Lucia passou a faculdade inteira ouvindo Silvia, sua melhor amiga, falar: – Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa.
A prova era difícil? E já ouvia Silvia: – Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa.
A carona furou para a faculdade e só sobrava ir de ônibus, lá vinha Silvia: – Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa.
Até em festa, quando seu paquera resolvia beijar outra menina, ela olhava para a amiga, mostrava outro rapaz e soltava: – Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa.
Lucia achava aquilo engraçado e diferente e começou a repetir a tão profunda frase em qualquer situação que não fosse a sua primeira opção, assim como sua amiga Silvia fazia.
Lucia, que até então nunca tinha questionado, perguntou para Silvia: – Quem é afinal esse tal de Beto Arnaldo Costa?
E Silvia: – Beto Arnaldo Costa foi um candidato a político na região da minha cidade que na última eleição foi para a TV e falava: “Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa”.
Lucia achou aquilo deprimente e pela primeira vez já não achou engraçada essa frase. Como a maioria dos jovens, Lucia era idealista, acreditava que poderiam existir bons governantes. Achou aquilo ridículo e quis dialogar com a amiga a respeito. Silvia, que tinha outros interesses, achou aquela falação uma chatice e disse:
– Que bobagem, Lucia, é engraçado!
Silvia, que de alguma forma ganhou fama com a fama da frase, não queria abandonar isso agora.
Lucia percebeu naquele dia que via o mundo de uma forma diferente de Silvia, mas, como eram ainda tão jovens, essas diferenças ainda eram pequenas e toleráveis.
Os anos passaram rápido. Lucia foi estudar no exterior, morou anos fora, conheceu novas culturas, novas pessoas, resolveu fazer uma segunda faculdade e depois ainda uma terceira, de jornalismo e sociologia. Fez muitos cursos, deu também muitos cursos, virou correspondente internacional de uma grande emissora de TV, virou editora-geral de um grande jornal. Na vida pessoal, alguns namorados, um quase marido – quase porque Lucia desistiu de tudo quando tudo já estava marcado. Quanto mais crescia na vida profissional, mais achava os homens sem graça. Ninguém já há um bom tempo despertava seu interesse.
E Silvia? Lucia perdeu o contato com Silvia logo após a formatura. Teve notícias de que ela voltou para sua cidade no interior, mas cada uma seguiu seu rumo e naquela época, sem celular, internet, perder o contato das pessoas era realmente fácil.
Lucia até tentou há alguns anos achar Silvia pela internet, mas sem nenhum sucesso.
Eis que um dia, no jornal em que trabalha, um dois mais importantes do País, Lucia foi convocada para uma reunião com a diretoria e recebeu a missão pessoal de entrevistar o Sr. Beto Arnaldo Costa.
– Como assim? – perguntava ela, toda surpresa. – Quem? O bosta por bosta?
– O que é isso, Lucia, está delirando? Contenha-se – disse o superintendente do jornal. – O Sr. Beto Arnaldo Costa tem feito um trabalho muito interessante e revolucionário com o lixo reciclável e por isso estamos querendo fazer uma série de reportagens sobre o assunto. E o Sr. Beto Arnaldo Costa será o primeiro entrevistado; o jornal tem interesse particular nesse caso e por isso estamos designando você para fazer isso pessoalmente.
Lucia achou aquilo estranho. Não que não pudesse acompanhar e entrevistar pessoalmente alguém, na verdade gostava de fazer isso, mas justamente o “bosta por bosta”, pensava ela. Foi quando se deu conta de que nunca soube mais nada sobre essa história, nem se era verdade e o que era verdade. Como toda boa jornalista, resolveu investigar, mas não teve sucesso, pois essa história era do começo dos anos 80 e Lucia agora tinha acabado de virar o século, ou seja, ainda existia muito a ser digitalizado, principalmente nos pequenos jornais das pequenas cidades.
Chegou o grande dia da entrevista. Haviam marcado em um restaurante chique de São Paulo. Lucia já estava impaciente, o tal Beto Arnaldo Costa estava atrasado 30 minutos e ela não aguentava mais tomar suco de laranja e comer os pães. A imaginação corria a mil, pensava em como ele seria. Já tinha em mente que seria um homem chato, grosseiro, sabia que tinha 52 anos e já imaginava um homem careca, gordo, muito gordo e de pé pequeno.
– Por que estou pensando no pé desse homem? Dizem que o pé tem o mesmo tamanho de um outro órgão masculino – talvez na verdade fosse nisso que ela pensasse.
Virou-se para a bolsa para atender ao telefone e já ia dizendo alô, quando uma voz grave disse:
– Você é Lucia?
Ela se virou rapidamente e por uns instantes ficou boquiaberta, com o pão na boca e o celular no ouvido, quase engasgou, fechou a boca e ainda ouviu:
– Desculpe o atraso, o piloto do helicóptero foi avisado que se tornou pai no meio do voo. Fiz questão de que voltássemos para que ele pudesse estar com o filho e tive que pedir outro piloto. Eu estava sem seu celular, pedi que meus assessores avisassem o jornal, você recebeu o recado?
Lucia estava zonza e, ainda com o celular no ouvido, disse no aparelho: – Depois te ligo.
E, ainda em susto, dirigiu-se ao elegantérrimo senhor, nada barrigudo, nada careca (só ainda não tinha visto seus pés), e perguntou: – Você é o Beto Arnaldo Bosta? Quer dizer, Costa.
Ele sorriu e, muito fino, fez que não escutou o trocadilho com seu sobrenome e disse: – Sim, sou eu.
O almoço foi ótimo, conversaram por mais de 3 horas sobre o lixo reciclável, sobre o projeto com a periferia da cidade de Arinápolis, interior da Bahia, sobre educação, sobre cultura, sobre, sobre, sobre… Lucia estava encantada como há muito não ficava com alguém. Mas a pergunta não saía da sua cabeça: – Será ele o tal Beto Arnaldo Costa, que é o bosta por bosta?
Às 17h ele pediu desculpas e disse que tinha uma outra reunião de trabalho e que precisava ir, mas perguntou se ela poderia jantar com ele, assim continuariam a conversa. Ela aceitou e ele disse que às 21h30 o motorista a apanharia na sua casa. Ela disse que não era preciso, mas ele fez questão, e ela aceitou.
Voltou para a redação encantada e encucada: – Seria ele (aquilo não saía da sua cabeça)?
Pensou em Silvia, mas não tinha mais nenhum contato com ela e lembrou-se do nome da cidade da amiga, era do interior de São Paulo. Procurou pelo sobrenome Knoschi. Como era um sobrenome incomum, talvez fosse possível achá-la ou então algum parente, mas nada, ninguém com aquele sobrenome nas listas. Com seu espírito investigativo, resolveu ligar para uma pessoa aleatória da cidade e perguntou se conhecia Silvia Knoschi ou alguém da família Knoschi. A pessoa até que teve boa vontade – pequenas cidades do interior ainda preservam esse espírito cooperativo nas pessoas –, e Lucia deu sorte, a senhora que atendeu ao telefone conhecia Inês, a mãe de Silvia, e disse que Inês tinha morrido há mais de 15 anos, e Silvia, como não tinha parentes na cidade, mudou-se e nunca mais apareceu por lá. A mulher disse:
– Só sei que ela enricou, casou e mudou. Não sei se a ordem é essa, talvez seja casou, enricou e mudou, mas por que você está procurando por ela? Ela sempre foi muito antipática, por aqui ninguém gosta dela nem daquele marido… Agora tenho que desligar, meu bolo vai queimar.
– Tudo bem… Muito obrigada…
Sem pistas, Lucia foi se arrumar para o jantar.
Às 21h30 pontualmente estava o chofer, ela estava elegante. O restaurante japonês era o melhor e o mais caro da cidade. Beto Arnaldo Costa já estava a sua espera, elegante, gentil, sorridente, e ela: – Oi, Bos… Costa.
A conversa foi perfeita, já tinha material para o artigo, mas o jantar se estendeu para outros assuntos. Por mais incrível que possa parecer, ela desandou a falar de vários assuntos pessoais. Ele, já mais reservado, falou somente sobre seu sucesso no projeto de reciclagem.
– Como ele é interessante – ela pensava, mas também se pegou pensando: – “Será ele?”, “Não é possível, ele é tão educado, culto, fino, mas e esse nome igual?”.
O jantar foi maravilhoso. Ele, com seu chofer, a deixou em casa, despediram-se com um beijo no rosto e ele disse que na próxima semana estaria em São Paulo e perguntou se podia ligar para ela.
– Claro que sim – disse ela prontamente.
A entrevista ficou ótima. O superintendente deu parabéns e ela sugeriu um artigo mais detalhado sobre o projeto da reciclagem e das famílias envolvidas, e a ideia foi aprovada. Lucia estava muito empolgada, encantada, sorria à toa, não tirava da cabeça Beto Arnaldo Costa. Parecia uma adolescente apaixonada… Ele enviou flores e uma corrente de ouro com uma ametista quando a matéria saiu, foi um sucesso, a mídia começou a falar bem desse homem.
Na semana seguinte estava ele em São Paulo e convidou-a para ir com ele para Paris, assim ela acompanharia mais sua vida e teria mais subsídios para continuar a matéria. Ela, que sempre foi tão sensata, aceitou assim de imediato, tudo pago por ele, primeira classe. Lucia já conhecia Paris, mas desta vez a ideia de Paris lhe pareceu a mais perfeita possível.
Para quem achava todos os homens a seu redor tremendos bobos, Lucia surpreendia a si mesma de tão sem críticas que estava para Beto Arnaldo Costa. Foram juntos no avião. Descobriu que ele tinha interesse em associar-se ao jornal em que ela trabalhava, lembrando que era um dos maiores jornais do País. Descobriu também que ele tinha sido pastor de uma igreja. Em outros tempos isso já seria motivo de cartão vermelho, desta vez nem amarelo. Ela não se reconhecia.
Costa, como era mais conhecido pelos aliados, era sorridente, elegante e político. Sim, ele era político, mas ela já tinha até esquecido a história do “bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa” e quando lembrava já tinha certeza que não tinha nada a ver, que era só uma coincidência de nomes. Estava convencida de que ele era um grande homem, quase convencida de que ele estava interessado nela. Ele de fato se insinuava para ela, mas não passava disso.
Chegando ao hotel, ainda na recepção, o celular dele tocou. Com uma voz melosa, amoroso, dizia: – Tudo bem, amor, será breve, pode me esperar. Desligou, olhou para Lucia e disse: – Vovó – ela achou lindo esse carinho com a avó, nossa, ele ainda tinha avó.
Lucia era só elogios para Beto Arnaldo Costa. Jantaram juntos e ela achou que seria uma noite mais profunda. Pensava no pé, que ainda não conhecia, mas nada! Beto Arnaldo Costa deu aquele lindo e branco sorriso de propaganda de creme dental e se recolheu ao seu quarto. Ela não aguentou e pensou: – “Bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa”. É isso, ele era o cara. Ela decidiu: daria um jeito nessa timidez, só podia ser isso e nem combinava com ele, afinal.
No dia seguinte, um imprevisto e Lucia não pôde acompanhar Beto em um compromisso. Ele deixou um bilhete embaixo da porta escrito à mão: “Querida, tenho que ir às pressas para uma reunião, mas volto para jantarmos juntos, te chamo na sua suíte às 22h”.
Seu coração disparou, ela sentiu-se como Julia Roberts em Uma Linda Mulher e aproveitou o dia para comprar um lindo vestido vermelho decotado de Paris. O relógio andava devagar. Lucia foi fazer massagem, drenagem, depilação, escova, banho de espuma e às 22h estava pronta com seu lindo vestido vermelho decotado e sexy, sim, muito sexy. Recebeu um telefonema da recepção que era para ela descer direto para o restaurante do hotel. Fez isso e se dirigiu em câmera lenta, só faltava a música de fundo para parecer filme, mas ela sentia a linda música de fundo. O vestido, para ser bem sincera, não fazia nada seu estilo, até incomodava um pouco, um super decote na frente e um super/hiper decote nas costas até quase o rego, além da fenda na perna esquerda até a coxa. Era bem incômodo e nada a ver com seu estilo. Vocês não têm noção de quanto equilíbrio ela teve que fazer para que nada saísse do lugar, mas pensava: – “Valeria a pena”.
Mas a música suave e romântica que seus ouvidos ouviam no trajeto até o restaurante se tornou música de terror, pois ela, assim que pisou no restaurante, viu de longe Beto Arnaldo Costa, mas quem veio direto ao seu encontro foi ninguém menos que Silvia, sim, Silvia, sua amiga dos tempos da faculdade. Um pouco diferente do que era, é certo, mas sorridente, com os dentes muito brancos – eles não eram tão brancos assim; muito loira, com um cabelão, um bundão e, além de tudo, simpática, e ela nem era simpática.
– Lucia, minha querida, que saudades!!
– Você aqui, Silvia… – Lucia respondeu em estado de choque.
– Quis fazer uma surpresa para você, por isso não pedi para o Beto…
– Arnaldo Bosta, ops, Costa.
– Isso mesmo, para ele não contar nada para você.
– A vó era você?
– Claro, meu bem, sempre atenta, Lucia, por isso se deu bem como jornalista. Já eu, já sabia que a salvação seria um bom casamento. Quando voltei para minha cidade, fui trabalhar na prefeitura e o conheci, virei sua assessora e depois você sabe, né, ele é tão charmoso…
– Mas e a história do bosta por bosta?
– Querida, pelo visto você continua a mesma idealista de sempre. Bostas todos são… então bosta por bosta, Beto Arnaldo Costa – e ria.
Lucia, pela primeira vez, se sentiu muito ridícula, envergonhada, aquela roupa parecia chumbo, pesava horrores; o encontro com a velha amiga não poderia ter sido em pior momento. Queria fugir dali, tirar aquela fantasia de mulher ultra super sexy que nada tinha a ver com ela, como se sentiu mal… Chegou a ter ânsia – “Que vontade de vomitar naquilo tudo, naquelas pessoas vazias, naquela fútil e egoísta da Silvia, ela sempre foi assim, como consegui ser amiga dela na faculdade? E esse Bosta… pastor de igreja, político que usa esse refrão… E o jornal? Tudo interesse político, que coisa feia, suja”.
Lembrou-se da mulher do telefone falando da Silvia e do marido. Com certeza aquele projeto de reciclagem tinha mais interesses por trás, além da compra de um percentual do jornal. E ela, que sempre foi tão boa repórter, como não percebeu nada? – se perguntava em seus pensamentos, sem parar. Sabia que no fundo seu encantamento cegou seus olhos. Como se sentiu tola, frágil! A ânsia de vômito veio tão forte, que não conseguiu segurar. Vomitou tudo, um grande e nojento vômito em cima de todos eles. O silêncio se fez. Todos imóveis. Paris depois desse dia nunca mais foi a mesma.
Os meses passaram e a segunda matéria não ficou boa, muito abaixo do grande talento de Lucia.
Então, ela tomou duas resoluções.
Deu o tal vestido vermelho para Isaura, a diarista, que ficou muito alegre com o presente e disse que a noite seria quente com o Carlão: – Ele diz que sou sua “piriguete”. Lucia riu e disse:
– Aproveita bem porque o estilo é “piriguete” mesmo – pensou que Carlão devia ter um pé interessante, mas isso ela não disse, é claro.
A segunda resolução foi tirar longas férias e conhecer o Japão, e foi para lá que foi, com foto do vestido vermelho em seu celular, que tirou antes de dá-lo. Estranho? Sim, mas nem tanto, era para nunca mais esquecer de como se sentiu por querer ser o que não era e para sempre lembrar que a vida precisa dos dois lados, o pessoal e o profissional. E se isso não acontece a contento, podemos ficar muito vulneráveis e nos apaixonar por qualquer bosta. Mas estranho mesmo era não perder a curiosidade sobre o pé do Costa, ops, do Bosta. Foi a única coisa dessa história que não ficou clara para ela, mas ela lembrava e ria olhando a paisagem pela janela do avião.
Adriana Chebabi – Bela Urbana, idealizadora do blog Belas Urbanas onde é a responsável pela autoria de todas as histórias do projeto. Publicitária, empresária, poeta e contadora de histórias. Divide seu tempo entre sua agência Modo Comunicação e Marketing www.modo.com.br, suas poesias, histórias e as diversas funções que toda mãe tem com seus filhos.