pedaços e anotações justapostes como num painel sobre o tempo presente. Caminhar por ruas e praças desconhecidas para ficar em silêncio e escutar o novo.

João André Brito Garboggini – Belo Urbano – é publicitário, ator e diretor teatral e tem três filhos.
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Caminhe e o caminho aparece

“Quando você começa a caminhar, o caminho aparece.” Rumi

Incontáveis vezes ao longo da trajetória desse inevitável acordar, respirar, comer, trabalhar, sonhar e amar me percebo congelada e sofrendo, incapaz de tomar uma decisão, nem sempre tão importante, porém muitas vezes crucial, dispendo uns bons minutos (mas já passei anos) nessa pausa tensa, com pavor de tomar uma decisão ruim: preparo sopa ou sanduiche? Saio agora ou deixo para depois? Ter ou não ter filhos? Férias em Fortaleza ou Nova Iorque? Impressionante como em cada minuto da vida há uma decisão a ser tomada, e a partir daí os desdobramentos delas: come-se muito, engorda-se, falta de exercício pode resultar em sofrer as consequências ruins do sedentarismo, não economiza dinheiro pode passar uma situação de desemprego e não ter reserva financeira e por aí vai. Essa dinâmica da vida se faz até rotineira quando já se caminhou um bom tanto de anos, mas será que a angústia de tudo isso suaviza? Será que a experiência faz com que as incontáveis escolhas fiquem mais fáceis? A escolha pressupõe sempre ganhar e perder, se eu comer sopa, adeus ao sanduiche, e enquanto humanos e vivos essa escolha sempre haverá de ser feita, mas a maneira como farei e como vou lidar com isso é que fará a diferença no caminhar pela vida. É assim que a nossa trajetória vai sendo forjada, não há respostas sempre certas, há variadas setas indicando direções e um sem-fim de encruzilhadas e qual o melhor caminho ninguém sabe, essa é a resposta que todos procuram.

Nesse labirinto que é a vida, acredito que pouco importa a direção, o que realmente importa é decidir dar o passo, um de cada vez, em movimento sempre, seguramente chega-se a algum lugar, se fico parada tempo demais buscando a alternativa certa, corro o risco de nada fazer, de perder oportunidades, de me angustiar demasiadamente, nosso caminho vai sendo traçado por nossas escolhas e não há como fugir disso, na maioria das vezes não sabemos se a escolha resultará boa ou não, e pior ainda, ás vezes demora anos para ter-se essa resposta mas através desse misterioso infinito leque de opções que vão se apresentando dentro das limitações existentes no destino de cada ser, o caminho vai aparecendo, vai se fazendo de acordo aos passos que cada um decide trilhar.

Aprendi no caminhar contínuo da vida que posso descansar observando a paisagem, conversar, observar, aprender e trocar experiências com os outros caminhantes, mas o ritmo do meu passo pertence à minha sina e às minhas escolhas, a marca que eu imprimo na estrada é única e acredito que um caminho bom sempre vai aparecer enquanto eu deixo minhas pegadas por aí.

Eliane Ibrahim – Bela Urbana, administradora, professora de Inglês, mãe de duas, esposa, feminista, ama cozinhar, ler, viajar e conversar longamente e profundamente sobre a vida com os amigos do peito, apaixonada pela “Disciplina Positiva” na educação das crianças, praticante e entusiasta da Comunicação não-violenta (CNV) e do perdão.