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Meu relicário

Quando não sei o nome de algo, sofro para entender o que está acontecendo e a partir
daí construir sentidos. Não soube nomear muitas situações ao longo da minha vida,
nessas horas deixei que as emoções e sensações falassem por si só. Aos poucos, fui
conseguindo expressar melhor os sentimentos para assimilar melhor algumas percepções.

Tento, sempre que possível, fazer uma autoanálise para encontrar palavras escondidas
aqui e ali, e assim, entender melhor as experiências que vivencio no dia a dia.

Nas experiências da morte e do luto, busco recolher sentidos para compor meu relicário.
Para nomear as experiências, vou lembrando de histórias e assim, garimpando
preciosidades para guardar…

Minha bisavó dizia que eu nasceria no mesmo dia e mês que ela. Essa conjunção astral na
verdade não ocorreu. Escorreguei pelo ventre da minha mãe um dia antes da profecia da
bisa e um mês depois da sua morte. Esse fato marcou minha chegada ao mundo.

Quando eu nasci, fiquei sem nome por uma semana. Como meus irmãos tinham nomes
que iniciavam com a letra T, foram sete dias para encontrar algo que se encaixasse com
essa tradição familiar. Gosto, pois, silabicamente, é quase o mesmo nome de frente para
trás e vice-versa: Thalita – Talitha. Nunca entendi o efeito da letra H, mas compreendi um
elemento de força nele, por isso mesmo, vinte e quatro anos depois, repeti este enigma do
agá no nome do meu filho, Arthur.

Assim como o nome nos marca em nossa existência, compreender a vida pela imposição
da morte tornou-se um processo contínuo para mim. Minha lembrança mais marcante da
sensação de morrer foi quando vi minha avó pegar um cabo de vassoura e ir decidida até
o galinheiro no fundo do quintal. Estranhei ela pegar uma galinha pelos pés e, agilmente,
prender seu pescoço no cabo de vassoura sobre o chão. A asfixia reverberou em batidas
de asas desesperadas e, ao fim, ouvi um som estridente e estranho. Um assassinato
acabava de acontecer! Eu senti um vazio no estômago e uma ânsia, fiquei zonza como se
me faltasse ar. Após isso, o corpo da ave foi levado de ponta cabeça para um panelão de
água fervente. Depenamos a defunta e depois, abrimos sua barriga e separamos os
órgãos. “Cuidado com o fel”, disse a minha avó, “pode azedar a carne e estragar tudo”. Essa
rotina era, para ela, algo mecânico e necessário para a rotina do lar. Minha avó diz com
orgulho que foi a primeira mulher a vender frango limpo em sua cidade e me mostrou que
canja com pés de galinha é a melhor alimentação quando alguém está doente. Com o
episódio da galinha, entendi melhor quando as pessoas diziam que “perdiam o chão” com
a morte de alguém.

Em meu relicário, guardei uma pena.

Certa vez, numa aula de matemática onde reinava um silêncio amedrontador, bateram na
porta, era a diretora que, com os olhos preocupados, sussurrou algumas palavras no
ouvido esquerdo da professora que, aos poucos, foi ficando estarrecida até que pôs as
mãos na boca. Percebi que algo não estava bem. A diretora chamou a minha melhor amiga
e pediu para ela pegar o seu material e ir se encontrar com a mãe que a esperava em sua
sala, lá embaixo. Minha amiga saiu da sala sem entender nada. Na porta, vimos que
começou a chorar e foi abraçada pela diretora. Soubemos depois que seu pai tinha
morrido. Pouco falamos sobre isso. Quando ela retornou, dias depois, percebemos que
Ponto Final
evitava conversar sobre o assunto e nós fingíamos que nada tinha acontecido.

Em meu relicário, guardei uma folha de caderno em branco.

Quando meu pai fez quarenta anos, eu achei que ele ia morrer. Estava com nove anos e,
não sei bem o porquê, quarenta representava, para mim, o final da linha. Durante a sua
festa de aniversário eu ficava pelos cantos chorando, olhava para ele e achava que não o
teria por muito tempo. Minha mãe percebeu minha desgraça e conversou comigo. Ele
sobreviveu, passa bem e está hoje com sessenta e quatro anos. Exatamente dez anos a
menos do que a idade que meu avô tinha quando almoçou, foi dormir e morreu. Foi minha
irmã quem me avisou. Tinha acabado de voltar da escola, era final de tarde, ela olhou para
mim e, como se fosse um comunicado oficial, anunciou “o vô morreu, o pai e a mãe foram
lá para resolver as coisas”. Acho que sua confusão também era tão grande que ela soube
apenas voltar ao que estava fazendo e eu mergulhei à deriva em pensamentos confusos e
muitas lembranças. Perder alguém bem próximo é assim, acontece em um dia comum,
daqueles que você acorda, toma café, organiza a casa, vai para a escola ou para o trabalho,
volta e descobre que terá um velório naquela mesma noite.

Em meu relicário, guardei a lembrança de um pôr do sol.

Depois aconteceu com a Madonna, minha cachorra. Ao que parece o rim foi perdendo a
vitalidade. Pouco se falou da história. Ela foi levada ao veterinário e não voltou mais. Só fui
sentir o vazio dessa perda um tempo depois, ao rever uma foto dela, em que tive a
consciência de que nunca mais me aninharia em seus pelos ou dormiria aconchegada em
sua barriga. Não pude ritualizar uma despedida, talvez nem saberia o que fazer ou talvez
teria medo ou vergonha de expressar o que sentia.

Em meu relicário, guardei uma loba.

Ainda criança, minha avó sempre me levava ao cemitério. Quinzenalmente ela limpava os
túmulos dos conhecidos e levava flores frescas. Lembro dela praguejar àqueles que
deixavam flores de plástico por ali e me advertia que se fizessem isso com ela viria puxar
os nossos pés à noite. Me impressionava com o silêncio do lugar, com as fotos
descoloridas, os nomes e as datas. Exercitava os cálculos matemáticos para saber o tempo
de vida daquelas pessoas. Quando calculava uma existência com menos de cinco anos,
sentia um frio na nuca e uma tristeza desoladora. Acho que minha avó percebia e, para me
tirar do torpor, me perguntava se eu lembrava onde meu avô estava enterrado.

Em meu relicário, guardei mensagens de esperança.

Vinte e três de agosto é, para mim, uma data marcante. Foi quando meu tio/irmão morreu
de leucemia. O tratamento disponível possibilitou dezesseis dias para uma despedida que
jamais imaginaríamos fazer. Foi algo brusco! Ele fez parte daquela baixa porcentagem de
pessoas que apresentaram reações adversas por uma medicação. Tinha trinta e três anos.
Nesse dia, os médicos ligaram e pediram para a família ir até o hospital, minha mãe ficou
tão desolada que eu senti que precisava segurar a onda. Essa tensão gerou um epicentro
emocional e o tsunami me devastou, mas deixou o essencial para que permanecesse em
pé. Enquanto recolhia os cacos aqui e ali, me sentia navegando num singelo barco num
mar de águas profundas como se algo e não eu, controlasse meu percurso. Em pouco
tempo me casei, tive meu primeiro filho e um dia sonhei com meu tio/irmão onde me
abraçou e desejou paz, amor e luz. Foi muito bom!

Em meu relicário, guardei sonhos.

O tempo passou, mudei de cidade e sofri um aborto espontâneo. Perdi uma vida
intrauterina de dez semanas. Chamei-a de Catarina. Seu coração não bateu. Em meio ao
sangue e a dor das contrações de expulsão, fui arrumar o guarda-roupa e no silêncio
desse momento, encontrei apoio em meu companheiro e ao meu filho. Senti vergonha,
não sei por quê. Parecia que as pessoas próximas tinham medo de conversar comigo e o
que eu mais precisava naquele momento era de colo, de carinho e só fui conseguir
quando minhas avós me acolheram certo dia e narraram sobre suas experiências
abortivas. Com elas, eu pude entender que situações ruins acontecem e não temos
controle algum sobre elas, simplesmente fazem parte da Vida.

Em meu relicário, guardei o símbolo do infinito.

Como diz meu pai, coisas boas e ruins acontecem com todos. A cada nova experiência de
entrada ao mundo de Perséfone, a deusa grega do submundo e das estações, uma nova
marca na minha alma. Como tatuagens, tornam-se rituais de passagens que me ensinam a
estar à altura nesse momento tão misterioso.

Dizem que luto envolve luta. Mas quem, nesses momentos, tem forças? Para mim, tem
sido experiência solitária. Uma travessia constante por entendimento, uma jornada
noturna pelo silêncio.

Aos poucos encontro meu bando: pessoas que escolho compartilhar vivências e que me
acolhem como se estivessem bebendo água fresca com a mão em formato de conchinha.
Com respeito, me escutam sem julgar e me presenteiam, numa troca sincera, com as suas
histórias. Formamos círculos. Essas pessoas me apoiam e me fortalecem de tal forma que
me sinto aconchegada em uma colcha de retalhos macia e protetora.

Em busca de um santuário, vou para baixo de uma árvore. É ali que sinto saudades dos
que já se foram. Observo o farfalhar das folhas, sinto a textura do tronco e a magnitude
das raízes. O vento no rosto reverbera o voo dos pássaros… Esse relaxamento me conduz
para uma conexão profunda com a natureza, e ela me conduz ao encontro do infinito
daqueles que não estão mais aqui. Nessas horas, tenho a sensação de que as coisas
continuam e que a eternidade está na transformação. Vida e morte são apenas um “até
logo”.

Diante dessas e outras histórias, estou aprendendo a nomear minhas emoções. Quando
não consigo, empresto palavras dos outros. No mastro do meu barco imaginário, que faz o
percurso pelas águas da Vida, tem uma bandeira onde bordei uma provocação do
Nietzsche “Você vive hoje uma vida que gostaria de viver por toda a eternidade?”. Levo
também um diário de bordo, nele escrevo recadinhos, frases, pensamentos e sonhos. Um
amuleto que me lembra sempre de ir dormir em paz e de bem com as pessoas ao meu
redor, falar e expressar verdadeiramente o que sinto e estar presente nas coisas que faço.
E assim, vou compondo meu relicário da vida.

Thalita Jordão – Bela Urbana, é também professora e peregrina pelo mundo da leitura, arte e reinação. Gosta das paisagens geograficas, café com conversa fiada e sente uma atração imensurável pelos silêncios e mistérios da vida. Dizem que é estranha, mas ela se orgulha de ser amiga das bruxas.
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Terra molhada

Se tem um gatilho universal para a memória, é o cheiro de terra molhada.

Feche os olhos por um instante e imagine esse cheiro. Onde você foi parar? Vou falar por mim.

Uma janela, a luz difusa do sol promete um lindo dia, o sabiá cantando, a sombra das folhas e galhos na parede. Cheiro de terra molhada denuncia a chuva da noite. Fico deitada, só mais um pouquinho, ouvindo os sons, enebriada pelas sensações.

Um pomar, a liberdade de correr, sem medo de se molhar na chuva quente do verão. Ou pelas ruas do bairro, poças que refletem o céu.

À entrada da casa um tapete ou paninho, pois aos pés descalços só resta tentar limpar o quanto der.

Ainda chove? Talvez. O cheiro de terra molhada persiste ainda.

Um outro dia, a terra molhada, cadernos e apostilas, que desperdício de tempo. Uma pausa, cheirinho de café e pão de queijo e volta para os estudos. O diploma prova um tempo bem gasto.

Cheiro de terra molhada, uma taça de vinho para celebrar. Um toque macio, o cheiro de outra pessoa a me amar.

Terra molhada. Os filhos correm lá fora, foram ensinados a também reverenciar as dádivas da natureza. A vó acha que podem ficar gripadas, mas não, mãe, deixe que aproveitem.

A vó é tão divertida, gritam os netos – a vó agora sou eu – que comigo correm na terra molhada. Na entrada da casa do rancho, um pano, pois nossos pés descalços precisam limpar a terra e a grama neles grudados. O vô traz o pão de queijo e o suco para as crianças e, para mim, café com beijo quentes.

Uma luz difusa entra pela janela, a sombra de galhos e folhas na brisa, o sabiá está cantando e o cheiro da chuva que passou, terra molhada, anunciam um belo dia pela frente, com as memórias daquele lugar especial. Todo dia é especial, mas alguns são mais que outros.

Synnöve Dahlström Hilkner – Bela Urbana, é artista visual, cartunista e ilustradora. Nasceu na Finlândia e mora no Brasil desde pequena. Formada em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela PUCC. Desde 1992, atua nas áreas de marketing e comunicação, tendo trabalhado também como tradutora e professora de inglês. Participa de exposições individuais e coletivas, como artista e curadora, além de salões de humor, especialmente o Salão de HumBelor de Piracicaba, também faz ilustrações para livros. É do signo de Touro, no horóscopo chinês é do signo do Coelho e não acredita em horóscopo.
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O primeiro monstro de nossas vidas é o Papai Noel

CENA 1

Uma mamãe no final da gravidez, mês de maio, indo para o hospital para acontecer o nscimento do seu filho!

Quando o bebê chegao ao quarto para ela que está junto com o marido ao seu lado e alguns da família, ela diz:

Ai! Ainda bem que ele nasceu antes do Natal!

Pois eu quero apresentá-lo ao “Papai Noel”, teremos uma bela árvore natalina em casa! Ao que o papai do bebê diz:

Já comprei meu amor a árvore e ela tem 02 metros!

Ei….

CENA 02

Chegando ao apartamento pais e bebê!

E na portaria do prédio um caminhão de entrega da árvore com 02 metros do novo inquilino do 25º andar!

E foi aquela perlenga para a dita árvore de um natal daqui a 07 meses chegar ao 25º andar!

Ainda nem a festa junina foi saudada!

E o bebê chorando o tempo todo daquela anarquia entre sobe ou não a árvore em questão.

Chama o síndico!

E lá vem Tim Maia

CENA 03

Resolvido o problema da subida da  árvore que precisou ser podada no hall de entrada do condomínio!

Foi uma festa de serra aqui acolá… e o síndico foi a loucura!

E assim se passaram o tempo e o bebê mal esperava conhecer o  1° monstro de sua vida nesta terra gentil varonil!

Papai Noel está no Shopping! E lá vai a mãe do bebê levando a sua máquina registradora de momentos inesquecíveis!

E se coloca defronte o bom velhinho mostrando aquela cara rosada dizendo:

Veja meu filho ele que traz presentinhos!

Vamos sentar no colo dele?

O velhinho estica os braços olhando firme para o bebê que berra ao enlaço do fofo Noel sentado naquela cadeira que se parece com a sua cadeira do quarto…..

Mas… Santa Maria do Sininho!

A mamãe não diz, mas ela tem um trauma sobre isto… na cidade onde morava não tinha um Noel tão bonito.

Ela acalma o seu bebê e o coloca “de costas” no colo do fofo Noel!

E dá-se o clique bem rápido e ali está para o mundo a imagem do encontro do primeiro monstro social que ainda em estado bebê somos forçados a sentar e ainda sorrir para ficar bem na foto!

Reparem que a maioria de fotos de bebês/crianças na 1ª infância está de costas para o fofo Noel!

Entendem?

O gatilho? Ora, é o Natal e para ser bem precisa é o dito Papai Noel… O bom velhinho!

É Natal, que algumas mãezinhas esxpõem seus filhos diante de suas loucas verdades!

É um fuzuê!

Joana D’arc de Paula – Bela Urbana, educadora infantil aposentada depois de 42 anos seguidos em uma mesma escola, não consegue aposenta-se da do calor e a da textura do observar a natureza arredor. Neste vai e vem de melodias entre pautas e simetrias, seu único interesse é tocar com seus toques grafitados pela emoção.

 

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A rua dos vagalumes

Com o fim do primeiro casamento de minha mãe na metade dos anos 90 nos mudamos eu e ela para uma casa em um quintal compartilhado e também propriedade da Dona Carol, senhora essa que tinha alguns netos que viviam a brincar na rua enquanto a lua fazia a iluminação natural do local.

No dia que nos mudamos para lá, lembro de ter tantas caixas empilhadas pela casa que para minha sorte minha mãe não achava as panelas e tampouco talheres, por isso procuramos a padaria mais próxima de casa e enquanto ela pedia as gramas de mortadela e pães quentinhos aquele cheiro de “padoca” inebriava todo o espaço daquele lugar.

Nesta nova vida éramos somente eu e ela, e toda confiança que eu depositava nela voltava para mim quando ela me pedia para me trocar e colocar o uniforme da escola na primeira chamada do Sítio do Pica Pau Amarelo que começava ao meio dia em ponto na rede Globo, assim só lhe restava pentear meu cabelo enquanto dividia seu horário de almoço entre comer, me buscar em casa e levar-me para escola. Lembro de chorar apenas uma vez sentindo sua falta e ser consolada com massinhas de modelar e ser a escolhida do dia para ajudar a professora por uma tarde inteira.

Quando podia minha mãe me levava também ao seu serviço, um pequeno salão de beleza que ficava numa grande avenida. Ao final do dia uma barraca de alumínio era montada na frente do local e ali se criava mais um cheiro que eu nunca seria capaz de esquecer em toda minha vida. Um cachorro quente completo com direito a todos os ingredientes da época, salsicha, maionese, ketchup, mostarda e batata palha. A simplicidade do lanche tão perfeita em seu sabor não se compara nem de longe aos preparos gourmetizados de hoje.

Menos é mais.

No rádio era lançamento de Pacato Cidadão da banda Skank, mas o que escutávamos mesmo eram as histórias contadas na rádio AM tais como, Papo de Boléia, Sérgio Bocca, Gil Gomes e Eli Correia, hábito que carrego até hoje e passo gentilmente para meu filho.

Na tv iniciava mais uma novela que seria maratonada com fervor. Com o final mais que esperado de A Próxima Vítima, agora nos renderíamos ao amor impossível de Dara e Igor em Explode Coração.

Capítulo por capítulo assistidos com a esperança de mais um final feliz.

As noites quentes inundavam a pequena casa de dois cômodos em que morávamos, era como um convite para ficarmos na rua na espera de qualquer brisa mais fresca para saciarmos o calor.

Minha recompensa era poder brincar na rua com os netos e netas da Dona Carol. A regra era apenas uma, era preciso levar uma sacola ou pote de vidro. O objetivo também era único, quem conseguisse pegar mais vagalumes vencia.

As sacolas e potes iluminados pelos mosquitinhos brilhantes arrancavam gargalhadas da criançada e um certo orgulho de quem havia pegado mais vagalumes.

A inocência fazia parte do DNA de quase todo pupilo.

Ao cair da noite em que víamos os adultos recolhendo suas cadeiras postas na rua ouvíamos também nossas mães nos chamando para jantar. Era hora de soltar os bichinhos de volta à natureza e entrar em casa.

Mais um final de semana chegava e eu mal poderia esperar para andarmos de trem, comer amendoim torrado na lata de óleo e assistir Domingo Legal ao meio dia.

Com certeza não era só o domingo que era legal e sim o mundo inteiro que era muito mais maneiro e supimpa.

A saudade existe e a memória fica.

Que sorte a nossa termos vivido na mesma época que os vagalumes, sem medo de brincar na rua e ficar em rodas de conversas até altas horas da noite.

Criamos lembranças que jamais serão vividas novamente, porém lembradas com carinho e gratidão por termos sido uma criança ou adolescente dos anos 90.

Gi Gonçalves – Bela Urbana, mãe, mulher e profissional. Acredita na igualdade social e luta por um mundo onde as mulheres conheçam o seu próprio valor. 
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Lugar feliz

Visitar antigas moradas é a melhor forma de escorar minha casa. Eu.

Recentemente, ouvindo uma palestra sobre autoconhecimento, foi feita a seguinte pergunta: Qual seu lugar feliz?

Algo como resgatar memórias que te causaram conforto. Foi nesse momento que comecei uma grande jornada em busca desse lugar.

Muitas situações vieram a tona. Boas, felizes e claro, as ruins e tristes. Tive uma vida confortável, uma família que sempre me abraçou com muito amor. Minha adolescência, juventude, fase adulta foram meio atribuladas e cheias de percalços. Mas foram bem boas também. Afinal, sobrevivi e estou aqui. A infância foi tudo do bem e do bom. Então, meu caminho de resgate estava em algum lugar dessa fase.

Minha irmã costuma dizer que eu era uma criança hiperativa. Não parava quieta e minha mãe a colocava para cuidar de mim em festas, eventos… por muitas vezes, ela vivia um caos. Gostava de esportes também. Desde pequena jogava tênis, fazia natação, não faltava da Educação Física. Por muitos anos joguei vôlei, participava dos campeonatos regionais e estaduais entre as escolas e representava um clube da cidade. Era levantadora. Essas lembranças me fizeram sorrir! Sorriso largo! E assim prossegui por horas a fio buscando na memória onde estava o meu conforto.

Todo final de semana frequentava o clube com meu pai. Não tinha nem 13 anos. Primeiro o tênis, depois ele ia jogar bocha e eu para a piscina. Por volta das 11h30, o combinado era nos encontrarmos na lanchonete. Nossa, era tão gostoso quanto subir no escorrega e me jogar de barriga na água gelada dando muitas risadas com os amigos. E lá nos encontrávamos. Seu Wilson era de pouca conversa, mas no clube era muito sociável e rodeado de bons amigos. Todos me conheciam. Era muito bacana.

O ritual era primeiro o bolinho de bacalhau com soda e limão. Depois, sentávamos numa mureta que tinha na lateral da lanchonete, ficávamos olhando para as piscinas chupando picolé de côco. Ele costumava a cruzar as pernas e me colocava para sentar em um dos seus pés para conversarmos enquanto me balançava. Não durava muito e ele já falava: chega dessa “melação” e termina seu picolé.

Ao lembrar desse momento, me deu um calor no coração, senti um aconchego e uma felicidade tomou conta de mim. Ali era meu lugar feliz!

Hoje, sempre que preciso de colo, de segurança, até mesmo o que fazer diante de alguma situação, me vejo naquela mureta, aquele balanço e parece tudo ficar bem.

Volto para o presente com um delicioso sabor de picolé de côco. Minha memória feliz! Meu lugar feliz!

Dani Fantini – Bela Urbana, Relações Públicas de formação. Se jogando na escrita de coração!
Mãe da Marina, filha super companheira! Cuida da casa, trabalha com gente, ama animais, plantas, é cercada de bons amigos e leva a vida com humor! Pode-se dizer que é completa, mesmo faltando algumas peças nesse enorme quebra-cabeças que é viver!

Foto Dani: @solange.portes

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Ela não sabia

Relacionamentos abusivos sempre existiram, atualmente muito se tem falado sobre eles, como identificar e principalmente como se fortalecer para que se consiga sair deles.

Relacionamentos abusivos não começam abusivos, no começo parece um sonho, um grande conto de fadas, onde príncipes e princesas se conhecem e vivem felizes para sempre. No início é aquele encantamento, aquela dança da conquista, do acasalamento, o grande bombardeio de Amor.

O que ela não sabia era que existia um tal transtorno de personalidade narcisista, no qual o abusador, dentro de um relacionamento, manipula, mente, quer ter controle e destruir sua vítima, tudo milimetricamente calculado.

Ela nem sabia que existia um ciclo para isso. Como assim? Depois de ter vivido vários relacionamentos, amores, paixões, decepções, mesmo assim nunca ter ouvido falar do ciclo do Abuso Narcisista.

Acreditava ter experiência de vida suficiente para detectar um abusador. Não foi isso que aconteceu e que por diversas vezes ocorre na vida real, com pessoas reais, que simplesmente querem ser feliz no Amor.

Ela não podia imaginar que tudo não passava de um golpe, de um teatro, de uma farsa. Já tinha até visto filmes sobre isso, mas nunca sentido na pele.

Tudo parecia tão real, tão avassalador, tão intenso, tão perfeito. Então, esse é o início do ciclo e do que o abusador quer causar na vítima para fisgá-la.

Chamado Love Bonbing. Meu Deus, ela não se conforma de nunca ter visto vídeos sobre isso. A internet está lotada, quanta ingenuidade.

Após esse início maravilhoso, a segunda etapa é chamada de desvalorização, o abusador diminue a vítima para que ele alcance seu pódio na relação, mostrando seu poder e controle. Começa a destratá-la, humilhá-la, reclamar do seu cabelo, de sua roupa, de seus gostos, do seus amigos, diminue a autoestima da vítima para que se sinta mal.

Ela achava realmente estranha essa mudança repentina, mas já estava apaixonada, pensava que talvez ele pudesse mudar e voltar a idolatrá-la. Pura ilusão, em pouco tempo, questão de meses, as mentiras foram aparecendo, ela até pensava que estava ficando louca, isso também tem nome: gaslighting.

Ela tentava desesperadamente sair desse relacionamento, percebia claramente que tinha algo muito estranho, terminava, sentia alívio, mas o abusador não desistia, pedia para voltar, implorava, falava que iria melhorar, que seriam felizes, que viajariam, fazia planos, ela cedia. Isso também tem nome: Roovering.

Ela sentia um esgotamento físico, mental e emocional, sabia que isso não era normal. A ansiedade, estresse e depressão fazem parte do Abuso no ciclo do Abuso Narcisista.

Ela conseguiu sair. Contato Zero. Ela era mais forte que ele. Ele nem imaginava isso. Ela não sabia que a próxima fase seria do descarte. Descartou ele primeiro. Pura sobrevivência.

Ela não sabia que ela era um suprimento para o narcisista . Se existe algo que aprendeu com tudo isso, é que ela tem que aprender a se Amar e se Valorizar mais que tudo nessa Vida.

Anônimo – Mulher, brasileira, não quis ser identificada
SOS – Ligue 180
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Conseguir ressignificar

Escrever esse texto é provavelmente o mais difícil da minha vida. Algumas situações são escondidas por uma vida inteira. E quanto você cresce dentro de uma situação assim? Isso é um abuso? Se é, qual tipo é? Psicológico? Não sei se é…  Abuso moral talvez? Fui buscar o que se diz sobre abuso moral… não achei nada que se enquadrasse com precisão no meu caso, mas achei: “Assédio moral é a exposição de alguém a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas. Geralmente, tal expressão se refere a atos ocorridos durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções”… essa definição é a mais próxima, mas não é exata porque falo da minha vida pessoal, da minha infância, adolescencia e vida adulta. Falo sobre crescer em um mundo que não está dentro de um quadrado. E o mundo, apesar de ser uma bola redonda é muito quadrado e sendo esse quadrado, faz muita coisa ser presa e quando é presa, aprisiona também… em pensamentos que não podem se expressar abertamente, em corpos que não podem ser livres para amar, na frente de todos, os outros que de fato amam… e por isso, esse mundo quadrado, coloca ao quadrado mentiras. Eu cresci com algumas mentiras ao meu redor, mas mentiras, não excluem o amor, porque a mentira não era só para mim, era para o mundo. Era para sobreviver… mas a custas pesadas de outros… muito papo-cabeça para nada, muita obscuridade sem óculos, muito sofrimento oriundos de machismos estruturais, muita reclamação para a atenção ficar nos pormenores diários. Talvez esteja sendo difícil você entender o que quero dizer, assim como é difícil para eu falar sobre isso, falei tão pouco a vida inteira com outras pessoas sobre esse assunto…  Lembra que o mundo é quadrado e precisamos ser quadradinhos que se encaixam aí? É isso. Ainda não falo, porque eu sou a protagonista em um papel, o da minha vida, mas essa história envolve diversos outros protagonistas de suas histórias, então, em respeito a eles, ainda não falo abertamento, prefiro deixar a memória como foi até o final, como as crianças o viam. Meu pai era bisexual ou  gay, mas foi casado até o final com minha mãe, conheci o amante do meu pai quando eu tinha 12 anos, ele era legal comigo, me viu crescer, me formar, casar, ser mãe. Meu pai quase nunca viajava com a gente, mas viajava com ele e era constrangedor explicar essas viagens para amigas… eu nem contava, mas alguém, em algum momento, sei lá como, vinha e me dizia… seu pai está na Grécia? Porque não contou?… as viagens eram sempre nesse nível…e nós?…  para o litoral do nosso estado, nunca nada internacional…  dizia que era o amigo que pagava…. pode ser que sim… pode ser que não…. mas hoje, com clareza,  eu sinto como um ato egoísta. Quando eu disse que não se anula o amor, é verdade, o amor e o cuidado existia dentro da sua forma de ver o mundo e de fazer sua parte. Era amoroso, era responsável financeiramente. Nunca culpei ninguém de nada, mas hoje reflito sobre o impacto de crescer no meio de uma mentira, porque de tudo, é essa a questão… a mentira…. é aceitar alguém na sua casa, que nominalmente era o grande amigo e na verdade era o amante… é sobre achar tudo normal… não poder se revoltar porque  a revolta nem existia para algo que “não existia”, ou seja, me tiraram a chance da revolta que eu poderia vir a sentir….  O que posso dizer de todos os personagens envolvidos? Isso daria um livro… mas seria somente as minhas interpretações sobre o que vi e senti na vida sobre eles, sobre a minha e tão somente minha percepção e vivência.  Não falarei, não hoje, não agora… falarei só de mim… eu posso dizer que o impacto negativo disso tudo que mais tenho clareza, é um excesso de tolerância em diversas situações intolerâveis para a maioria das pessoas…. já aguentei sitações que por muito menos, muitos mandariam para aquele lugar… e eu… aguentei… e nem foi percebido por mim como algo pesado para eu aguentar…. tá achando isso bom? Não é, porque não eram situações positivas para mim, ou seja, tinha medo de perder, tinha medo de enfrentar, era mais fácil seguir daquela forma sem novamente me revoltar, sem ter uma consciência clara sobre o motivo que me fazia agir daquela forma…. mas por outro lado, sei também que tenho uma grande resiliência e que isso também veio do mesmo lugar. Maluco isso… Hoje me observo de forma mais consciente e  vejo as situações e como reajo a elas… como me posiciono… tudo tem haver com tudo… as vezes acerto, as vezes não…. sou uma aprendiz.  Consigo entender todos os lados, todas as dores de todos os lados dessas pessoas, e inclusive a minha. e com isso até as escolhas… mas de novo, viver na mentira é ruim. O amigo fez parte da nossa família por muitos anos, mas um dia acabaram…. o reencontrei muitos anos depois, cartas na mesa, acho que foi um alívio para ele e para mim também….  hoje nos vemos pouco, é casado e o marido nitidamente tem ciúmes de mim… de fora é fácil perceber….. cada qual com sua escolha e com seus aprendizados. Só me lembro de uma frase que alguém uma vez me disse, ninguém que está no enredo desse texto… “eu não fiz por mal” e eu respondi… “mas me fez mal”.

É isso, falei… Vamos falar e assim conseguir ressignificar o que nos fez mal, só assim podemos seguir em frente levando amor… e o amor que eu tenho em mim é muito grande.

Anônimo – Mulher, brasileira,  não quis ser identificada.

SOS – ligue 180

 

 

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1994 RENUNCIA

1994 é o ano em foi oficializado parte da minha história, no primeiro momento um sonho realizado e tudo que foi vivenciado durante 24 anos… um período em que meu emocional foi esmagado e aparentemente sobreposto por sorrisos, à espera de se transformar em dias melhores.
Mas, nada é para sempre quando decidimos renunciar a hipocrisia do próprio “eu”, então decidi optar pelo divorcio e contar a minha história por meio da Arte…, sim sou artista visual, AGORA SOU e escrevi em poucas palavras minha trajetória.
Renuncio…Renuncio, a cada palavra mal dita sobre a minha pessoa;
Renuncio ao juramento de amor eterno que não existiu;
Os sonhos cometidos e que não foram realizados;
As flores que não recebi;
Aos elogios que não chegaram;
As palavras que me calaram… Renuncio!
Renuncio os beijos que não foram me dado;
O riso que me foi calado…Eu Renuncio!

Essa renúncia semeia um novo ciclo, uma nova vida, sonhos a serem concretizados e a sensação de dever cumprido. Envelheci, amadureci e me dou ao direito de renunciar a tudo e a todos que trouxeram a negatividade para a minha vida!

Rosy Jesus Vaz – Americanense, de coração Barbarense, é artista visual contemporánea, desenvolve pesquisa e oficinas em diversas técnicas desde 2003.  Professora Coordenadora de Linguagens, atua como curadora, performer, fotógrafa autoral e em oficinas de fotografia e policromia em projetos sociais desde 2013. E motociclista e ama fotografar
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Sugestões de como ajudar vítimas de abuso

Nos intrincados e sombrios caminhos que levam a um relacionamento abusivo,
infelizmente há várias vítimas, a pessoa diretamente envolvida e outras, que podem
ser: amigos e familiares, se trata de um ciclo de violência, que pode reverberar, se
propagar, os formatos são variados, nem sempre o abuso é aquele caracterizado por
uma violência explícita, pode ser que a pessoa nunca tenha sido agredida fisicamente,
porém ouve ofensas constantes, é humilhada, tratada com desdém, desacreditada, há
muitas maneiras desse abuso acontecer.

Hoje quero escrever sobre como aqueles que são testemunhas desses abusos,
podem se sentir impotentes diante do sofrimento de alguém amado que vive uma
relação abusiva, às vezes essa circunstância se prolonga por anos e a pergunta óbvia
é como ajudar essa pessoa a sair da situação, se o caso é uma ameaça eminente ou
uma briga séria ou ainda uma agressão violenta, a atitude a se tomar é ligar para a
polícia ou no caso de ser menor de idade, o Conselho tutelar, existe também em
Campinas-SP, o Centro de Referência e Apoio à Mulher (Ceamo) que é um espaço de
responsabilidade da Prefeitura, destinado a prestar acolhimento e atendimento
humanizado às mulheres em situação de violência, proporcionando atendimento
psicológico e social e orientação e encaminhamentos jurídicos necessários à
superação da situação de violência, contribuindo para o fortalecimento da mulher; é
importante saber que essas opções existem, entretanto nem sempre são opções que
as mulheres buscam, muitas vezes a família esconde os abusos, vão vivendo naquela
relação tóxica, os filhos tem vergonha, os mais próximos convivem e não sabem como
ajudar, eu sei as atitudes que não ajudam: dar conselhos, julgar, dizer que tudo vai
passar, falar palavras vazias, quando alguém está sofrendo por uma situação de
abuso, ela sabe muito bem o que deveria fazer, ela simplesmente não tem forças para
fazer, e infelizmente muitas das vezes acredita firmemente que a outra pessoa vai
mudar, portanto em determinadas circunstâncias talvez o que mais ajude é ouvir,
oferecer um chá, um café, uma água, ser um bom amigo, estar presente e mais
importante: não demonstrar pena, a pessoa já está suficientemente fragilizada, não
precisa se sentir mais humilhada, a pessoa que observa ou vive num contexto aonde o
abuso acontece, também carregará as sequelas dessas situações e vai ter que cuidar
de si, de seu emocional para não se envolver e tomar as dores da pessoa, muitas
vezes tudo o que se pode fazer é ter paciência, é preciso entender mesmo que doa
muito que cada um é responsável por sua vida e é preciso que se aceite a ajuda, caso
contrário chegará como intromissão e pode trazer consequências ainda mais
desagradáveis. Para ajudar alguém de verdade é preciso criar um laço de amizade,
criar uma conexão, ser humilde para observar quando intervir e quando apenas estar
presente oferecendo uma escuta amorosa e atenta, entender que nem sempre a
pessoa quer ou está preparada para uma solução, às vezes ela quer apenas
desabafar e ainda não está pronta para enfrentar mudanças.

Eliane Ibrahim – Bela Urbana, administradora, professora de Inglês, mãe de duas, esposa, feminista, ama cozinhar, ler, viajar e conversar longamente e profundamente sobre a vida com os amigos do peito, apaixonada pela “Disciplina Positiva” na educação das crianças, praticante e entusiasta da Comunicação não-violenta (CNV) e do perdão.

 

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Sonhos esmagados pela dor

Chegou calada na escola, fazia tempo que não se via o seu sorriso.
No canto da boca ensaiava um riso, mas a memória tirava o ensaio e trazia carregada uma lágrima.
Não interagia, fingia, temia, chorava escondida esperando ninguém ver, mas os olhos inchados denunciavam o que ela queria esconder.
Mas não importava, a vida continuava sem ela, continuavam as risadas e as resenhas, continuava a dor que ninguém sabia e que ela procurava esconder.

Em casa, o quarto impecável, as roupas dobradas e arrumadas cor por cor, a dor expressa em uma organização que não tem valor.
Nas noites o medo reinava, o ranger dos tacos ou a porta que se abria e tudo recomeçava novamente, ele não tinha dó.
Entrava sorrateiro, calado, colocava a mão nos cabelos dela e fazia ela tremer de medo, as lágrimas corriam caladas no canto do rosto, desgosto, esgotamento, não estava certo, se a vida era assim, não queria mais viver.
Na manhã a apatia, a mãe que fingia não saber, o cinismo de que nada tinha acontecido estampado nos olhos de quem vê e a pergunta que cravava a raiva em seu peito, “está tudo bem com você?”

Mais um dia, tudo igual, as resenhas, a escola e a dor que parecia permanente, a mente já cansada, dormente, triste, insolente, demente, escrota, pungente, morte indefinida, distante de ser gente, destrói a vida.
Tantos sonhos esmagados pela dor que não tem tamanho, não tenho esconderijo onde ele não possa me ver, não tenho mais sonhos, desisti de crescer.
Nos cadernos as notas que caíam, no comportamento a dor que não sumia escondia cada vez mais a beleza que era destruída nas noites que não dormia.
Encontrada por quem espreita, o giz que desfaz a dor, cai como uma luva, tudo fica colorido, ela tem mais força, nada mais é impossível.

E mais giz e mais força, agora não fazia diferença se a crença de quem estava à volta era duvidosa do que sentia, sentia que tinha encontrado um novo quarto na mente que o escroto pungente não poderia entrar.
Mas não bastava essa fortaleza, tenha que ter certeza de que ele irá desaparecer, desaparecer para o mundo, desaparecer para você.
Pega o cachorro do amigo que entrega o giz, vai para casa aprender a desaprender, giz, cachorro, choro e certeza, já sabe o que vai fazer.
A noite chega, o giz acaba, o cachorro na mão e a certeza, hoje isso termina, não vai mais ter volta, a porta abre silenciosamente e fecha, a tranca indica privacidade, um estampido forte e um pequeno sussurro, um cheiro de ferro no ar, um minuto de silêncio, e agora é minha vez, antes do bater na porta, outro estampido, tudo termina de vez.

André Araújo – Belo Urbano. Homem em construção. Romântico por natureza e apaixonado por Belas Urbanas. Formado em Sistemas, mas que tem a poesia no coração e com um sorriso de menino. Sempre irá encher os olhos de água ao ver uma Bela mulher sorrindo.

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